Promoção de Saúde a negação da negação Fernando Lefevre Ana Maria Cavalcanti Lefevre Sumário Apresentação 9 I - A CRÍTICA DOS CONCEITOS 11 Saúde Pública e pós-modernidade 13 A pós-modernidade 13 Pós-modernidade e Saúde Pública 19 Crítica da doença como fatalidade 21 A doença como fatalidade 21 Rompendo com a visão fatalista 22 Crítica da saúde como positividade ou saúde como negação da negação 25 Saúde da Promoção de Saúde 25 A Promoção de Saúde: obtendo a saúde positiva como negação da negação 30 Promoção e prevenção 32 Promoção não é prevenção 33 Dois grupos de pressupostos 36 Dialética ou simbiose? 39 Promoção de Saúde como a ação de decifrar signos 43 Desconstruindo a doença como ameaça 45 A Promoção de Saúde, a doença e o entendimento cognitivo 46 Promoção de Saúde e a doença concreta 47 A informação como peça-chave 47 Comunicação social em saúde, lógica sanitária e lógica da população 50 Informação para a saúde versus educação para a saúde 55 Lógica sanitária e lógica do cotidiano 56 Promoção de Saúde, pedagogia normativa e pedagogia dialogal 58 Limitações 59 Referências bibliográficas 60 II - AS CRÍTICAS DAS ESTRATÉGIAS E DOS PROCESSOS ENVOLVIDOS 63 Introdução 65 Políticas públicas saudáveis? 65 As propostas de políticas públicas saudáveis 65 Políticas públicas saudáveis: uma perspectiva crítica 67 A Promoção de Saúde e o Planejamento Estratégico 71 Cláudio Gastão Junqueira de Castro Ana Maria Cavalcanti Lefevre O momento normativo: o que deve ser 75 O momento estratégico 77 O nomento tático-operacional 78 Conclusão 79 Processo de avaliação em Promoção de Saúde: um exemplo hipotético 80 Promoção de Saúde e fases da vida 87 O curso pós-moderno da vida 87 Os idosos na atualídade 91 A Promoção de Saúde para a qualidade de vida dos idosos 94 Promoção de Saúde e espaços urbanos 99 A urbanização na pós-modernidade 99 As cidades saudáveis como nova estratégia em Promoção de Saúde 103 Crítica da proposta das Cidades Saudáveis 105 Referências bibliográficas 106 III - PROMOÇÃO DE SAÚDE E DOMÍNIOS CONEXOS 111 Escolas promotoras de saúde ou escolas promotoras de aprendizagem/educação? 113 Ghisleine Trigo Silveira Isabel Maria Teixeira Bicudo Pereira Escola Promotora de Saúde: o tripé educação em saúde, ambiente saudável e serviços de saúde 116 Educação em saúde 118 Ambiente saudável 119 Serviços de saúde 119 A escola Promotora de Saúde e a "escola nossa de cada dia" 120 Uma escola saudável é uma boa escola? 123 Recursos Humanos para a Promoção de Saúde 125 Ana Maria Cavalcanti Lefevre Vitória Kedy Cornetta A representação gerencial da área de Recursos Humanos para o setor saúde 126 A representação do conceito de saúde e os recursos humanos para a área de Promoção de Saúde 129 Atributos e habilidades que deve ter um trabalhador da Promoção de Saúde 131 Propostas para o desenvolvimento de profissionais de Promoção de Saúde 133 Considerações finais 135 Bioética e Promoção de Saúde 137 Paulo Antonio de Carvalho Fortes Elma Lourdes Campos Pavone Zoboli Conceito, características e breve evolução histórica 137 As ações de Promoção de Saúde e a autonomia 141 Promoção de Saúde e o princípio ético de justiça 146 Conclusão 148 Referências bibliográficas 149 Considerações finais 153 Sobre os Autores 155 Apresentação O propósito deste livro é apresentar a Promoção de Saúde para dois públicos ao mesmo tempo: para os que têm pouca ou nenhuma familiaridade com o tema e também para aqueles que têm dela uma visão convencional. Assim sendo, busca-se ao mesmo tempo apresentar a Promoção de Saúde e criticar o modo como ela é habitualmente vista, concebida e praticada. Acreditamos firmemente que a Promoção de Saúde representa uma possibilidade de mudança radical no modo atual de conceber e praticar saúde. Mas, para chegar lá, será preciso revisitar criticamente seus fundamentos e práticas. O presente livro representa uma contribuição nessa direção. A esta breve apresentação seguem-se ensaios que fazem a crítica, tanto do modo atual de conceber saúde e doença, quanto das insuficiências da crítica da saúde/doença feita pela Promoção de Saúde convencional. Finalmente, fazem parte do livro também três ensaios que relacionam a Promoção à Escola, aos Recursos Humanos e, dada sua importância atual para a Promoção de Saúde e para a Saúde Coletiva como um todo, à questão da Bioética. Saliente-se que somos partidários da proposta de Promoção de Saúde, mas não incondicionais: nossa condição é que a Promoção seja vista e praticada como uma estratégia - poderosa que pode significar passos concretos em direção à utopia de um mundo sem doenças ou, no mínimo, menos doente. De fato, nos últimos anos o movimento de Promoção de Saúde vem ganhando força, com a realização de uma série de conferências internacionais, inclusive na América Latina, reforçando suas práticas. Trata-se de uma proposta historicamente recente, mas que recupera antigas tradições da Saúde Coletiva, que concebia a saúde e a doença numa escala mais macrossocial, no contexto das cidades e do meio ambiente. Há, todavia, um grande perigo rondando a Promoção e que está ligado ao fato, óbvio, de que ela é tributária do seu tempo histórico e, por isso, das relações de poder, hegemonia e contra-hegemonia que marcam este e qualquer tempo histórico. Sem entrar, por hora, no detalhe da questão, o que podemos dizer é que ela pode estar sendo usada, entre nós brasileiros e alhures, para deslocar a saúde do seu espaço político nobre - a relação saúde/doença - sob a alegação de que saúde é "outra coisa", diferente da "doença", o que vai acabar levando a que a tecnocracia hegemônica reine inconteste sobre o campo sanitário, relegando a Saúde Coletiva ou Pública à condição de articuladora de uma estratégia compensatória que, sob uma roupagem vagamente progressista, destina-se, no fundo, a bloquear o acesso das massas pauperizadas e excluídas ao mercado de consumo de bens de saúde, colocando assim em cheque a própria concepção moderna de Saúde Coletiva e, no nosso caso brasileiro, os princípios mesmos do Sistema único de Saúdé - SUS. Nesse sentido, acreditamos ser necessário que, sobre o arcabouço da Promoção de Saúde seja exercida uma aguçada crítica conceitual e política envolvendo a noção ambígua de "Saúde Positiva", que esclareça os riscos a que a Promoção está sujeita e que permita que avanços reais e permanentes sejam alcançados. É o que se pretende ao longo deste livro. Os autores São Paulo, agosto de 2004 I A CRÍTICA DOS CONCEITOS Saúde Pública e pós-modernidade A pós-modemidade1 Pareceu-nos útil preceder as análises dos diversos processos e estratégias de uma revisão sumária da pós-modernidade, e da Saúde Pública ou Coletiva dentro dela, uma vez que, evidentemente, é este o contexto atual que marca e influencia as estratégias e processos de Promoção de Saúde envolvidos. Fica claro que não pretendemos, nem remotamente, esgotar aqui a temática da pós-modernidade e seus impactos na Saúde Pública ou Coletiva, sendo nosso objetivo apenas contextualizar a discussão de nosso objeto central que diz respeito aos aspectos mais instrumentais ligados à Promoção de Saúde. Iniciando a análise, podemos dizer que não há consenso sobre o conceito de pós-modernidade. Alguns autores a definem como um momento que sucede à modernidade, outros como um momento que a ela se contrapõe. O que para alguns autores é pós-modernidade para outros é alta modernidade e neste caso a pós-modernidade seria apenas uma possibilidade. Assim, para definir conceitualmente pós-modernidade precisamos, antes de mais nada, esclarecer que se trata de um debate onde os marcos tanto temporais quanto conceituais não se colocam de forma precisa. O debate contemporâneo sobre a pós-modernidade advém das percepções e constatações das inúmeras mudanças que ocorreram e vêm ocorrendo no mundo atual e do significado e impacto delas na vida social. Há um consenso de que os anos 1980 apontam para o limiar de uma nova era, que conduz a humanidade para além da modernidade. Esta transição é caracterizada pelo uso de diferentes termos. Alguns autores definem este período como a emergência de um novo sistema social (observamos isto na utilização dos conceitos "sociedade de consumo, sociedade de informação"). Para outros autores, a utilização de termos como pós-modernidade ou pós-modernismo indicam o encerramento de um período (Giddens,1991). Não iremos aqui nos deter nestas diferenças conceituais: adotaremos o termo pós-modernidade para caracterizar, ainda que de maneira imprecisa, a vida nas sociedades capitalistas contemporâneas. Em 1973, Daniel Bell estabelece um debate precursor sobre este tema quando introduz a noção de sociedade pós-industrial. Na obra The coming of Post Industrial Society, discute as mudanças que ocorrem na vida socioeconômica, as quais, derivadas da incorporação de novas tecnologias, levam a uma sociedade com ênfase na informação e no conhecimento. Jean François Lyotard foi o primeiro responsável pela popularização da noção de pós-modernidade. O que a caracteriza, em termos da condição do conhecimento, é a ausência de uma grande narrativa, isto é, de um enredo que nos insere na história tendo um passado e um futuro previsível. Enquanto a modernidade poderia ser explicada em termos de uma narrativa, como por exemplo o objetivo político-ético no Iluminismo, a ciência pós-moderna desconfia e questiona as grandes narrativas. Para Lyotard não há uma razão, há razões, não há uma História, há histórias (Tachner,1999). Para Baudrillard enquanto a modernidade tem como características fundamentais a racionalidade, a diferenciação nas variadas esferas da vida social, a alienação do ser e a fragmentação social, a pós-modernidade se caracteriza pelo processo crescente de diferenciação onde as fronteiras da vida desaparecem implodindo a totalidade social. Enquanto a modernidade se caracterizaria pelo desencanto, pela destruição das aparências, na pós-modernidade há a destruição dos significados. Para Baudrillard as massas, esta maioria silenciosa e indiferente, são como um buraco negro que absorvem tudo e não refletem nada, respondendo pelo abismo dos sentidos que caracteriza a sociedade atual. Ainda para Baudrillard (apud Tachner,1999), a sociedade pós-moderna seria dominada pela presença dos simulacra, que são representações ou cópias de objetos que servem de modelo e precedem a realidade social. Estes modelos constituem uma hiper-realidade e passam a estruturar a vida cotidiano; constituindo assim uma sociedade de simulações. Como outros autores, Giddens não define as mudanças atuais como a entrada na pós-modernidade, mas acredita estarmos "alcançando um novo período em que as conseqüências da modernidade estão se tornando mais radicalizadas do que antes" (Giddens,1991). Portanto ao nos referirmos a Giddens usaremos o termo modernidade em vez de pós-modernidade. Segundo este autor, para se entender a natureza da modernidade é necessário dar conta do extremo dinamismo e do alcance globalizante das instituições modernas. O dinamismo da modernidade seria derivado da separação do tempo e do espaço; do desencaixe dos sistemas sociais e da ordenação e reordenarão reflexiva das relações sociais. Segundo Giddens (1991) há conexões entre a modernidade e as transformações tempo/espaço. Estas transformações começam a ocorrer no final do século XVIII com a invenção do relógio mecânico expressando uma dimensão uniforme do tempo vazio. Com a uniformidade de mensuração do tempo, através do relógio, foi possível o estabelecimento da correspondente uniformização da organização social do tempo. Podemos observar este fato com a padronização mundial dos calendários. O mesmo ocorre com a padronização do tempo através de regiões, pois até então os tempos eram diferentes dentro de um mesmo Estado. O esvaziamento do tempo foi pré-condição para o esvaziamento do espaço, que se dá através da separação entre o espaço e o lugar. Na modernidade os espaços se tornam cada vez mais virtuais e passam a ser moldados por influências sociais bem distantes deles. A separação do espaço/tempo é essencial ao dinamismo da modernidade porque é condição para o processo de desencaixe. Por desencaixe o autor refere o deslocamento das relações sociais de contextos locais de interação que passam a ser reestruturados através de extensões indefinidas de espaço/tempo. Giddens destaca dois mecanismos básicos de desencaixe: fichas simbólicas e os sistemas peritos. Como fichas simbólicas destaca o dinheiro, meio de intercâmbio que pode circular sem ter em vista as características dos sujeitos ou grupos que lidam com ele. O dinheiro se torna um mecanismo de desencaixe na medida em que é um modo de adiantamento, pois proporciona meios de conectar o crédito à dívida em momentos em que a troca imediata de produtos é impossível. Desta forma retarda o tempo e separa as transações de um lugar particular de troca. Assim o dinheiro possibilita a realização de transações entre agentes amplamente separados no tempo e no espaço, sendo um meio de distanciamento espaçoltempo. Os sistemas peritos são sistemas de excelência técnica ou competência profissional que organizam áreas dos ambientes materiais e sociais que vivemos hoje. São também considerados mecanismos de desencaixe, pois removem as relações sociais das imediações do contexto em que ocorrem, uma vez que oferecem garantias de expectativas de espaço e tempo distanciados. Estes mecanismos estabelecem alongamentos de sistemas sociais uma vez que as pessoas confiam nos sistemas peritos. Poderíamos exemplificar esta situação quando indivíduos compram determinado produto, como um automóvel, porque confiam na capacidade técnica e eficiência da empresa que o produziu. Trata-se de um elemento de fé, de confiança no sistema perito em questão. Na relação modernidade/reflexividade nota-se que a "reflexividade é introduzida na própria base de reprodução do sistema, de forma que pensamento e ação estão constantemente refratados entre si (...). A reflexividade da vida social moderna consiste no fato de que as práticas sociais são constantemente examinadas e reformadas à luz de informação renovada sobre estas próprias práticas, alterando assim constitutivamente seu caráter (...). Não é que não existe um mundo estável a ser conhecido, mas que o conhecimento deste mundo contribui para seu caráter instável ou mutável (...). O conhecimento (...) reúne-se ao seu objeto (:..) deste modo alterando-o" (Giddens 1991). Outro conceito destacado por Giddens é que a modernidade é essencialmente globalizante. Para estudarmos esta questão é necessário analisar a organização da vida social através da relação espaço/tempo. Na era moderna o distanciamento entre espaço/tempo é cada vez maior, de forma que as relações sociais locais e distantes ocorrem de forma cada vez mais alongada. "A globalização pode ser definida como a intensificação das relações sociais em escala mundial, que ligam locais distantes de tal maneira que acontecimentos locais são moldados por eventos ocorrendo a muitas milhas de distância e vice-versa" (Giddens, 1991). Portanto, o que ocorre em uma cidade é influenciado por fatores distantes tais como o mercado de bens, ou a bolsa de valores, que freqüentemente operam em uma localidade muito distante da cidade em questão. Outro ponto importante a ser colocado em relação à globalização diz respeito não só à internacionalização do mercado, mas à velocidade e à proporção com que ela vem ocorrendo, que tem abalado o próprio espaço de atuação dos estados nacionais. Estes tem tido uma sucessiva diminuição de poder em decorrência de acordos realizados pelos blocos internacionais e pela crescente volatilidade do capital eletrônico que abala suas estruturas básicas de funcionamento e atuação colocando mesmo em xeque o seu próprio conceito, tendo em vista o novo mundo que se descortina. Para finalizar esta seção seria importante colocarmos que a contemporaneidade traz à tona transformações de tal monta que fica difícil definir se estamos nos limites da modernidade ou se iniciamos uma era pós-moderna. O avanço tecnológico da informática a partir dos anos 1980 tem alterado a base produtiva da nossa sociedade. A produção rígida, mecânica é substituída pela automação e torna-se flexível. Os produtos, antes padronizados, podem, agora ser despadronizados e atender a um mercado de consumo mais flexível e portanto individualizado. Temos então a possibilidade real, também, de despadronizar o consumo e em vez de buscarmos o homem médio passa-se a ter o foco no cliente, procurando-se a produção de um produto que atenda a seus desejos, necessidades e expectativas. A TV, que antes havia sido o ícone da indústria cultural, perde espaço para as TVs a cabo, segmentadas. A realidade, antes vista como totalizada, torna-se plural; as lutas de classe cedem lugar a movimentos sociais com novos atores: gays, consumidores, ecologistas, negros, diabéticos, aidéticos, mulheres, idosos, entre muitos outros. Pós-modernidade e Saúde Pública As profundas modificações econômicas e sociais decorrentes de modelos de desenvolvimento e das políticas de industrialização adotadas, sobretudo a partir da segunda metade do século XX (Gray, 1999) pelos países de capitalismo avançado, bem como o rápido desenvolvimento da ciência e tecnologia e o aumento dos processos de comunicação, comércio e interrelação entre os países acarretaram, em especial para os países em desenvolvimento, conseqüências e impactos em diversas dimensões das suas realidades. Dentre estas podemos salientar as que se referem ao padrão de urbanização que se estabeleceu nos países do Hemisfério Sul, caracterizado por uma ocupação de espaço caótica e anárquica, sem a correspondente infra-estrutura necessária; as mudanças no estilo de vida e nas relações entre as pessoas; as mudanças nos modelos de Estado, com conseqüente desestruturação/reestruturação dos serviços. Se por um lado a modernidade trouxe avanços inegáveis à humanidade no que tange à questão da saúde das populações, pois assistimos o incremento da esperança de vida ao nascer em níveis jamais vistos, em decorrência do acesso e disponibilização de serviços e tecnologias em saúde às comunidades, por outro lado a complexidade do mundo pós-moderno apresenta uma realidade sanitária de difícil enfrentamento combinando, especialmente nos países do chamado terceiro mundo, doenças típicas de países avançados com as de países subdesenvolvidos. Assim, "crescem muito doenças próprias, principalmente, do viver em cidades" (Novaes, 2003). Segundo este autor em diferentes regiões do Brasil os dados revelam: - aumento expressivo das doenças crônico-degenerativas como conseqüência do prolongamento vida; - aumento das doenças resultantes das transformações sociais e culturais do mundo pós-moderno, decorrentes de um modo de vida que em nada favorece a saúde das pessoas e das comunidades como a violência, o estresse, o crescente uso de drogas, as depressões, as insônias, as iatrogenias, etc. Segundo o autor o consumo de drogas psicoativas já estaria ao redor de 3 a 4 bilhões de reais/ano no País. - aumento do número de mortes em decorrência da obesidade, ultrapassando as mortes evitáveis pelo uso do tabaco. Além disso, verifica-se um aumento do número de crianças obesas, as quais apresentam problemas de alteração nos triglicérides e colesterol. Este dado complica-se quando se observa que este agravo é mais presente em famílias de menos renda; - presença de desnutrição (causada por deficiência de ferro) em crianças matriculadas em creches e pré-escolas municipais, pesquisadas em 20 capitais brasileiras. Nos países do terceiro mundo, como o Brasil, esta realidade torna-se ainda mais complexa pois as ineqüidades típicas do modelo de desenvolvimento social do país sob o aspecto do capitalismo dependente, mantêm presentes um perfil epidemiológico de doenças características da pobreza (como doenças infectocontagiosas, diarréias, desnutrição, etc.) aliadas a doenças típicas do capitalismo avançado (doenças cronicodegenerativas, obesidades, violência, etc.). Essas transformações do mundo contemporâneo, portanto, "impactam de maneira significativa o campo da saúde, seja no nível do seu objeto - o processo saúde-enfermidade de indivíduos e coletividades - seja no nível do instrumental teórico metodológico em que se apóiam o conhecer e o fazer sanitário" (Carvalho, 1996). Assim, o discurso e a prática sanitária hegemônica, baseados no modelo biomédico, entram em crise, mostraram-se ineficazes para o enfrentamento da complexidade dos quadros sanitários presentes no mundo, ao final do século XX e início do século XXI. O arsenal tecnológico, bem como a produção de bens e serviços disponíveis atualmente, tem sido impotente em muitos casos para proporcionar a melhoria da saúde de pessoas e comunidades e também não tem conseguido subsidiar e instrumentalizar políticas públicas que resultem em intervenções adequadas. Crítica da doença como fatalidade A doença como fatalidade Uma das características que marcam mais decisivamente a distinção entre a Saúde Pública tradicional e a perspectiva da Promoção de Saúde diz respeito aos pressupostos, relativos à doença, subjacentes a cada uma destas perspectivas. A Saúde Pública tradicional, assim como a Medicina e as demais áreas de conhecimento a ela subordinadas, entende que a doença faz parte da vida humana sobre a Terra; que, na qualidade de vicissitude, a doença é algo que, simplesmente, existe, sempre existiu e sempre existirá. Enfim, que é uma espécie de fatalidade natural. Com efeito, para este quadro de referência, a vida do homem sobre a Terra implica, de uma forma ou de outra, em maior ou menor escala, sempre, a competição com outras formas de vida, ou seja, a presença de um meio ambiente natural cheio de macro ou micro bios ameaçadoras para a "bio-humana", para as quais a Ciência e Tecnologia - C&T, ou seja, a Cultura, vem desenvolvendo e aperfeiçoando os devidos "antibióticos". Este mesmo meio ambiente é também responsável por excesso de calor, frio, umidade, secura, etc., causadores diretos ou indiretos de doenças e mal-estares, condições que necessitam, portanto, das devidas respostas sob a forma de artefatos protetores, que o ser humano foi providenciando ao longo de sua evolução cultural. Por outro lado, o fato do homem, ao longo da sua evolução histórica, ter optado cada vez mais por viver e trabalhar em ambientes artificiais como cidades, casas, apartamentos, fábricas, fazendas, etc., tornou também a doença uma fatalidade associada a esta opção já que a vida nestas condições implica, "naturalmente", a presença de um sem número de possibilidades, digamos, "culturais", de adoecer. Finalmente, temos a doença vista como uma fatalidade propriamente socioantropológica, que advém do ser gregário do homem, ou seja, que acontece dado o fato de que, vivendo junto a seu próximo, o homem desenvolve, "naturalmente", em relação a seu semelhante, raiva, ódio, ciúme, inveja, exclusão, privilégios, etc., condições que geram agressão, violência, assassinatos, injustiça social, miséria, fome e tantas outras manifestações similares do Ser da Doença. Com tudo isso, parece quase impossível não entender e aceitar uma representação social da doença como uma fatalidade da vida humana sobre a Terra, enfim como algo natural; e, correlativamente, uma representação da saúde como uma resposta a esta fatalidade, que, como o remédio, consistirá necessariamente em algo artificial, uma mercadoria, um produto, um serviço, exterior, a ser vendido (ou garantido como direito, num contexto histórico de sociedade do bem-estar) ao homem. A saúde e a doença, segundo esta representação, dominante entre nós, são, pois, prisioneiras desta relação: fatalidade natural/resposta cultural. Rompendo com a visão fatalista Ora, a Promoção de Saúde, se veio para se configurar como um novo paradigma para a saúde e não como um mero modismo, deve romper com esta visão ou perspectiva tão solidamente arraigada, admitindo a idéia e assumindo suas conseqüências práticas, de que a doença não é uma fatalidade e que a saúde tampouco é uma resposta a ser permanentemente reproduzida a esta fatalidade. Mas para que se possa avançar no tema é preciso que se discuta o que significa romper com esta visão e quais as tarefas correspondentes. Romper com esta visão implica, em linhas muito amplas, relacionar-se com a natureza de modo não predatório ou antiecológico; reformar as cidades e o modo de produção urbano e rural, e rever o modo de relacionamento do homem consigo mesmo e com seus semelhantes. Tarefas gigantescas, por certo, ninguém negará, mas passíveis de serem enfrentadas se as virmos, weberianamente, como modelos, tipos ideais e como macroempreitadas, a serem decompostas em tarefas exeqüíveis e regionais do (entre outros) setor saúde. Qual a especificidade do setor saúde no que diz respeito a esta tarefa? Tal especificidade não poderia deixar de ter a ver com o objeto, que caracteriza e deve continuar a caracterizar o setor saúde, que é a doença, e implica entender e enfrentar esta doença não como uma fatalidade, mas como algum tipo de sintoma dos grandes desarranjos ecológico-ambiental, urbano, produtivo e propriamente humano. É fácil imaginar a extensão e a ambição desta tarefa: modificar radicalmente o significado da doença, fazendo-a passar de uma questão científico-tecnológica para uma questão filosófica e política; e, ademais, é claro, mantendo-se concomitantemente um sistema de cuidados de base científico-tecnológico uma vez que, enquanto a sociedade aprende a entendê-las como signos de desarranjos ou desequilíbrios estruturais, as doenças vão continuar representando ameaças de curto prazo que, pela sua gravidade (por serem ameaças de morte, de sofrimento, de mutilação) não podem deixar de ser socialmente enfrentadas com base justamente num sistema de cuidados de base científica e tecnológica que, paradoxalmente, é o grande responsável pela representação da doença como uma fatalidade. Eis os grandes desafios da Promoção de Saúde (que, diga-se de passagem, sempre foram os da própria Saúde Pública ou Coletiva): entender que o sonho da Saúde Coletiva, ou da saúde para toda á coletividade não pode ser responsabilidade exclusiva da C&T e que só pode ser pensado tendo como pano de fundo ou horizonte a erradicação da doença, processo que, por sua vez, só pode ser empreendido inserindo-se esta doença numa ampla, complexa e intricada rede de causalidade ligada aos desarranjos estruturais acima descritos, o que, em última instância implica entender e admitir que se os indivíduos adoecem e morrem antes do tempo é porque, numa larga medida, as sociedades estão doentes, e se as sociedades estão doentes, a "culpa", de uma perspectiva foucaultiana, é de todos nós e de nenhum outro. Crítica da saúde como positividade ou saúde como negação da negação Se quisermos entender o que vem a ser Promoção de Saúde será necessário, também, além de revisitar a doença, tornar mais claro o sentido da "saúde" que desejamos promover. Isto porque saúde não é um conceito auto-explicável, nem óbvio, nem evidente; muito ao contrário. Com base nesta temática, o presente texto pretende, tendo a Promoção de Saúde como pano de fundo, refletir sobre a Saúde-da-Promoção-de-Saúde, bem como sobre a diferença entre Promoção de Saúde e Prevenção de Doenças. Saúde da Promoção de Saúde Que tipo de saúde deve ser a Saúde-da-Promoção-de-Saúde? A resposta habitual que tem sido dada é que deve ser a chamada saúde positiva (é claro, antes de mais nada, pela conotação favorável associada ao termo "positivo" e pela conotação desfávorável associada a "negativo"). Mas, mais tecnicamente, porque considera-se que o modo atual de conceber a saúde (em que ela é vista "negativamente" como ausência de doença) é inadequado, ou incorreto, ou insuficiente porque revela uma visão fragmentada e reducionista, tendo como base um modelo estreitamente biomédico (Czeresnía & Freitas, 2003). A Promoção de Saúde seria então uma reação "positiva" a este modo "negativo" de conceber a saúde: a visão "positiva" apontaria para uma percepção ampliada, integrada, complexa, intersetorial, relacionando saúde a meio ambiente, ao modo de produção, ao estilo de vida, etc. A Carta de Ottawa (Ministério da Saúde, 1986) fala: "A saúde deve ser vista como um recurso para a vida e não como um objetivo de viver. Nesse sentido, a saúde é um conceito positivo [grifo nosso], que enfatiza os recursos sociais e pessoais, bem como as capacidades físicas. Assim, promoção de saúde não é responsabilidade exclusiva do setor saúde [grifo nosso], e vai para além de um estilo de vida saudável, na direção de um bem-estar global." Conceito positivo, neste documento, está sendo entendido como sinônimo de visão ampliada. A visão negativa estaria então, por dedução, associada a uma crítica à idéia de saúde como um fim em si mesmo, como algo que se pudesse ter (ou deixar de ter), postulando-se, em contraposição, uma visão da saúde como meio ou recurso para a vida. Por outro lado, responsabilidade não exclusiva do setor saúde implica entender que o chamado "setor saúde" tem sido, sobretudo, responsável, pelo atendimento à doença e que a saúde não será obtida pelo mero atendimento à doença mas, que para a sua obtenção (o que está presente na mesma Carta na sessão: "Pré-requisitos para a saúde") os recursos necessários são paz, habitação, educação, alimentação, renda, ecossistema estável, recursos sustentáveis, justiça social, eqüidade, e que para a mobilização destes recursos seria necessária a participação de outros setores. De um modo geral, o raciocínio explicito ou implícito na quase totalidade dos textos que conceituam Promoção de Saúde, com uma ou outra variação de estilo, é o de que o chamado setor saúde não consegue, sozinho, dar conta dos problemas de saúde, ou seja, das doenças, uma vez que estas são resultantes ou determinadas por condições largamente extra-sanitárias. Com base neste raciocínio, propõe-se a estratégia da Promoção de Saúde como uma interferência integrada ou intersetorial nestes determinantes gerais. Adotando-se a proposta de Promoção de Saúde assim conceituada, a saúde, impregnada em todo o tecido social, perderia sua característica regional, localizada, setorizada e negativa de "ausência de doença", decorrente de ações de assistência médica proporcionadas pelos serviços de saúde, passando a adquirir uma nova conotação "positiva", batizada em boa parte da literatura de Promoção de "qualidade de vida". Ora, se examinarmos os sentidos deste raciocínio vemos que podem trazer conseqüências indesejáveis se não explicitados devidamente. Com efeito, verifiquemos, em detalhe, os sentidos da idéia de que a saúde não é mera ausência de doença, que deve ser entendida num registro positivo e que deve ser buscada na sociedade como um todo. Isto pode significar que a simples ausência ou retirada da doença de uma pessoa ou coletividade, como efeito do consumo de medicamentos, por exemplo, conduta largamente hegemônica na área da saúde, não implica necessariamente a presença da saúde porque a doença pode voltar, uma vez que a ação que provocou a retirada não consistiu numa interferência nas chamadas causas básicas ou determinantes das doenças - que são largamente extra-sanitárias - mas apenas em seus efeitos mais imediatos. Ou pode significar que a saúde tem menos a ver com o campo regional da saúde e mais a ver com o campo global da sociedade, onde deve, sobretudo, ser buscada. Caso se opte pela primeira alternativa, o sentido profundo da idéia ali presente é o de que a saúde não deve ser vista e praticada como ausência, mas como busca da erradicação das doenças; e como as causas básicas que levam à erradicação da doença e à obtenção da saúde residem na sociedade como um todo, em suas várias dimensões, para erradicar a doença e obter a saúde é preciso interferir nestas distintas dimensões. É claro que este poderia ser o enunciado de uma legítima missão para Promoção de Saúde, ainda que não diferisse em muito do enunciado da missão da epidemiologia social ou da própria Saúde Pública ou Coletiva. Caso se opte pela segunda alternativa isto implica borrar toda a enorme e complexa cadeia de mediações que liga o setor saúde à sociedade, localizando a saúde diretamente no plano global, onde devem centrar-se as ações de Promoção de Saúde: uma estratégia típica de Promoção de Saúde, como o movimento das Cidades Saudáveis ou a recomendação, que também faz parte da literatura de Promoção de Saúde, de que todas as ações governamentais devem ter como objetivo a saúde, ambas - a estratégica e a recomendação - parecem derivar logicamente desta visão. Apesar de seu apelo de marketing, esta visão diretamente positiva da saúde não se sustenta. A nosso ver, ao contrário, para se pensar a saúde positivamente é preciso retomar a visão dialética e mediatizada das coisas e entender a noção de positivo não em si mesma mas, relacional e processualmente, como negação da negação. Com efeito, se estamos insatisfeitos com o modo de conceber, praticar e obter saúde, a solução por certo não implica em descolar a saúde do seu leito natural - o setor saúde - porque assim fazendo não há como encontrar a saúde "positiva" ou ampliada no final do processo. De um modo geral podemos afirmar que descolar a saúde do seu campo é um dos grandes pecados do movimento de Promoção de Saúde, implicando atitudes ingênua, fantasiosa e voluntarista. Por isso mesmo soa (muito) estranho entender que para obter saúde é preciso, "positivamente" deslocar a arena de luta para o plano da sociedade global (espaço indiferenciado de poder que reúne todos os setores: habitação, trabalho, meio ambiente, etc.) deixando para o "setor saúde" (a ser posteriormente rebatizado de "setor doença") a responsabilidade pela doença. Nessa linha, a saúde propriamente dita seria a única área ou setor que não é um setor porque é uma soma de setores: habitação, renda, segurança, meio ambiente, etc., inclusive até saúde (ou seja, doença) tudo isso sob a alegação de que sem habitação, renda, segurança, os indivíduos e as coletividades não podem ter saúde; como se o mesmo raciocínio não valesse também, em tese, para os outros setores: afinal, para ter habitação é também preciso ter saúde, da mesma forma que para ter emprego, educação, etc. Enfim, do modo com as coisas são habitualmente colocadas, a Promoção de Saúde pode levar a um grave desentendimento a respeito das relações entre saúde e doença, plano setorial e plano global, especificidade e generalidade. A nosso ver, se a Promoção de Saúde representa uma possibilidade concreta (ainda que, realisticamente, considerando as atuais circunstâncias, difícil de ser concretizada) de ruptura de paradigma no campo da saúde, a sua novidade consiste na recuperação (em novas bases, levando em conta a realidade objetiva da sociedade globalizada e informatizada e as aquisições teóricas da chamada pós-modernidade) daquilo que foi e continuará sendo a utopia norteadora da Saúde Pública na sua versão progressista, ou seja, interferir - a partir do setor saúde, mobilizando o conhecimento técnico específico acumulado historicamente no campo sanitário - no processo saúde-doença como signo ou indicador de desarmonia, desequilíbrio importante e estrutural nos modos de produzir, viver, morar e, de um modo geral, nas relações do homem consigo mesmo, com os outros homens, com a natureza, utopia esta que perdeu-se, progressivamente, com a consolidação, no mundo contemporâneo, em decorrência das características estruturais deste mesmo mundo, de uma medicina e uma Saúde Pública de base tecnológica, alicerçadas ambas numa visão estreitamente biomédica da doença, vista como uma condição adversa a ser unicamente enfrentada pelo consumo individual ou coletivo de produtos e serviços (tanto de natureza curativa quanto preventiva), crescentemente sofisticados. A Promoção de Saúde: obtendo a saúde positiva como negação da negação A Promoção de Saúde pretende ser um novo modo de compreender a saúde e a doença e um novo modo dos indivíduos e das coletividades obterem saúde não porque constitua uma "novidade" (até porque a Promoção faz parte da história da Saúde Pública). A Promoção de Saúde representa o novo porque procura conceber a saúde como negação da negação (isto é, da doença), o que significa, no final do processo, encontrar um novo (e não o mesmo) equilíbrio na relação homem-homem e na díade homem-natureza. Em grandes linhas, o que vem a ser esta dupla negação? No começo do processo temos um estado de saúde equilibrado, cujo equilíbrio é negado por uma doença instalada ou por vir, que perturba o equilíbrio inicial: esta é a primeira negação ou negação primária. Antes de prosseguir é importante assinalar que quando estamos falando deste estado inicial de saúde equilibrado, que é desequilibrado pela doença, não estamos (vale frisar, neste momento) sendo portadores de qualquer juízo de valor explícito ou implícito sobre a sociedade em questão, nem estamos entrando em qualquer tipo de querela essencialista e "a-histórica" sobre o que vem a ser "saúde" ou "doença" - discussão de resto completamente inútil em se tratando de conceitos tão amplos e polissêmicos como os em questão; estamos apenas fazendo uma descrição histórica (e óbvia) das formações sociais atuais nas quais este tipo de representação social da saúde e da doença é vivida, como toda ideologia, como absolutamente natural pelos atores sociais. Como é tratada ou enfrentada, tradicionalmente, pela Medicina e pela Saúde Pública vigentes, esta negação primária do equilíbrio, produzida pela doença? Com uma intervenção no (s) corpo(s) do(s) doente(s) (remédio, vacina, cirurgia, etc.) ou nos agentes diretos ou indiretos (vetores, vírus, água, etc.) visando restabelecer a condição de equilíbrio inicial perturbada. Vê-se então que a doença, em si mesma, não é negada, o que é negado, temporariamente, é o efeito desta doença no organismo dos indivíduos. Assim, esta negação da doença é primária porque encerra o processo sem afetá-lo, mantendo-o enquanto estrutura. Tudo isso faz parte, é claro, da representação social da doença como fatalidade, como foi descrita acima. A negação secundária, ou negação da negação, ao contrário, sendo ou sugerindo uma intervenção sobre a doença, nega esta doença como negação, ou seja, nega-a uma segunda vez, negando as condições que geraram a sua existência, permitindo assim a emergência de um novo processo, ou seja, a chamada, na terminologia da dialética, mudança de qualidade. Não há como chegar diretamente à saúde positiva sem passar pelas doenças e, conseqüentemente, pelo setor saúde. O setor saúde é o espaço, nas sociedades atuais, onde a doença é entendida e enfrentada, onde os recursos humanos, tecnológicos e financeiros são investidos. Por tudo isso, o setor saúde é a arena política e simbólica onde a luta entre as diferentes visões da saúde e da doença deve ser travada. Recolocar a Promoção de Saúde nos trilhos do setor saúde vai permitir, pelo menos em tese, ver com clareza que as doenças, enquanto negatividades, são, paradoxal e dialeticamente, positividades, uma vez que constituem referências obrigatórias que nos permitem conceber, na teoria, e engendrar, na prática, a saúde enquanto positividade. De fato, enquanto negatividade, a doença tem condições de chamar a atenção e sinalizar, para o homem, que alguma coisa não vai bem com os indivíduos ou com as coletividades doentes e que, portanto, é preciso fazer alguma coisa não apenas para afastar a ameaça que a doença representa mas, também, para entender a natureza íntima desta ameaça e, com isso, no limite, eliminá-la, para sempre. Promoção e prevenção O movimento preventivista, na medida em que consistiu num esforço de se antecipar à doença, poupando a energia e os custos econômicos e psicológicos do tratamento, representou um importante passo nesta direção de entender a natureza da doença e limitar a sua carga ameaçadora. Mas a prevenção tem um alcance necessariamente limitado. Por isso, para entender a Promoção de Saúde como mudança de paradigma é preciso também enfrentar uma discussão que permita distinguir Promoção de Saúde e Prevenção de Doenças, já que a prevenção está ainda associada ao antigo paradigma: Em que consiste o modo tradicional e dominante entre nós (brasileiros vivendo no mundo e no Brasil, no ano 2004) de entender saúde e doença, de obter saúde, para cada um e para todos e de se proteger da doença? A maioria de nós acredita - e não deixa de ser verdade - que saúde é aquilo que um determinado indivíduo, uma pessoa singular, tem, ou não tem, ou está com, ou não está com. Nesta definição já vem implícita a de doença, já que doença é quando este mesmo indivíduo não tem ou não está com saúde (Lefevre, 1999). Muitos de nós, mesmo os que não conhecem Saúde Pública, sabem, também, que as coletividades podem estar saudáveis ou, endêmica ou epidemicamente doentes (Barradas, 2000). Tradicionalmente também entende-se que estes indivíduos obtêm ou reobtêm saúde quando, em decorrência de uma dada intervenção ou tratamento (uma cirurgia, uma tratamento com remédios, fisioterapia, tratamento psicológico, etc.) deixam de ter ou de estar com alguma doença ou ficam com esta doença controlada (no caso da hipertensão, por exemplo) ou minimizada (por exemplo, as pessoas que sofreram um acidente grave e que, em decorrência de uma intervenção ou tratamento deixam de morrer, mas ficam com seqüelas, tais como paralisia dos membros inferiores). Da mesma forma, as coletividades têm ou estão com saúde quando não têm ou não estão com qualquer doença endêmica ou epidêmica ou quando nenhuma delas está se manifestando na coletividade. Similarmente, as coletividades obtêm ou reobtêm saúde quando, por exemplo, é aplicada vacinação em massa para que uma determinada epidemia seja debelada. No artigo referido acima, Barradas (2000) oferece uma série de exemplos de epidemias debeladas em São Paulo. Os brasileiros e cidadãos do mundo atual (Bunton et al., 1996) também acreditam que os indivíduos obtêm saúde quando, ingerindo vitaminas, fazendo ginástica, exercícios, utilizando alguns produtos especiais como iogurtes, por exemplo, ou fazendo cirurgias plásticas, supostamente, melhoram seu estado ou seu desempenho pessoal, estético, profissional, sexual, doméstico, atlético, intelectual, etc. A maioria de nós igualmente entende que os indivíduos protegem-se contra as doenças adotando, individualmente, medidas preventivas como vacinar-se, usar camisinha, usar cinto de segurança, alimentar-se bem, não tomar sol depois das dez da manhã, realizar exames laboratoriais e radiológicos periodicamente, tomar vitamina C, etc. As comunidades também protegem-se ou são protegidas quando o governo adota medidas preventivas como vacinações, barreiras sanitárias para impedir que indivíduos contaminados de um determinado país entrem no Brasil, inspeção permanente de alimentos oferecidos ao consumo público para evitar intoxicações alimentares, visitas às casas das pessoas para detectar focos de mosquitos transmissores de doenças, etc. Promoção não é prevenção E a Promoção de Saúde, o que é e o que faz então? Antes de mais nada é preciso dizer que Promoção de Saúde não é sinônimo de Prevenção de Doenças (Nutbean, 1986), uma vez que, com freqüência, mesmo entre os teóricos respeitados da Promoção, como, por exemplo, Labonte (1998), os dois termos aparecem indissociados; ora, se Promoção e Prevenção querem dizer a mesma coisa, pergunta-se qual a razão da existência de dois termos para dizer a mesma coisa? Mas há também que eliminar um equívoco persistente e que tem a ver com o fato de que, desde a clássica formulação de Lewel e Clark (1976), Promoção de Saúde vem sendo entendida como um subconjunto da Prevenção, ou, mais precisamente, como um nível (o mais básico, abrangente e inespecífico) de Prevenção (Czeresnia & Freitas, 2003 ), envolvendo condutas individuais como alimentar-se bem, fazer exercícios, não fumar, ou ações de governo ou de Estado como implantação de redes de saneamento básico, construção de escolas, melhora de transportes coletivos, etc. Assim sendo, tanto numa escala individual quanto coletiva, o termo Prevenção deve, a nosso ver, ser reservado para toda medida que, tomada antes do surgimento ou agravamento de uma dada condição mórbida ou de um conjunto dessas condições, vise afastar a doença do doente ou vice-versa, para que tal condição não se manifeste (ou que tenha diminuída a sua probabilidade de ocorrência) ou manifeste-se de forma menos grave ou mais branda nos indivíduos ou nas coletividades. A Promoção, por outro lado, para se diferenciar da Prevenção, caracterizaria uma intervenção ou conjunto de intervenções que, diferentemente da Prevenção, teria como horizonte ou meta ideal a eliminação permanente, ou pelo menos duradoura, da doença porque buscaria atingir suas causas mais básicas, e não apenas evitar que as doenças se manifestem nos indivíduos e nas coletividades de indivíduos. Trata-se de um horizonte, de uma imagem-objeto (Almeida, 1997) ou de uma utopia porque a maioria de nós acredita firmemente e continuará acreditando por longo tempo, que toda a problemática das doenças resume-se, no fim das contas e mais decisivamente, ao fato de elas são coisas fatais, que acontecem nos corpos e nas mentes dos indivíduos e que, como tal, isto é, como fatalidades corpóreas, devem ser tratadas, com base num conhecimento científico especializado (cada vez mais) sobre o corpo e a mente. Sem deixar de reconhecer - a curto prazo, é claro - que os indivíduos e as coletividades precisam ser tratados das doenças que os acometem, que também devem proteger-se das doenças e serem protegidos contra elas, a Promoção de Saúde propõe, para além disso, que estas doenças sejam, elas próprias, minimizadas, erradicadas, eliminadas do mundo, do meio ambiente, das cidades, etc. Nesse sentido a Promoção de Saúde como ruptura de paradigma significa um importante deslocamento de objeto e de enfoque, do doente em direção à doença.2 Assim, de acordo com a Promoção de Saúde, em tese, os indivíduos ficariam sem doença não porque as doenças foram, através do tratamento, afastadas deles, ou porque, através da prevenção, as doenças foram impedidas de chegar até eles, mas porque foram, elas próprias, atacadas para serem erradicadas, eliminadas ou minimizadas. Ora, é claro, se não existirem mais doenças também não existirão mais doentes; os indivíduos então seriam ou estariam, para sempre, ou mais tempo, com saúde porque não haveria mais doenças a serem contraídas ou geradas (genética, ambiental e socialmente). Dois grupos de pressupostos Podemos esquematizar o tema sob a forma de dois grandes grupos de pressupostos: o primeiro grupo referindo-se às estratégias curativa e preventiva de enfrentar a doença e obter a saúde e o segundo grupo referindo-se às estratégias da Promoção de Saúde. Primeiro grupo de pressupostos - estratégias curativas e preventivas: - as doenças sempre existiram e sempre existirão; - as doenças são estados alterados ou carenciais dos organismos humanos; - os estados carenciais e desequilibrados do organismo humano devem ser enfrentados por técnicos em doenças, que são os profissionais de saúde; - os profissionais de saúde devem enfrentar as doenças nos indivíduos, ou evitar que estas doenças atinjam os indivíduos, usando máquinas, produtos e serviços baseados na ciência e na tecnologia; - com base em ensinamentos destes profissionais, os indivíduos leigos devem se comportar de modo a evitar a presença da doença em seus organismos; - para ter saúde, reobter saúde e se proteger das doenças é preciso consumir produtos e serviços que ofereçam saúde e proteção contra as doenças. Segundo grupo de pressupostos - estratégias de Promoção de Saúde: - as doenças sempre existiram e algumas doenças, provavelmente, continuarão existindo para sempre; - muitas doenças podem deixar de existir ou terem seus efeitos minimizados para sempre; - muitas doenças são estados alterados ou "carenciais" do organismo humano que têm como causas, evitáveis, comportamentos inadequados do ser humano e/ou erros, desajustes, desequilíbrios, na biologia do ser humano, no meio ambiente natural e no meio ambiente social onde estes indivíduos vivem; - doenças podem ser enfrentadas pelos indivíduos com vistas à sua erradicação, com base em ensinamentos e informações técnicas quando estes indivíduos adotam, voluntariamente, um estilo de vida saudável; - doenças podem ser enfrentadas, com vistas à sua erradicação, por intervenções ou conjuntos de intervenções de natureza médico-sanitária ou extra-sanitária, isto é, política, administrativa, gerencial, urbanística, educacional, informativa, etc. (tendo sempre, neste caso, o setor saúde como indispensável retaguarda técnica), nos organismos humanos, no meio ambiente natural e no meio social visando atingir as causas mais básicas das doenças. Os pressupostos das estratégias curativas e preventivas de enfrentar a doença e obter saúde são coerentes com os princípios que regem as sociedades e as culturas de hoje em dia, baseadas na produção incessante e sempre renovada de todo tipo de mercadorias e serviços (baseados na ciência e na tecnologia) que são oferecidos para o consumo de contingentes cada vez mais amplos de indivíduos, num mercado "mundializado". Em sociedades deste tipo, tudo tende a virar produto de consumo e o campo da saúde e da doença não apenas não foge a esta regra como se torna objeto de grandes investimentos. Ora, se a saúde e a doença viram objetos de consumo a tendência é para que as pessoas pensem que o único modo racional, científico e seguro de enfrentar e se proteger contra as doenças e obter saúde é comportar-se como um consumidor; o que significa pensar também que saúde é uma necessidade como qualquer outra: assim como consumo roupas para proteger meu corpo do frio, automóveis para me locomover, também devo consumir medicamentos, consultas médicas, cirurgias, etc., para tratar e proteger meu corpo contra um estado carencial da mesma natureza que a fome, o frio, etc., que é a doença. Que, por conseqüência, doença é uma necessidade, ou seja, uma "coisa" que sempre existiu e sempre existirá. Em suma, que obter saúde, tanto para se tratar quanto para se proteger das doenças, é um comportamento de consumo, isto é, algo - como um automóvel, por exemplo - que cada um ou cada família deve obter individualmente e, portanto, de acordo com as suas posses. Fica claro então que a Promoção de Saúde implica um novo modo de ver a saúde e a doença e também uma mudança social significativa em direção a uma sociedade que não seja, com as atuais, tão dominada pelo princípio da produção para o mercado e para o lucro e pelo consumismo generalizado. Para a Promoção de Saúde, saúde não deve ser vista como um bem de consumo mas, como está consagrado na Constituição brasileira, como um direito de todos. As pessoas, por certo, precisam ser tratadas das doenças e protegidas contra elas, mas também têm o direito de viver numa cidade, num país, num meio ambiente, que não sejam, como acontece hoje em dia, geradores de doença, sofrimento, dor, violência, morte prematura. A doença não pode ser entendida com sendo uma coisa semelhante ao frio, à fome, à necessidade de locomoção, de abrigo, que são necessidades permanentes do ser humano. As doenças (ou pelo menos a maior parte delas) devem sempre ser vistas como anormalidades, como exceções, conseqüências de erros, desequilíbrios, injustiças, opções inadequadas, interesses mesquinhos, etc. Algumas doenças continuarão sempre existindo, mas um grande número delas pode deixar de existir se os homens mudarem seu estilo de vida, se passarem a construir e a viver em cidades e países saudáveis, ou seja, não geradores de doença e sofrimento, se passarem a se relacionar de maneira mais humana e menos competitiva com seus semelhantes, se passarem a se relacionar de modo menos destrutivo e predador com seu meio ambiente natural, se deixarem de apoiar, propor e implementar políticas de desenvolvimento econômico que sejam, como as atuais, socialmente excludentes, geradoras de recessão, desemprego e desigualdade na distribuição de benefícios. É preciso mais uma vez colocar que tudo o que foi enunciado acima é, hoje, apenas um horizonte, uma miragem, um sonho distante. Mas a Promoção de Saúde é uma estratégia e um processo que pode significar um caminho concreto nesta direção, contanto que seja, taticamente, vista em relação dialética tensional com a doença, da qual pretende ser uma negação radical na medida e apenas na medida em que esta negação implique a negação concomitante da atual sociedade de consumo de base tecnológica, ventre gerador da doença. Dialética ou simbiose? A título de conclusão, vamos examinar aqui, brevemente, os argumentos explícitos e implícitos que se costuma lançar mão, na literatura sobre o movimento de Promoção de Saúde, para argüir em favor da "saúde no positivo". Nesta literatura, saúde aparece como resultado das condições de vida, do meio ambiente sadio, da participação, de moradia e de trabalho, etc. A saúde está presente em todos os recantos e momentos de vida social e é responsabilidade de todos, indistintamente. Logo, a luta por saúde equivale à luta por melhores condições de vida, de trabalho, de moradia, pela posse da terra, etc.; logo, a saúde deve estar presente na agenda de todas as lutas setoriais; logo, também, a saúde deve estar presente como objetivo em todas as políticas públicas relativas a todas as áreas de governo relacionadas de alguma forma à saúde. Em conclusão: se o país como um todo melhorar as condições de vida da sua população, a distribuição de renda, a política ambiental, a educação, etc., a saúde de todos melhorará concomitantemente. O modo de vida atual é gerador de doença, por isso devemos viver de outro modo para não sermos ou ficarmos mais doentes. Além do mais, com base na crença de que idéias boas e generosas acabam um dia se impondo a todos, acredita-se que o movimento de Promoção de Saúde vai contaminar a sociedade e o mundo inteiro com estas idéias e que a luta por melhores e mais adequadas condições de vida e de trabalho vai aumentar em decorrência do movimento de Promoção de Saúde ter convencido as pessoas e as autoridades de que vivemos num mundo doente e de que, por isso, é preciso mudar este mundo. Ora, parece claro, que as possibilidades de qualquer coisa parecida com isso ocorrer são quase nulas, entre outros motivos porque, nesta visão, a relação da saúde com as condições de vida, de tão genérica e inespecífica, acaba ficando totalmente diluída e vaga e por isso completamente incapaz de funcionar como fator operante e catalizador de mobilização suficiente para provocar uma mudança social do porte que seria necessário para impactar significativamente as condições de saúde. Assim, o objetivo da Promoção de Saúde, para que ela possa, concretamente, representar algo parecido com uma mudança de paradigma no modo de entender e enfrentar a doença e, em decorrência disso, promover a saúde, deve ser muito mais objetivo e realista, tendo a ver com a produção e difusão do conhecimento sobre os modos de existência e funcionamento sócio-histórico das doenças em geral ou de cada doença ou grupo de doenças em particular, na sua relação com a nossa vida individual e coletiva, como insumo ou matéria-prima de políticas e/ou projetos de intervenção na realidade geradora dos complexos mórbidos, com vistas a promover, em decorrência, a saúde, tendo como horizonte e marco de referência ideal, um mundo sem doenças. A postura dialética aí é clara: a doença B representa uma negação ou desequilíbrio de uma situação A equilibrada e a intervenção promotora de saúde C, baseada e conseqüência do conhecimento práxico das causas mais básicas desta doença, é uma negação desta negação, gerando uma nova situação A, que representa uma evolução histórica gradual em direção a um mundo mais saudável. Se compararmos este esquema dialético com a relação saúde/doença subjacente aos modos atualmente hegemônicos de entender e lidar com a problemática da saúde/doença, veremos que aí a relação não é dialética mas simbiótico/tautológica. De fato, no contexto tradicional hegemônico, a doença B representa uma alteração da situação A de equilíbrio mas a intervenção (médico sanitária) C não representa uma negação desta negação e sim apenas um afastamento ou controle temporário da ameaça B, que permite o (desejado) retorno á situação A inicial de equilíbrio, revelando, assim, uma relação não de natureza conflitiva entre saúde e doença mas simbiótica e tautológica, já que a doença não significa aí uma verdadeira ameaça3 e sim uma prova da vitalidade de um sistema de saúde que, com fundamento em produtos e serviços de base científico-tecnológica, mostra-se capaz de responder, cada vez com mais eficácia e sofisticação tecnológica, aos desafios representados por uma doença, também cada vez mais ardilosa, tudo isso representando a reprodução do jogo ou disputa eterna entre as forças do Bem e do Mal. A conclusão é que para entender a saúde precisamos permanecer no campo semântico da doença ampliando nosso enfoque, trocando a visão limitada e regional da ausência de doença pela visão ampliada da erradicação das causas das doenças por intervenções intersetoriais, sob a coordenção do setor saúde, no plano de uma sociedade inclusiva. Mas apesar desta importante e significativa correção, este discurso da Promoção de Saúde continua enunciando uma verdade genérica que em si mesma não leva muito longe. Com efeito, se a doença e a saúde são determinadas pelas condições gerais de vida, trabalho, ambiente, etc., com certeza se trata, usando uma antiga porém ainda válida formulação marxista, de uma determinação em última instância que, enquanto tal, não configura nada além de uma crença, ou talvez uma hipótese, ainda que plausível, da qual por isso, não se pode, jamais, tirar, diretamente, conclusões ou propostas concretas de ação sem acumular conhecimento sobre os elos da cadeia causal (que esclarece as complexíssimas relações entre o biológico/mental e o socioeconômico-ambiental) dos processos mórbidos como um todo (se é que a "doença", de um modo geral, é um objeto real e não uma mera abstração) ou de cada processo ou conjunto de processos mórbidos. Ora, é claro que, apesar dos avanços da epidemiologia e da Saúde Coletiva como um todo, este acúmulo de conhecimentos é absolutamente insuficiente não só porque a tarefa é gigantesca mas também por motivos conjunturais ligados ao fato de que a pesquisa e a teoria social em saúde foram profundamente afetadas pela crise de paradigmas que paralisou os pesquisadores de esquerda e/ou levou-os a incursões incertas e puramente especulativas no terreno pantanoso do chamado pensamento pós-moderno e, por outro lado, porque a pesquisa biomédica avançou enormemente na direção precisamente contrária à do social, ou seja, em direção ao interior do interior molecular e genético do corpo humano doente e sadio. É claro também que este vazio, confusão e a incerteza decorrente podem explicar, mas jamais justificar, o ativismo voluntarista e a indigência teórica que caracterizam boa parte da atual Promoção de Saúde. A conseqüência de tudo isso é que a saúde não pode deixar de perseguir a meta que sempre foi a da Saúde Pública ou Coletiva ou da epidemiologia progressista, na sua dimensão acadêmica, ou seja, a busca, via pesquisa empírica ou teórica, do entendimento e da descrição dos processos complexos que levam ao estado de doença e à sua superação. Promoção de Saúde como a ação de decifrar signos A Promoção de Saúde, a verdadeira, precisa, então, operar um deslocamento de objeto, passando a buscar a saúde em outro lugar, não mais no corpo (como faz a Medicina) nem, genérica e diretamente, em todos os espaços sociais (como pretende a Promoção de Saúde ingênua, abstrata e voluntarista) mas exatamente nas relações entre os corpos/mentes doentes (ou tidos como tais) e a sociedade, que precisam ser entendidas ou decifradas para, a partir daí, constituírem objeto de intervenções transformadoras. Para a Promoção de Saúde que pretenda representar uma mudança efetiva em direção a um mundo melhor, com menos doença, a saúde precisa então ser buscada no mundo concreto e o mundo concreto é o mundo do signo, o concreto de pensamento a que se refere Althusser (1965), em seu funcionamento social; e o signo concreto em funcionamento social, que tem a saúde como imagem, objeto ou horizonte é a relação: doença ou corpo doente-sociedade, a ser descrita, sincronicamente, e dinamizada, diacronicamente, pela ação política da Promoção de Saúde, como um caminho concreto para um mundo sem doenças, que passa pela tarefa teórico-prática de decifrar/transformar o mundo ou, mais precisamente, a relação homem-mundo doente. Desconstruindo a doença como ameaça Sem dúvida, a doença como um ente histórico e sociocultural reveste-se, hoje, de uma dimensão de ameaça, de agressão, de ataque e, conseqüentemente, de defesa, de evitação; daí as metáforas guerreiras que a caracterizam, segundo Susan Sontag (1983). O tamanho, a natureza e a gravidade da ameaça, é claro, variam., assim como varia a decodificação, interpretação, ou avaliação desta ameaça pelo sujeito ameaçado; e, conseqüentemente, a natureza da resposta deste sujeito. Apesar desta variabilidade, o seguinte esquema básico de percepção ou representação da doença permanece, a nosso ver, constante e percebido como de caráter emergencial, mobilizando reações do tipo: "é preciso fazer alguma coisa, e rapidamente": Doença como ameaça ? resposta ? neutralização da ameaça Para se entender esta idéia de ameaça associada à doença é preciso qualificá-la esclarecendo que, no limite, ela aparece e é sentida - da mesma forma que a ameaça da violência ou do terror - sob o signo da emoção. Haddad (1999) coloca como uma das características do mundo atual a "importância crescente concedida às preocupações médicas (levando a uma) verdadeira hipocondria coletiva". Nos dias de hoje, toda carga utópica associada à saúde como um valor, cuja busca contribui para o devir humano ou se mercantiliza ou fica amesquinhada, empobrecida, grosseiramente reificada e cristalizada num puro agir, numa conduta largamente reativa diante da doença ameaçadora. A Promoção de Saúde, a doença e o entendimento cognitivo Uma das tarefas fundamentais da Promoção de Saúde consiste, pois, na denúncia (não político-panfletária mas teórico-descritiva) da mistificação implícita no ato de nomear saúde a um estado orgânico temporário de "bem-estar", obtido com o consumo individual e coletivo de produtos, serviços e procedimentos adotados em resposta à ameaça da doença. Para isso a Promoção de Saúde precisa sair do círculo vicioso implícito no esquema básico acima apresentado e adotar, diante da doença, uma atitude não afetiva mas cognitiva, reflexiva e crítica que permita fugir das armadilhas ligadas ao seu enfrentamento, como ameaça. Para a Promoção de Saúde, pois, a doença não deve representar uma ameaça e sim um desafio cognitivo. De fato, a Promoção tem como seu horizonte a instalação progressiva e definitiva da saúde, no lugar da doença. Ora, se ela não conseguir entender a doença no sentido de enfrentar, na raiz, as suas causas, para, com base neste entendimento e nesse enfrentamento, barrar a doença para colocar a saúde, definitiva e permanentemente no seu lugar, ela terá falhado na sua missão. Para a Medicina e para a Saúde Pública tradicional, todo o investimento é dirigido para controlar a doença, ou vigiá-la, ou enfrentá-la e, com isso, neutralizar o seu caráter essencialmente ameaçador. Desta perspectiva e neste contexto, sempre que a doença aparece como fato a ser noticiado, como objeto de pesquisa, de propaganda, de política pública ou sob qualquer outra forma, ou é para barrá-la ou para tratá-la. Promoção de Saúde e a doença concreta Mas para complicar mais o problema, o dilema da Promoção de Saúde se apresenta ao mesmo tempo na teoria e na prática. Isto quer dizer que é preciso, para erradicar ou minimizar a doença, não apenas entender, cognitivamente, as suas mensagens que dizem respeito às causas ou dimensões extramédicas das enfermidades, como também traduzir este entendimento em ações concretas de Promoção de Saúde. Ora, por isso, a Promoção vai ter sempre, de alguma forma, que inserir-se na prática da assistência, profundamente contaminada pela perspectiva "medicalizante". Isto exige grande habilidade técnica e estratégica para lidar com as questões da saúde e da doença considerando uma interação complexa que envolva os planos individual, micro e macrossocial e as temporalidades diferenciais de curto, médio e longo prazos. Normalmente, o indivíduo que vive no mundo de hoje quando acometido, ou quando em risco de contrair uma doença, sente-a como uma ameaça dirigida à sua pessoa (ou a um seu dependente próximo como filho, pais idosos, etc.) e espera que o serviço (dito "de saúde") proveja, muitas vezes em caráter de urgência, uma série de condutas terapêutico-preventivas destinadas a que ele possa, na escala do agir privado, fazer face ou afastar, com a maior eficiência e eficácia possíveis, os riscos contidos nesta ameaça. A expectativa do indivíduo é, pois, neste contexto, a de que haja um atendimento médico de qualidade. Ora, a questão (esfíngica) que fica é: como trabalhar com Promoção em tal situação? A informação como peça-chave Uma das alternativas mais fecundas nesta direção implica, a nosso ver, a criação, implementação e avaliação de estratégias, técnicas e rotinas de atendimento através das quais se busque mesclar os diferentes planos (individual, micro e macrossocial) e temporalidades da saúde e da doença. Ou seja, é preciso atender o paciente no plano individual ou de pequenos grupos, respeitando o tempo presentificado da ameaça da doença mas, ao mesmo tempo, articulando este atendimento com o plano macrossocial e com as temporalidades de médio e longo prazos, características da Promoção de Saúde. Nessa direção, a informação desempenha um papel de grande relevância. Por que? Porque, pelo seu caráter cognitivo, numa tradição que vem no mínimo desde a psicanálise freudiana, a informação é capaz, se bem administrada, evidentemente, de ajudar profissionais de saúde e usuários a fazer face, entender e dominar a doença como ameaça, neutralizando, digamos assim, a sua dimensão afetiva, inconsciente e irracional. De fato, a informação, e só ela, permite, em conformidade com os princípios da Promoção de Saúde, entender e compartilhar as razões, as causas e conseqüências da doença, como uma estratégia para ir colocando, gradual e irreversivelmente, a saúde no seu lugar. Para isso, contudo, a informação precisa estar organicamente incorporada tanto ao atendimento individualizado do paciente quanto aos espaços coletivos de espera e circulação das unidades de saúde, o que não vem acontecendo ou vem acontecendo de modo muito tímido e assistemático. Na escala do atendimento individualizado é preciso que seja passada a exata quantidade e qualidade de informação para que fique perfeitamente claro, para o paciente, todo o espectro de causas associadas à sua enfermidade e todas as possibilidades e riscos da intervenção. Assim, este repasse de informação estará contribuindo decisivamente para a obtenção, na escala individual, do máximo possível de ganho irreversível de saúde e de perda irreversível de doença; assim estaremos atuando frente à doença, ainda que na escala individual do paciente, da perspectiva da Promoção de Saúde, na medida em que, através da informação repassada ao paciente no bojo do seu atendimento4, a doença que o acomete vai sendo contextualizada e remetida aos processos coletivos de determinação - dos quais o paciente é parte integrante como subjetividade. Numa escala mais coletiva, dos espaços comuns das unidades de saúde, a informação deve estar, sobretudo, a serviço da formação da cidadania, ensejando o conhecimento dos problemas de saúde do país e viabilizando a participação ativa dos usuários do serviço nos problemas locais de saúde. Mas para que cumpram suas funções estes repasses precisam ser devidamente qualificados: trata-se de uma informação que deve ser não normatizada e despida do ranço paternalista e autoritário da educação em saúde, para ser passada no contexto de uma relação comunicativa de tipo dialogal e de troca com o paciente, sem perda do caráter técnico, inerente à informação especializada. Caso isso não aconteça, toda a eficácia, em termos de Promoção, da ação informativa tende a se perder porque, passada de um modo autoritário ou paternalista, a informação baseada na lógica epidemiológica e de saúde coletiva, não vai nunca conseguir penetrar e afetar as representações sociais fundadas na lógica do cotidiano, características do pensamento do senso comum, nem conseguir barrar o consumismo irracional, afetivo e reativo, patrocinado pela indústria da doença. Comunicação social em saúde, lógica sanitária e lógica da população De fato, o desenvolvimento, entre nós brasileiros, da comunicação social em saúde, como parte da dimensão subjetiva da saúde, vem sendo persistentemente dificultado devido a um impasse de natureza estrutural que preside as relações comunicativas entre as autoridades sanitárias / profissionais de saúde e a população / usuários / clientes / consumidores, que decorre de um conflito entre a lógica sanitária, que preside os sentidos dominantes no campo sanitário e a lógica do senso comum ou da população, que preside os sentidos dominantes no universo do senso comum. Isto tem a ver com o fato de que a população e os profissionais de saúde sempre falaram, e continuam falando e atuando, sobre a saúde e doença de dois lugares ou espaços sociais (Bourdieu, 1990) bastante distintos. Esquematicamente podemos dizer que os profissionais de saúde falam e atuam sobre saúde/doença a partir dos serviços (hospitais, centros de saúde, clínicas privadas), das universidades ou do aparelho de estado ligado à saúde (Secretarias da Saúde, Ministério da Saúde). Mesmo quando esta fala é veiculada pela mídia, os profissionais de saúde são identificados, nas matérias, como membros da Academia, dos serviços ou do aparelho de estado da saúde. Já as pessoas comuns falam e atuam sobre a saúde a partir de seus espaços geográficos e sociais próprios, isto é, das suas casas, de seus escritórios, de suas fábricas, de seus serviços e até da rua. Nesse sentido é fácil perceber um poderoso conflito na medida em que, sendo a saúde e a doença entendidas, de acordo com a representação social dominante na época atual, como um assunto técnico-científico, a fala profissional é uma fala legal, socialmente autorizada, porque vinda de um espaço técnico-científico (Santos, 1996) enquanto a fala do indivíduo comum é leiga, desautorizada, prosaica, ilegal, deseducada, porque proveniente de um espaço vivencial, da cotidianidade. Sendo assim não haveria diálogo possível entre as partes mas apenas uma prática discursiva (Spink, 1999) e comportamental regida por relações assimétricas de mando/obediência; prescrição/cumprimento da prescrição independentemente do fato destas relações serem mais autoritárias ou mais "gentis" (Wilson, 2003), mais ou menos participativas , ou "educativas", ou cooperativas", o que não muda em nada sua natureza estruturalmente assimétrica. Mas um importante componente vem perturbar esta assimetria estrutural, deixando, em tese, espaço para o seu questionamento. Com efeito, o profissional fala científica e tecnicamente sobre um objeto tecno-científico (a saúde/doença) mas este objeto sobre o qual ele fala, com autoridade, se por um lado lhe pertence como objeto científico, de estudo e intervenção, por outro lhe é radicalmente exterior, implicando, além disso, alteridade na medida em que pertence, enquanto sentimento de corporiedade (Turner, 1989), ou seja, sensação física e emocional, objeto de direito, locus de autonomia, à pessoa, ao indivíduo dono de seu corpo. Isto é, a saúde e a doença são objetos técnicos/científicos operados por cientistas/técnicos mas também e contraditoriamente atributos e condições de sujeitos humanos. Este conflito dá nascimento, entre outras coisas, ao campo da Bioética como um espaço de reflexão e de prática sobre a autonomia5. Mas, se por um lado o fato do corpo e da corporiedade permitirem, em tese, aos indivíduos comuns reapropriarem-se, pelos menos em parte, como sujeitos, da sua saúde e da sua doença, ainda sobra amplo espaço para a manutenção e reprodução das relações de dominação anteriormente mencionadas. De fato, a saúde e a doença como "coisas técnicas" conferem aos profissionais de saúde o poder de vida e de morte sobre os indivíduos comuns: na medida em que estes profissionais detêm a chave da explicação ou do conhecimento da saúde e da doença detêm, necessariamente, a chave da vida e da morte. Mas, por outro lado, como se assinalou, esta vida e esta morte não pertencem a Ele, profissional, mas ao Outro, o leigo: a saúde e a doença são atributos, propriedades (morais e jurídicas) sentimentos, sensações das pessoas comuns que a vivenciam e a ela atribuem significado, no espaço e no tempo da sua cotidianidade. Ora, para sair desta situação de impasse configura-se a necessidade de uma diagnose (Cardoso de Melo, s/d), ou seja, de um conhecimento a dois, que possa dar lugar a uma pedagogia dialogal de inspiraçao freiriana, que coloque frente a frente, em oposição dialética, a lógica sanitária e a lógica da população, para que uma possa aprender da outra e para que dessa aprendizagem recíproca cresça e se desenvolva o estado (subjetivo) de saúde da população brasileira. Para isso duas condições são requeridas, uma negativa e outra positiva. Negativamente, é preciso que a nossa cultura como um todo entenda que o fato, inquestionável, da saúde e da doença ser, hoje mais do que nunca, uma coisa técnica, um objeto do conhecimento científico e da intervenção tecnológica, não significa, de modo nenhum que deixe de ser uma coisa humana; e, sobretudo, que o conhecimento científico de propriedade do profissional de saúde não gera, do outro lado, isto é, do lado do indivíduo, como contrapartida automática, o desconhecimento, a ignorância. Esta significativa mudança na representação hegemônica sobre saúde e doença implica que todos, profissionais e indivíduos, devem entender e assumir, plenamente, que tal mudança não se dará jamais pelo processo habitual de "Educação Sanitária da População", empreendimento controlador de tipo foucaultiano que, independentemente da sua maior ou menor "modernidade" consistirá, sempre, em difundir, junto à população, através de campanhas, notícias ou matérias de jornais, atividade educativa nas escolas, Internet, consultas médicas e outros meios, fragmentos de conhecimento científico sobre saúde e doença em quantidade e qualidade apenas suficiente para gerar obediência às prescrições técnicas e/ou consumo de produtos e serviços médicos, odontológicos, nutricionais. Para que a mudança ocorra será preciso um deslocamento da Educação para a Informação que deve, sobretudo pela via da modalidade discursiva do diálogo legalmente instituído6, ser amplamente disponibilizada para uso e usufruto da cidadania. Mas, para que isso aconteça é absolutamente necessária uma significativa ampliação, via pesquisas empíricas de corte qualiquantitativo (Lefevre & Lefevre, 2003) do conhecimento sobre os diversos aspectos do sentido atribuído pelos diferentes tipos de pessoas comuns aos diversificados aspectos da saúde e da doença, enquanto eventos que tem seu lugar nos espaços e nos tempos próprios das suas cotidianidades de jovem, criança, idoso, mulher, trabalhador, etc. É neste quadro teórico de referência que Promoção de Saúde, como assinala Labonte (1998), tem entre suas caracteristicas o fato de transitar do power over para o power with via empowerment da cidadania, pode representar uma estratégia de eleição para o cumprimento da importante missão política do movimento sanitário que consiste em desconstruir a doença como ameaça para reconstruí-la como desafio cognitivo e prático. Informação para a saúde versus educação para a saúde Quando se pensa na Promoção de Saúde uma das dimensões que ressaltam é a socializadora, isto é, quando a promoção é vista especificamente como atividade de difusão da informação. Evidentemente, a Promoção de Saúde é muito mais que a difusão de informação mas é também difusão de informação. Neste contexto, a expressão processamento não normatizador da informação é a que melhor reflete, a nosso ver, uma visão adequada das coisas. A postura implícita na idéia de processamento não normatizador é radicalmente não autoritária já que, em conformidade com ela, não se trata, para a Promoção de Saúde, em nenhum momento, de "educar" mas de informar e dialogar com vistas a tomada ou não de uma decisão por aqueles que deveriam ser, em última instância, os tomadores de decisão, isto é, a sociedade, os grupos e até mesmo os indivíduos, no espírito das propostas de "consentimento esclarecido" (Fortes, 1998). Educar vem do latim educere, que significa conduzir: e é isto, sob forma explícita ou mascarada, que vem sendo feito, desde sempre, no campo da saúde, com base na idéia (falsa) de que, em se tratando de saúde, a condução se justifica já que se trata de uma "boa causa" (o combate à doença). Hoje em dia, mesmo algumas iniciativas francamente "participativas" implicam, no fundo, como vender a minha (de profissional da saúde) "boa" idéia utilizando o máximo possível a terminologia e os valores do educando que, assim, acaba participando, junto com o educador, da sua própria doutrinação. É preciso então entender que a proposta educativa de tipo "conducente", na Promoção de Saúde, deve ser abandonada em favor da proposta informativa porque as pessoas não devem (e muitas não querem, com toda razão) ser "educadas", isto é, conduzidas mas, ao contrário, com a ajuda e dialogando com a informação técnica devidamente decodificada, conduzir sua vida. Em vez de educar conduzindo, é preciso, pois, informar o cidadão, de modo claro e transparente, não escamoteando nenhum aspecto do problema, e considerando, sobretudo, que os destinatários desta informação não são, nem devem ser vistos, como "epidemiologistas ou médicos ou sanitaristas leigos" mas como pessoas comuns, que vivem no cotidiano do trabalho, da vida familiar, dos seus problemas particulares, etc. Como se viu, uma noção básica na Promoção de Saúde é a de empowerment, ou seja, fortalecimento das populações. Ora, quando se trata da dimensão socializadora da Promoção, este empowerment implica em municiar as populações de informações significativas para elas e que possam ser vistas, sentidas e utilizadas como insumos para a tomada autônoma de decisões (Labonte, 1998). Lógica sanitária e lógica do cotidiano Mas na maior parte do tempo, a prática dos profissionais de saúde não tem sido a de fortalecimento; ao contrário, ela tem consistido em ministrar, para indivíduos, coletividades, grupos de pacientes, população em geral, prescrições comportamentais, em geral enunciadas no imperativo: não fume; não transe sem camisinha; use cinto de segurança; não abandone o tratamento; não deixe água nos vasos de flores; ande, não fique sentado o tempo todo; coma verdura; escove os dentes; trabalhe protegido; faça exame preventivo de câncer; etc, etc. Por que e em que medida as coisas se passam deste modo? Da parte da instância que prescreve, as coisas se passam assim porque o profissional de saúde acredita possuir, sob a forma de monopólio, o único conhecimento verdadeiro e legítimo sobre os temas que envolvem a saúde e a doença; também porque o profissional acredita estar socialmente investido de autoridade sanitária, para, em nome dos interesses maiores da coletividade, impor este tipo de comportamento aos indivíduos; e, finalmente, porque ele se considera técnico especialista. Os profissionais de saúde prescrevem educação, isto é comportamentos supostamente saudáveis na medida, talvez, em que consideram seu dever ético e legal prescrever e também na medida em que consideram que esta prescrição faz parte, naturalmente, de sua prática. Há também, evidentemente, motivações políticas subjacentes ao ato de prescrever comportamentos já que esta prescrição obviamente fortalece e ajuda a reprodução do campo sanitário como um campo de poder. Da parte dos prescritos, quando cumprem a prescrição comportamental, o fazem porque não querem ser penalizados pelo não cumprimento, ou porque as consideram justas, ou porque acreditam que devem respeito às autoridades, ou porque se sentem ameaçados na sua saúde se não as cumprirem. Mas há um sem número de circunstâncias que fazem com que estas prescrições não sejam cumpridas, ou sejam parcialmente cumpridas, segundo lógicas estabelecidas pelo próprio "paciente". Uma das importantes razões desta resistência ao cumprimento das prescrições de comportamentos se deve, a nosso ver, a um conflito estrutural de perspectivas ou pontos de vista, entre o prescritor e o prescrito: para o primeiro, doenças são entidades abstratas, objetos de investimento notadamente cognitivo, fonte de rendimento e poder profissional; para o segundo, doenças são entidades subjetivas, que acontecem e ganham sentido nos seus corpos privados, na temporalidade do seu cotidiano, no seu entorno mais próximo (na sua casa, no seu local de trabalho), em decorrência de hábitos solidamente arraigados, que eles relutam muito em alterar e de circunstâncias que escapam do seu controle (ter que trabalhar - e cumprir horário, obedecer ao patrão - depender do marido, ter que suportar o trânsito das grandes cidades, etc.). A prescrição pode então ser vista como uma intromissão do objetivo no subjetivo, do impessoal no pessoal, do cognitivo no afetivo, do espaço técnico-experimental no espaço natural. Trata-se, como se vê, de conflitos de natureza estrutural ainda que, é claro, matizados por circunstâncias atenuantes ou agravantes: prescritores mais ou menos autoritários e flexíveis, pacientes mais ou menos cooperadores, disciplinados, etc. Promoção de Saúde, pedagogia normativa e pedagogia dialogal Parece claro então que se, em conformidade com os princípios da Promoção de Saúde, o objetivo é o fortalecimento das populações para que as coletividades e os indivíduos possam fazer face de maneira mais adequada aos determinantes do processo saúde-doença, é preciso lançar mão de uma pedagogia não-normativa e dialogal do tipo da proposta por Paulo Freire (1972), que possa propiciar oportunidades de encontro e de troca entre o campo sanitário e o campo do senso comum e de fortalecimento do campo do senso comum (associações de pacientes, conselhos comunitários de saúde, etc.). Conforme Labonte (1998): "Este dilema ficou conhecido como aquele que implica transformar a prática da Promoção de Saúde e da Prevenção de Doenças de 'poder sobre' para 'poder com'. Nesta conceituação, o profissionalismo [dos profissionais de saúde] pode ser visto seja como dominação seja como fortalecimento. [Dentre as] qualidades essenciais da prática de fortalecimento [pode-se destacar]:( ...)uma abordagem não coercitiva e dialogal associada a uma pedagogia de solução de problemas na qual ambos, o profissional de saúde, o indivíduo e os grupos comunitários, têm diferentes e válidas maneiras de entender saúde e seus determinantes(...)." Limitações A eficácia da difusão da informação para a Promoção de Saúde está, no entanto, severamente limitada em algumas sociedades, como a brasileira, por exemplo, por sérias defasagens de formação, de escolaridade e de conhecimento entre informadores e informados. Estas limitações fazem com que o proposto diálogo educativo, mesmo quando de caráter informativo e não-condutivista, entre as autoridades sanitárias investidas de funções educativas e informativas e as populações, se torne um mero artifício retórico, se não vier acompanhado de um movimento de fortalecimento (empowerment) econômico, político, social e cultural dos indivíduos e grupos socialmente subalternos ou mais precisamente, subalternizados. Fortalecer "informacionalmente" os atores sociais "subalternizados" nos temas da saúde permanece, todavia, uma tarefa específica da Promoção de Saúde. E, mais do que isso, permanece uma tarefa especializada na medida em que implica, necessariamente, em atividades complexas como o processamento, com fins didáticos, da informação de natureza técnica, levando em consideração os espaços onde vivem, trabalham, se divertem os seus interlocutores, já que estes espaços, na medida em que constituem filtros de decodificação, afetam, decisivamente o destino final da informação sobre saúde e doença e, conseqüentemente, a maior ou menor probabilidade desta ser retida e incorporada nos corações e nas mentes dos receptores das mensagens, condicionando, com isso, uma parte importante da eficácia das ações de Promoção de Saúde. Sintetizando, podemos dizer que atuar em Promoção de Saúde não é só informar mas também informar, e que informar parece ser um processo eticamente mais justificável que educar (no sentido de "conduzir") sobretudo quando se trata de adultos. Informar indivíduos baixa ou totalmente não escolarizados, além de econômica, social e culturalmente subalternizados constitui, porém, tarefa técnica e politicamente das mais complexas, apesar de necessária para que as ações de Promoção de Saúde tenham sua eficácia aumentada. Referências bibliográficas Almeida, E. S. "Cidade/Município saudável - a questão estratégica: o compromisso político". Saúde e Sociedade. N. 6 (2), 1997. Althusser, L. Pour Marx, Paris: Maspero, 1965. Barradas, R. B. "Cem anos de endemias e epidemias". In: Ciência e Saúde Coletiva. N. 5(2), 2000, p.333-345. Benjamim, W. A obra de arte na era da reprodutibilidade técnica. São Paulo: Brasiliense, 1993. Bourdieu, P. Coisas ditas. São Paulo: Brasiliense,1990. Bunton, R.; Nettleton, S. & Burrows, R. The sociology of health promotion. Londres: Rodedge, 1996. Cardoso de Melo, J. "Comunicação pessoal". S.D. Czeresneia, D. & Freitas (orgs). Promoção de Saúde. conceitos, reflexões e tendências. 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Obviamente alguns aspectos foram aqui selecionados para análise e não outros, em função da limitação de espaço e também dado o fato de que não nos move aqui qualquer desejo de esgotar a temática da Promoção de Saúde mas, acima de tudo, uma posição crítica frente ao tema. Políticas públicas saudáveis? O presente capítulo pretende discutir o tema das políticas públicas saudáveis considerando a especificidade do setor saúde como detentor de um saber acumulado ao longo de sua história, que deve, necessariamente, embasar os processos políticos que envolvem direta ou indiretamente a área da saúde, mormente as políticas públicas denominadas "saudáveis". As políticas públicas saudáveis serão aqui analisadas tanto em sua vertente teórica, quanto em relação à práxis própria do campo da saúde pública. As propostas de políticas públicas saudáveis Frente à impotência do paradigma biomédico para enfrentar o processo saúde-doença conformado pela realidade contemporânea, especialmente pelos modos de urbanização pelos quais as cidades se estruturam, a partir da Conferência Internacional em Promoção da Saúde realizada em Ottawa-Canadá, em 1986, começam a despontar propostas que contemplam a adoção de políticas públicas saudáveis; na mesma linha, a intersetorialidade e a promoção da saúde passam a ganhar adeptos em todo o mundo, como estratégias mais amplas de intervenção de Saúde Pública que objetivam produzir impactos mais extensos e duradouros nas condições de vida e saúde das suas populações. A saúde passa a ser vista como um direito humano fundamental e um dos princípios básicos da justiça social é assegurar que a população como um todo tenha acesso aos meios para a obtenção de uma vida saudável e satisfatória. A Carta de Ottawa "coloca a saúde na agenda de prioridades dos políticos e dirigentes em todos os níveis e setores, chamando-lhes a atenção para as conseqüências que suas decisões podem ter no campo da saúde e (conclamando-os) a aceitarem suas responsabilidades políticas com a saúde" (Buss, 1998). A Declaração de Adelaide, Austrália, em 1988, caracteriza que as políticas públicas devem manifestar "o interesse e preocupação explícitos de todas as áreas de políticas públicas em relação à saúde e eqüidade, e pelos compromissos com o impacto de tais políticas sobre a saúde da população" (Ministério da Saúde, 1996). Assim, para formular suas políticas públicas saudáveis os setores de governo (agricultura, comércio, educação, comunicação, indústria) devem considerar a saúde como um fator essencial e serem responsabilizados pelas conseqüências de suas decisões sobre a saúde dos cidadãos. A concepção de políticas públicas saudáveis tem, portanto, uma abordagem complexa, pois, por um lado, pressupõe uma ampliação do conceito de saúde e, por outro, um novo papel que o Estado deve desempenhar perante a sociedade, através de seus governantes, assumindo o compromisso de situar a saúde no topo da agenda pública e enfatizar o compromisso técnico de intervir nos fatores determinantes do processo saúde-doença. Segundo Buss (2000), "a nova concepção de Estado, subjacente à proposta das políticas públicas saudáveis, é aquela que (re)estabelece a centralidade de seu caráter público e de sua responsabilidade social, isto é, seu compromisso com o interesse público e o bem comum (...). Neste contexto é possível superar a idéia de políticas públicas como iniciativas exclusivas ou monopolistas do aparelho estatal". As políticas públicas assim vistas não devem ser concebidas como uma iniciativa exclusiva do poder estatal, mas devem ser pactuadas através de fóruns participativos que reflitam as diversidades das necessidades de cada segmento ali representado, constituindo dessa maneira uma "nova e mais adequada redistribuição de direitos e responsabilidades entre o Estado e a Sociedade" (Buss, 2000). Ainda segundo Buss, as políticas públicas tendem a ser comprometidas com a saúde quando o processo de implementação se dá através do controle, com a participação ativa da sociedade. Assim o empowerment da população organizada é um dos pré-requisitos institucionais e políticos para a definição de saúde que queremos, não sendo mais considerado como uma concessão ou normatividade burocrática, ou circunstância desejável, mas uma condição indispensável para a viabilidade e efetividade das políticas públicas. Políticas públicas saudáveis: uma perspectiva crítica Queremos aqui introduzir, ainda que brevemente, uma crítica à idéia de políticas públicas saudáveis. Nesse sentido, o primeiro aspecto a ser assinalado é que as políticas públicas saudáveis estão em geral associadas ao conceito positivo de saúde, o que faz com que acabem se identificando com a idéia de qualidade de vida. Assim, em tese, a política pública saudável, quando bem-sucedida, provocaria um impacto positivo na qualidade de vida das pessoas. Mas neste momento pode-se perguntar qual o sentido disso para a Saúde Coletiva uma vez que o conceito de qualidade de vida, dado seu alto grau de generalidade, não-especificidade e imprecisão leva a que toda política pública, quando bem-sucedida, acabe, de uma forma ou de outra, tornando-se "saudável" o que enfraquece significativamente a própria idéia de política pública saudável. Assim, para que o conceito tenha alguma coerência interna e utilidade prática será necessário avaliar se esta política impacta efetivamente ou não a saúde das coletividades. Ora, como fazer isso sem assumir a doença como referencial, abandonando, conseqüentemente, o conceito positivo de saúde identificado com a qualidade de vida? Seria, por exemplo, a política pública - construção de rodoanéis - uma política pública saudável? Obviamente, a resposta seria vaga e totalmente incondusiva se a dita política fosse analisada como qualidade de vida. Por isso cremos que a discussão de políticas públicas saudáveis, conduzida da forma que vem sendo atualmente, não leva a resultados de interesse para a Promoção de Saúde. Acreditamos, pois, para que este conceito faça sentido e tenha utilidade prática para a Promoção, que, sem prejuízo do necessário enfoque intersetorial, deve sempre haver sujeitos e instâncias responsáveis por determinar se uma política é saudável ou não, e que estas devem necessariamente estar ligadas ao setor saúde. A conseqüência disso é que, para o julgamento da "salubrilidade" de uma dada política, partindo da perspectiva da Promoção de Saúde, os parâmetros a serem adotados devem ser os de morbimortalidade, descrevendo da maneira mais clara e explícita possível os impactos permanentes ou duradouros da política pública sobre a saúde das populações de determinado território; tais impactos devem ser permanentes ou duradouros uma vez que as ditas políticas, enquanto ações de Promoção de Saúde, devem incidir sobre as causas mais básicas das doenças. A partir da análise dos resultados será então possível construir indicadores de promoção de saúde associados às políticas públicas. Mas tudo isto não é para hoje! A construção de tais indicadores, no contexto da pós-modernidade (o que implica fenômenos complexos e ainda mal conhecidos) levando em conta a intersetorialidade e considerando o estágio atual do conhecimento epidemiológico e, de um modo geral, de saúde pública, sobre a "eterna" questão da "determinação social do processo saúde-doença", implica pois num árduo trabalho de investigação e construção coletiva, que só deverá dar seus frutos num futuro ainda indefinido. A Promoção de Saúde e o Planejamento Estratégico Cláudio Gastão Junqueira de Castro Médico sanitarista Professor do Departamento de Prática em Saúde Pública, área de Políticas Públicas da Universidade de São Paulo - USP Ana Maria Cavalcanti Lefevre Doutora em Saúde Pública pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo - USP Pesquisadora do Centro de Controle de Doenças da Prefeitura Municipal do Estado de São Paulo O Planejamento Estratégico (PES) é instrumento metodológico para intervenção numa realidade, de modo a se obter mudanças. E na perspectiva da Promoção de Saúde a mudança que se pretende é a segunda negação da doença, como descrita anteriormente. A intervenção preconizada no PES, através de plano modular - um dos vértices do triângulo do governo concebido por Matus (1996) - é o projeto do governo que, associado à governabilidade e à capacidade de governo, constituem o referido triângulo. A perspectiva da Promoção de Saúde deve ser concretizada pois, não de forma abstrata, mas concreta, levando em consideração uma realidade política, social, cultural e até religiosa, que é necessariamente diversa e desigual no mundo, mesmo no globalizado. Da mesma forma deve ser considerado o "Sistema de Saúde" existente nesta realidade, com suas características e disponibilidades de recursos humanos, recursos físicos e financeiros, rede de serviços e tecnologias, onde esta intervenção/plano será operado/operacionalizado; além disso, outros sistemas que operam políticas sociais serão demandados a intervir como um componente fundamental do plano. É a idéia da ação intersetorial na Promoção de Saúde. Se a Promoção de Saúde se faz pela negação da doença e não apenas na negação dos doentes, o PES é uma ferramenta útil para tanto, na medida em que é princípio básico do método a necessidade de se planejar para o enfrentamento dos problemas/agravos que a sociedade vem sofrendo. Ou seja, enfrentar os inconvenientes que agravam o modo de nascer, viver, adoecer e morrer das pessoas (Almeida et al., 2001). Uma outra categoria também relevante no PES, que tem relação com a Promoção de Saúde é a referente ao "ator", ou seja, pessoas físicas ou jurídicas que têm algum tipo de poder, que detêm algum tipo de recurso ou que têm trânsito e diálogo com outros que detêm poder. Esta dimensão é bastante importante e é preciso considerá-la: estes atores, que detêm o poder político, econômico/financeiro, administrativo, técnico precisam de ser identificados. Fica claro então que a Promoção de Saúde, na perspectiva de identificar problemas, priorizá-los e definir formas e tecnologias para uma determinada intervenção no sentido de eliminar suas causas determinantes, é um processo social e como tal enfrenta conflitos e obstáculos, na medida em que interesses são contrariados (Huertas, 1996): se o modelo hegemônico hoje vigente de Promoção de Saúde é o tratamento dos doentes, esta vigência é sustentada porque há interesses derivados de várias razões e explicações que fizeram com que houvesse o surgimento e durabilidade deste modelo. Portanto para a Promoção da Saúde é preciso ter poder, buscar poder e acumular poder. Aliás esta noção de um processo progressivo de acúmulo de poder que está implícito na formulação teórica do Planejamento Estratégico, é que vai conferir a dimensão ou perspectiva "revolucionária" do processo, na medida da capacidade que vai adquirindo o processo de intervenção de eliminar as causas ou os determinantes dos agravos/problemas, não só as de natureza conjuntural, mas, fundamentalmente, aquelas de natureza estrutural (Almeida et al., 2001). Ainda com relação às causas, pode-se também verificar a posição do ator em relação a elas, em termos da governabilidade. Nessa linha, configuram-se três condições básicas (Matus,1996): - o ator detém total governabilidade em termos dos recursos necessários às operações necessárias, à superação da mesma (causa); - o ator tem governabilidade parcial, no sentido da superação da causa. Isto é, não detém todos os recursos necessários, mas tem um mínimo de trânsito ou de capacidade de diálogo junto aos outros atores que são detentores dos demais recursos; - o ator não tem nenhuma governabilidade dos recursos necessários à superação da causa. Geralmente aqui são aquelas causas de natureza estruturais. Na metodologia do PES, este balanceamento de governabilidade do ator é importante e se coloca na perspectiva estratégica para se avaliar à viabilidade do Plano Modular de Operações e, portanto, da possibilidade de se estar impactando o problema (Matus, 1996). A chamada negação da doença será progressivamente alcançada na medida que "causas estruturantes" dos agravos forem eliminadas ou minimizadas. Assim, a construção da rede sistêmica de causalidade do agravo, deve ser compartilhada pelos diversos atores que estão envolvidos no processo (relembrando que "ator" é todo aquele que detém algum poder/recurso referente ao conhecimento/explicação e eliminação do agravo). Outro aspecto importante a salientar na relação entre Promoção de Saúde e o PES é que para a Promoção de Saúde se desenvolver, enquanto negação da doença é preciso conhecer a doença. Ora, este conhecimento, na metodologia do PES é bastante valorizado e se expressa, ou se elabora, com a formulação do que nela é chamado de Vetor de Descrição do Problema (VDR). Estes vetores são um conjunto de indicadores construídos a partir de fontes secundárias e primárias de informação e se prestam para ser uma quase fotografia do problema, pois além de dar uma dimensão quantitativa eles conferem também uma dimensão qualitativa do agravo (Almeida et al., 2001), especificando o modo de ocorrência do agravo na realidade social onde o mesmo ocorre. Além do que, prestam-se também para o monitoramento do mesmo, de modo a permitir uma comparabilidade no tempo e entre lugares. Assim, se a rede sistêmica de causalidade for rompida pelo processo de intervenção operacional, estes descritores/indicadores serão suprimidos ou diminuídos e a doença será negada. A construção destes indicadores (descritores) deve ser feita com a participação dos diversos atores do processo. E em função da precariedade ainda dos sistemas de informação, a idéia do conhecimento progressivo do agravo deve subsistir. Neste sentido, além das fontes secundárias a serem utilizadas, fontes primárias também deverão ser pesquisadas, através de diversas técnicas e métodos disponíveis, tais quais a de estimativa rápida, o Discurso do Sujeito Coletivo (Lefevre & Lefevre, 2003) e outros. Na metodologia do PES, o chamado Diagnóstico Situacional consiste em um fazer no qual os agravos à saúde são identificados, priorizados, descritos (VDR) e explicados (Rede Sistêmica de Causalidade). E, ainda nesta rede de causas, são identificados os Nós Críticos, que são aquelas causas de maior relevância para que o agravo ocorra. São causas que "desatadas" eliminam também outras causas; por isso, o nó crítico deve ser caracterizado como Centro Prático de Ação, ou seja, uma causa possível de eliminação. Este conjunto de fazeres, dentro da metodologia do PES, corresponde hegemonicamente ao momento explicativo, e o conjunto dos "Nós Críticos" que foram identificados será a "matéria-prima" a ser processado no outro momento, que é o momento normativo, na linguagem do PES. O momento normativo: o que deve ser Como se verificou, a base ou "matéria-prima" a ser trabalhada no momento normativo deverá ser cada um dos Nós Críticos que foram identificados no momento explicativo. Aqui a metodologia considera que cada um dos Nós Críticos deve ser aferido com o rol dos indicadores (VDP) listados para o problema, visando a relacioná-los com aqueles indicadores. É uma relação para se estabelecer o nexo entre a causa (Nó Crítico) e o efeito (indicador). Isto posto, o passo seguinte é o estabelecimento dos objetivos e metas para cada um dos descritores do subconjunto do Nó Crítico. Isto, na linguagem do método significa estabelecer a situação-objetivo para cada um desses VDPs (indicadores). Na situação atual, descrita e analisada no momento explicativo, o valor do indicador é "X"' e, portanto, no tempo de governo ou de gestão do ator propositivo, pretende-se a redução/aumento "X". Este valor é a situação-objetivo que se pretende alcançar, através do desencadeamento de uma série de operações do Plano Modular de Intervenção. A imagem-objetivo, outra categoria referida no método do PES, significa estabelecer uma situação que seria ideal para o indicador, o VDP. Aqui a variável tempo é desconsiderada. Diz-se, por isso, que a imagem-objetivo é a situação utópica (Uribe Rivera, 1989). E a utopia na perspectiva do paradigma da Promoção de Saúde é a plena e total negação da negação da doença. Ou seja, um mundo em que as pessoas morreriam apenas de velhice. O produto do momento normativo básico é a definição das operações a serem desencadeadas no contexto de um Plano de Intervenção e referenciadas aos Nós Críticos. As operações definidas para o Nó Crítico Formulado, dependendo da natureza do nó crítico e de outras variáveis, podem ser apenas uma ou mais do que uma, envolvendo inclusive outros setores de políticas públicas. Ainda, para cada operação formulada, deve ser estabelecido o seguinte: - considerar o conjunto de atores que estão envolvidos de alguma maneira com a operação, isto é, aqueles indivíduos (pessoas físicas) ou instituição (pessoas jurídicas) que detêm algum tipo de recurso ou poder (técnico, político, administrativo ou financeiro) que for considerado necessário para a operação acontecer ou ser desencadeada; - fazer uma identificação e um balanço dos recursos necessários em termos quantitativos para viabilizar a operação. Isto se explica porque dependendo da natureza da operação o tipo de recurso necessário irá ser diferente. Ou seja, há operações que demandam "muito" recurso político e pouco recurso financeiro, outras demandam apenas recursos técnicos e administrativos e assim por diante. Este "balanço" ou ponderação a ser feita permite uma aproximação preliminar no sentido de se estar avaliando a viabilidade do plano, e também identificando os movimentos estratégicos a serem desencadeados no momento seguinte (estratégico) para se conferir a viabilidade da(s) operação(ões) e, portanto, do Plano. Deve também se procurar identificar quem no processo será o responsável pela operação. Esta é uma recomendação enfática na metodologia do PES, pois coloca ou visa a garantir a viabilidade da operação: a responsabilidade a ser cobrada, no caso da não ocorrência da operação, deve ter nome e endereço certos. É recomendável, nesse sentido, que preferencialmente o ator responsável pela operação deva ser identificado no conjunto daqueles atores retro-referidos que estão envolvidos com a operação. Ou seja, o ator deve deter algum recurso referente à operação e ter linha de mando ou no mínimo trânsito, isto é, ter relações transversais com os demais atores envolvidos referidos (Uribe Rivera, 1989). A definição de prazos (tempo) e metas em relação à operação precisa ser estabelecida, bem como o (s) indicador(es) mínimo(s) e necessário(s) para o monitoramento da operação, ao longo da implantação do Plano. Por fim a eficácia do plano deve ser monitorada de forma sistemática ao longo do tempo, através do monitoramento e análise dos indicadores estabelecidos na situação objetivo, para os Descritores dos Nós Críticos. O momento estratégico A análise estratégica deve responder a duas perguntas: - que operações do plano são viáveis agora? - posso construir viabilidade para aquelas operações inviáveis durante meu período de governo? Aqui é importante ressaltar que a análise deve centrar-se no esforço para construir a viabilidade, mapeando todos os atores que possam cooperar ou se opor ao que está proposto, calculando o tipo de controle que cada um tem dos recursos essenciais ao plano. Dentro do Setor Saúde, cada vez ganham mais espaço as possibilidades de gestão colegiada, os fóruns técnicos de intervenção, enfim, mais atores sociais assumem uma postura de parceria na construção do sistema de saúde local. Assim, sobressai a importância de mapeamento dessas possibilidades para garantir a viabilidade das operações propostas no plano, e na perspectiva da Promoção de Saúde como se verificou, esta busca ou identificação é imperativa, sendo que na metodologia PES o desenvolvimento deste momento estratégico é de vital importância para a viabilidade do plano. Mais uma vez a avaliação permeia todo o processo de planejamento e assume, nesse momento, uma grande importância. Há uma quebra da linearidade: planejar, fazer, avaliar, para colocar essas duas dimensões dentro do processo de construção do plano. O momento estratégico, na verdade, deve ser operado, ou desenvolvido ao longo de todos os momentos da explicação, formulação e execução do plano; mas não há efetivamente um método ou receita própria para isso, diante da "diversidade situacional" de cada realidade. Contudo, para a construção da viabilidade do plano, que é a essência ou substância deste momento, a realização, pelo ator responsável, de "audiência" com os outros atores identificados no processo, é uma medida importante e comum, a ser desenvolvida. O momento tático-operacional Este momento reforça a necessidade de "submetermos a ação diária à disciplina do planejamento. Ao mesmo tempo, sem relação com a ação, o plano é supérfluo ou mera pesquisa sobre o futuro" (Almeida et al., 2001). O momento tático-operacional se concretiza através das funções administrativas de direção, coordenação, controle e avaliação. Dentro do setor saúde, a obrigatoriedade de planos de intervenção municipais ou estaduais como pré-requisitos formais de algum processo administrativo é bastante freqüente. Há uma tradição de planos feitos de forma fragmentada e que se empoeiravam nas gavetas depois de aprovados, sem nenhum impacto sobre a forma de organização das rotinas de trabalho. Assim, assumir de fato essa proposta estratégica de planejamento pode ser uma possibilidade de "reorganizar a lógica da organização" do trabalho, construindo, de fato, um esforço coletivo de mudança da realidade sanitária e com a eliminação dos fatores/causas determinantes do processo saúde-doença. O fazer passa a ser considerado parte do plano e não uma etapa posterior. Quebra-se a lógica linear: planejar-executar-avaliar. O fazer é também recalcular o plano. O monitoramento das operações ajuda a redesenhá-las permanentemente, e a avaliação contínua do impacto no processo de organização dos serviços e na realidade sanitária da população realimenta a leitura da realidade e da melhor forma de intervir nela. Assim, retoma-se continuamente o momento explicativo, o normativo, o estratégico e a concepção de um processo permanente em espiral é radicalizada. Conclusão O paralelo que procurou se esboçar aqui entre a Promoção de Saúde e o PES permite, a nosso ver, explicitar as condições práticas para que se construa e implemente a segunda negação do processo saúde-doença, já que, facilitando-se, como o PES, teórica e praticamente, o acesso e a intervenção nas condições estruturais em que a doença se deu, estarão descritos os processos em que se dará a Promoção de Saúde, ou seja, as operações capazes de contribuir para a (re)construção de uma situação-objetivo em novas bases, configurando, de modo sustentado, um mundo menos doente. Processo de avaliação em Promoção de Saúde: um exemplo hipotético O presente trabalho pretende abordar um tema muito complexo por meio da exemplificação de um processo de avaliação de uma dada política pública de Promoção em Saúde. Obviamente a discussão sobre avaliação de ações de Promoção de Saúde pode se dar de vários e distintos modos, em níveis variados de aprofundamento; mas especificamente no que toca à Promoção de Saúde é importante ressaltar um aspecto que nos parece crucial: avaliar é um ato técnico que pressupõe, necessariamente, definições padronizadas, rigorosas e unívocas referentes àquilo que se está avaliando. Não se ignora que existe vasta literatura sobre avaliação de ações de Promoção de Saúde, mas a pergunta que fica é como avaliar, logicamente, ações de Promoção de Saúde quando todo o arsenal teórico conceitual e mesmo terminológico que cerca a Promoção de Saúde padece de alto grau de indefinição, polissemia, ambigüidade, imprecisão? Neste exercício vamos imaginar um processo de avaliação de uma determinada política pública, tomando como um exemplo imaginário a implantação de um projeto de Promoção de Saúde que teria como população alvo uma dada categoria profissional - os chamados "motoboys" - em São Paulo, capital. Pretende-se sugerir a avaliação desta política, sob a ótica da Promoção de Saúde, do modo como a estamos entendendo aqui, ou seja, enquanto negação da negação, verificando-se os impactos dessa política nos determinantes do processo saúde/ doença, ligados à atividade profissional dos "motoboys": Para isso alguns pontos devem ser salientados: Primeiro: é necessário que se faça uma avaliações ex ante (Draibe, 2001). As avaliações ex ante são também conhecidas como avaliações diagnósticas e permitem o estabelecimento de patamares de comparação antes e depois da intervenção em questão. Portanto, é difícil poder avaliar corretamente sem precisar o quê e como estava, no momento, a situação que podemos chamar de ponto zero, isto é, de início da intervenção. No caso exemplificado (o dos "motoboys") diferentes setores podem dar contribuições significativas para a construção de um diagnóstico integrado da situação ponto zero: assim o setor saúde pode contribuir fornecendo dados referentes à mortalidade e morbidade em decorrência de acidentes de trânsito, bem como a agravos relacionados ao estresse ou à instabilidade profissional da categoria (hipertensão, insônias, crises de pânico, etc.); o setor de trânsito pode fornecer dados como número de "motoboys"que transitam nas avenidas mais congestionadas em horário de pico, infrações mais freqüentes, número de acidentes, etc; o comércio e a indústria podem fornecer dados referentes ao aumento do número de vendas em decorrência da utilização destes trabalhadores motoqueiros no processo de distribuição de produtos e mercadorias; os sindicatos podem entregar dados referentes à identidade desta categoria, pois constituem um grupo profissional que preconiza a solidariedade, o uso de indumentárias próprias, que lutam por melhores condições de trabalho, etc. Esta avaliação ex ante deve considerar o processo saúde/doença como um todo levando em conta indicadores e determinantes deste processo, tendo como objetivo a construção daquilo que denominamos a primeira negação, isto é, compreender quais as condições geradoras do desequilíbrio estrutural que está na base do processo saúde-doença em questão. Segundo: um processo de avaliação ex post tem que ser compatível com os objetivos, processos, estratégias e metas previamente traçadas. Com base no processo de avaliação ex ante, os diversos setores envolvidos vão definir objetivos, metas e estratégias de ação. A avaliação ex post tem um duplo objetivo: verificar os graus de eficiência e eficácia com que o programa/projeto está atendendo a seus objetivos e avaliar e efetividade do programa, seus resultados, impactos e efeitos (Draibe, 2001). É impossível, por isso, avaliar políticas/ programas/projetos, em termos de Promoção de Saúde, quando os autores destes não tinham a Promoção de Saúde como referência, erro lógico que temos observado em alguns trabalhos de avaliação em Promoção de Saúde. Para que se possa fazer uma avaliação ex post é necessário, então, que se estabeleçam inicialmente e de modo preciso processos, objetivos e metas que se pretende alcançar para a Promoção de Saúde, ou seja, na nossa terminologia, para a efetivação da segunda negação, a negação da negação; considerando o caso em estudo, por exemplo: - diminuição sustentada da mortalidade e das morbidades presentes na atividade profissional da categoria; - elaboração de um código de trânsito específico para esta categoria profissional contendo as respectivas sanções relativas a não obediência a sua observância; - construção de faixa de trânsito específica para esta categoria nas principais vias da capital; - cursos de treinamento para o trânsito, direção defensiva e discussão de direitos e deveres para esta categoria; - elaboração de legislação referente à contratação desta categoria prevendo mecanismos de apoio e proteção; - organização de serviços de urgência e emergência com pessoal treinado de forma a minimizar os dados físicos provenientes de acidentes, entre outros. Terceiro: é importante distinguir as avaliações de processo das avaliações de resultados. Na avaliação de resultados pretende-se saber se as políticas, os programas ou os projetos cumpriram/atingiram seus objetivos. No caso das avaliações de processo pretende-se detectar fatores que facilitaram ou dificultaram ou mesmo impediram, durante o processo de implementação de políticas/projetos ou programas, que estes atingissem os seus objetivos. Assim, os projetos/programas de Promoção de Saúde devem realizar tanto avaliações dos processos como dos resultados alcançados. Algumas avaliações de projetos e programas erroneamente consideram estratégias (que na realidade são formas, métodos utilizados para a implementação de projetos de Promoção de Saúde) como se fossem resultados (produtos) de uma dada intervenção. Ora, imaginar que uma política pública possa ser tida como como de Promoção de Saúde e ser avaliada positivamente porque utilizou estratégias de participação comunitária ou processos intersetoriais, implica em equívoco grave, em confusão entre avaliação de processo avaliação de resultados. Não queremos dizer com isso que não haja necessidade de que sejam também realizadas avaliações de processo: avaliar se as políticas estão sendo implementadas de forma adequada, utilizando as estratégias preconizadas pela Promoção de Saúde é uma avaliação pertinente, mas que não deve ser confundida com as avaliações de resultados. No exemplo acima, a avaliação de resultados deve necessariamente analisar o impacto da política de Promoção de Saúde na redução sustentada dos índices de morbi-mortalidade especificamente vinculados ao exercício da atividade de "motoboy". Quarto: as avaliações de políticas/programas e projetos de Promoção de Saúde devem analisar os dados presentes na avaliação ex ante e nos resultados atingidos com a intervenção da Política/Programa é partir dos mesmos estabelecer uma proposta de construção integrada de indicadores de promoção de saúde. A partir dos dados obtidos nas avaliações ex ante e ex post é possível começar a construção de indicadores de Promoção de Saúde. Voltando à nossa teoria, será possível estabelecer a segunda negação, isto é a proposta de construção, frente ao problema analisado, de condições de produção de uma situação livre de doenças. No nosso exemplo provavelmente a construção de faixas de trânsito, agregadas à criação de legislações de proteção ao trabalhador que levassem a uma direção segura, bem como, ao amparo e reforço à identidade desta categoria poderiam talvez ser indicadores de Promoção de Saúde. Quinto: o "sujeito coletivo " como método a ser utilizado para a produção de indicadores subjetivos de Promoção de Saúde. O processo acima descrito propõe a criação de indicadores de Promoção de Saúde a partir da análise objetiva da realidade. O processo deve ser realizado de forma integrada para que estes indicadores reflitam uma realidade vista sob a ótica da complexidade (Carvalho, 1996). Por outro lado, na análise desta realidade complexa, a dimensão da subjetividade é imprescindível, isto é, o impacto causado pela intervenção precisa ser avaliado também através da percepção dos indivíduos que a vivenciaram. No exemplo estudado, este processo de avaliação deve levar em conta a percepção dos "motoboys" e todos os demais setores e atores que participaram do processo. Para esta avaliação da dimensão subjetiva, o método do Discurso do Sujeito Coletivo - DSC (Lefevre & Lefevre, 2003) parece pertinente. De fato, na construção de indicadores subjetivos de Promoção de Saúde, o DSC é um método que permite a soma qualitativa de dados qualitativos (Lefevre & Lefevre, 2004) e, assim sendo, avança em relação aos métodos tradicionais nos quais o pesquisador ou quantifica artificialmente o pensamento para somá-lo, destruindo assim a sua natureza discursiva, ou efetivamente não processa este pensamento, trabalhando através de metadiscursos teóricos. No caso do DSC, em vez de se falar sobre a realidade é a realidade que fala, o que faz com que seja possível a descrição a um tempo empírica e qualitativa do pensamento coletivo. Ao mesmo tempo, esta soma qualitativa pode ser também quantitativa permitindo ponderar o que pensam os "motoboys", os técnicos do setor saúde, os do setor de transportes e assim por diante. Assim, é possível conhecer qual ou quais as idéias mais fortemente presentes e em que grupo estudado. Desta forma, este método poderia ser visto como um instrumento útil para produção de indicadores de Promoção de Saúde. Promoção de Saúde e fases da vida O curso pós-modemo da vida Segundo Debert7 (1999a), o curso da vida nas sociedades ocidentais tem sido marcado por três períodos sucessivos, nos quais a idade cronológica é vista distintamente: a pré-modernidade, onde a idade cronológica tem um caráter menos relevante do que o status da família na determinação do grau de maturidade e do controle dos recursos de poder; a modernidade, período em que foi estabelecida a cronologização da vida e a pós-modernidade, período em que se operaria uma desconstrução do curso da vida em nome de um estilo unietário, ou seja, no qual as idades cronológicas são menos importantes. A modernidade caracterizou-se por ser um período onde os estágios da vida encontravam-se claramente separados e organizados por idades cronológicas sucessivas. Assim, a infância é sucedida pela juventude, esta pela maturidade e esta última pela velhice. A institucionalização do curso da vida ocorre em todas as dimensões da sociedade. Os estágios da vida são claramente definidos e separados e a fronteira entre eles é determinada pela idade cronológica. Assim, é estabelecida a idade em que a criança vai à escola, quando atinge a maioridade, a idade da aposentadoria, como também a idade para a velhice. A "cronologização" da vida, na modernidade, passa a determinar não só a regulamentação das seqüências, mas também, toda a vida social, pois norteia as perspectivas e os projetos para as pessoas e para a sociedade orientar e planejar suas ações. Esta institucionalização crescente envolve tanto a dimensão familiar como o mundo do trabalho e está presente na organização de todo o sistema produtivo, nas instituições de ensino, no mercado de trabalho, fazendo parte das políticas públicas, com ações para grupos determinados, por faixas etárias específicas. O curso moderno da vida decorre da lógica fordista e tem como corolário a burocratização dos ciclos da vida. Três segmentos podem ser claramente delimitados: a juventude e a vida escolar; o mundo adulto e o trabalho; a velhice e a aposentadoria. O reflexo de uma sociedade pós-fordista marcada pela informatização da economia, pela desmassificação dos mercados de consumo, da política, da mídia e da cultura, e pela fluidez e multiplicidade dos estilos de vida bem como por uma economia mais baseada no consumo do que na produção, tem como resultado o apagamento das fronteiras que separavam juventude, vida adulta e velhice e também das normas que determinam padrões de comportamento para cada um destes grupos. A partir dos anos 1970 delineia-se na cultura pós-moderna "a promessa de que é possível escapar dos constrangimentos, estereótipos, das normas e dos padrões de comportamentos baseados nas idades" (Debert, 1999b). As pesquisas que identificam rupturas entre a modernidade e a pós-modernidade mostram como uma das características da pós-modernidade o processo de "descronologização" e "desinstitucionalização" da vida. Esta nova maneira de entender o curso da vida, na qual as fronteiras de comportamentos estabelecidos e esperados para as diferentes etapas da vida humana são embaçadas, permite uma nova análise e nos remete a uma rede de novos significados sobre quem é este ser humano neste percurso e o que faz diante deste novo mundo da pós-modernidade. Estas alterações decorrem de mudanças na esfera da produção, em especial da informatização, da implementação de tecnologias e da obsolescência cada vez mais rápida das técnicas produtivas e administrativas, que fazem com que a relação entre idade e carreiras desapareça. Assim, o conhecimento todos os dias se torna superado e todo dia se tem que aprender tudo novamente, pois a tecnologia supera tudo o que todos sabem, todos os dias. É neste sentido em que as idades deixam de ser um mecanismo separador e acumulador de conhecimentos, pois todos os dias todos podem não saber mais nada. No âmbito familiar, eventos que tradicionalmente separavam gerações, através da idade, passam por intensas modificações: passamos a ter uma variedade nas idades em que as pessoas se casam, o mesmo ocorrendo em relação às idades em que uma mulher se torna mãe (podendo variar de 14 ou 15 anos até 45 anos). Desta forma gerações sucessivas podem pertencer ao mesmo grupo, podendo-se ter mães e avós da mesma faixa etária. Assistimos também ao estabelecimento de etapas intermediárias do envelhecimento, com o surgimento de termos como "terceira idade", "meia-idade", "aposentadoria ativa", etc., que na realidade são categorias que surgem com o objetivo específico de produção de novos estilos de vida e também de criação de mercados de consumo específicos. Verifica-se, também, a dissociação entre a velhice e a aposentadoria: surge um grupo cada vez maior e mais jovem de aposentados e um novo tipo de mercado de consumo correspondente. Verifica-se igualmente o aumento de agências de turismo destinadas ao atendimento deste segmento, o mesmo ocorrendo em cursos para a terceira idade que vão desde o atendimento a aspectos da cultura até cursos de ginástica, balé, ioga, modelagem física, atividades artísticas, etc. Acompanhando este mercado surge uma nova linguagem de referência a este grupo: terceira idade substitui o termo velhice; asilo passa a ser chamado de centro residencial, assistente social de animador social e outros mais. Há uma valorização da juventude associando-a a valores e estilos de vida, dissociando-a do grupo etário específico e a promessa de juventude passa a ser um dos mecanismos fundamentais da constituição de um mercado de consumo cada vez maior. As oposições entre o jovem-jovem, velho-jovem e velho-velho, estabelecem laços simbólicos entre os indivíduos e ao mesmo tempo os diferenciam, em um processo contínuo em que não há limites à criatividade e ao qual qualquer sentido pode ser atribuído. Essas formas de alocação do corpo surgem em um contexto marcado pelas concepções autopreservacionistas do corpo. Conforme Giddens (apud Debert, 1999b) "é próprio da experiência contemporânea que a definição do eu, de quem sou e a adoção de estilos de vida se façam em meio de uma profusão de recursos: vários tipos de terapia, manuais de auto-ajuda, programas de televisão e artigos em revistas (...) os indivíduos são monitorados para exercer uma vigilância constante sobre o corpo e são responsabilizados pela própria saúde". Se por um lado o surgimento destas etapas intermediárias do processo de envelhecimento traz um lado gratificante, que encoraja o prazer e a diversidade, é importante que se leve em consideração que, no caso da velhice propriamente dita, há pouco espaço de tolerância para com o corpo envelhecido: se o rejuvenescimento se transforma em um mercado de consumo, provavelmente não há lugar para a velhice e o declínio inevitável do corpo que, sob esta lógica, passa a ser vista como um descuido pessoal. Portanto, a experiência contemporânea impõe uma nova concepção do desenvolvimento do ser humano e uma nova maneira de entender o curso da vida, não limitando esta experiência a uma seqüência evolutiva unilinear. Mas, por outro lado, não se pode deixar de considerar as idades cronológicas como um marco importante, pois "seria um exagero supor que a idade deixou de ser um elemento fundamental na definição do status de uma pessoa" (Debert, 1999b). Os idosos na atualidade Segundo Veras (2001), "uma das maiores conquistas da humanidade é a ampliação do tempo de vida, em especial quando esta se fez acompanhar de uma melhora substancial dos parâmetros de saúde das populações, ainda que estas conquistas estejam longe de se distribuir de forma eqüitativa nos diferentes países e contextos socioeconômicos". De fato, nunca na história da humanidade o número de idosos foi tão elevado. O crescimento da população idosa se deve, por um lado, a uma alta taxa de fecundidade ocorrida no passado, quando comparada á atual e também devido à redução da mortalidade. Se, por um lado, o aumento da população idosa é decorrência de melhores condições de vida, resultante de políticas e de incentivos promovidos pela sociedade e pelo Estado, por outro lado, aspectos preocupantes emergem, que dizem respeito ao número de idosos hoje cada vez mais elevado em nossa sociedade. O Brasil é, atualmente, um dos países que envelhecem mais rapidamente. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE, o índice de envelhecimento passou de 15,5 em 1992 para 21,0 em 1999, mostrando a participação crescente de idosos em relação aos jovens na população brasileira8. No Sudeste brasileiro este índice é ainda mais alto do que a média brasileira (25,8 em 1999). Estima-se que a população brasileira acima de 60 anos, em 2001, estivesse situada ao redor de 15 milhões de habitantes, que em 20 anos serão 32 milhões. A expectativa de vida, que no início do século XX era ao redor de 33 anos, passa, atualmente, para 68 anos (Camarano, 2002). Em 1940, o contingente de pessoas acima de 60 anos, que era de 4%, em 1996 passa a ser de 8% (Veras, 2001). Espera-se que o Brasil no ano 2020 tenha mais de 6,5 milhões de pessoas acima de 75 anos, em comparação aos dois milhões de hoje (Kinsella, 1994). Além disso, a proporção da população mais idosa, ou seja, de 80 anos e mais, está aumentando, alterando a composição etária dentro do próprio grupo, mostrando que a população idosa também está envelhecendo. Este grupo, que em 1944 era de 166 mil pessoas, em 1996 passa para 1,5 milhão (Camarano, 2002). Outro aspecto a ser mencionado diz respeito à questão da feminilização da velhice e suas implicações em termos de política públicas. As mulheres vivem mais que os homens: em 1996, dos 12,4 milhões de idosos existentes no país, 54,4% eram do sexo feminino, sendo que, destas, 45% eram viúvas. A proporção de mulheres idosas que moram sozinhas também é alta: em 1998 era de 14%. (Camarano, 2002): "os fatos mostram que mais da metade (55%) das mulheres entre 65 e 70 anos não têm companheiros. Isso decorre não apenas do fato dos homens morrerem antes, mas também, de a maioria das mulheres viuvas não recasar(...) entre as famílias que ganham até três salários mínimos a proporção de mulheres morando sós é de 25% (...), ou seja, no Brasil a solidão da mulher se mescla com a pobreza" (Pastore, 2003). Dados do IBGE sobre o Estado de São Paulo nos períodos de 1980, 1991 e 2000 mostram o crescimento da população acima de 70 anos. Observa-se também o crescimento da proporção maior da população feminina acima dos 60 anos de idade. Dados da mesma fonte para o ano 2000 mostram que a proporção de idosos na população do Estado é de 9,3%, sendo 7,9% de homens e 10,6% de mulheres. A esperança de vida ao nascer situa-se ao redor de 70 anos, sendo que para os homens está ao redor de 65 anos e para mulheres ao redor de 74 anos. Portanto, em São Paulo, as mulheres, quando nascem, têm uma esperança de vida de quase dez anos a mais do que os homens. Esta diferença se reduz aos 60 anos, quando os homens têm uma esperança de vida de mais 16 anos, em média, e as mulheres de 20 anos. Se o idoso brasileiro nos últimos 20 anos teve a sua expectativa de vida aumentada, por outro lado passou a chefiar mais as suas famílias e a viver menos nas casas de seus parentes. Assim, se tradicionalmente a preocupação com a velhice restringia-se ao seu caráter filosófico, humanitário ou filantrópico, o crescimento numérico deste grupo transforma o envelhecimento em questão social, na medida em que passa a exigir mudanças nas instituições públicas e nas demais instituições responsáveis pelas políticas públicas relacionadas com a questão do idoso, que passam pela Previdência e Assistência Social, Saúde, etc. As discussões a respeito do impacto cada vez maior na folha de pagamento da Previdência Social, bem como o aumento da utilização dos serviços de saúde por este contingente, são exemplos de uma discussão que apenas se inicia. Portanto, esta nova conjuntura remete à necessidade da definição de novos espaços nas diferentes estruturas sociais para as pessoas idosas e reforça o debate sobre as atribuições do Estado no referente a esta questão (Fonte, 2002). A população feminina aumenta em todas as idades, não só nas mais avançadas: "O Brasil deverá chegar a 2050 com 8,2 milhões de mulheres a mais do que homens, apontam estimativas feitas pelo IBGE, com base no Censo de 2000... O excedente feminino, que no ano passado correspondia a apenas 1,5% do total da população vai equivaler a 3,4% dos 238 milhões de brasileiros que o País deverá contabilizar, até a metade do século XXI. "Hoje temos cerca de um Uruguai a mais de mulheres no Brasil. Em 2050, serão três Uruguais"... diz bem-humoradamente Juarez de Castro, chefe da Divisão de Estudos e Análises da Dinâmica Demográfica do IBGE (Martins, 2003). A Promoção de Saúde para a qualidade de vida dos idosos Talvez a mais significativa novidade que a Promoção de Saúde introduz, desde o famoso Relatório Lalonde (apud OPAS, 1996), é que ela força as fronteiras do setor saúde buscando superar as limitações históricas que circunscreveram este setor da vida humana, demasiadamente, do ponto de vista dos fundamentos teóricos, ao domínio da biologia e, do ponto de vista prático, à medicina de base tecnológica e ao sistema de assistência à doença de inspiração curativista. Assim, para a Promoção, a saúde tem menos a ver com deixar de estar ou ser doente (Lefevre, 1999) e mesmo com evitar a doença (uma vez que Promoção de Saúde não é mero sinônimo de Prevenção de Doenças (Lefevre, 2001) e tem muito mais a ver com os determinantes maiores do processo saúde-doença. O pressuposto básico é o de que, na sociedade contemporânea, o processo de envelhecimento se faz acompanhar de mudanças sociais cujas conseqüências podem influir negativamente nas condições de vida dos que envelhecem, sendo que algumas destas mudanças influem marcadamente na perda da qualidade de vida do idoso. Dentre estas condições podemos salientar: a resposta social à deterioração biológica própria do envelhecimento (o modelo médico tradicional equipara velhice com incapacidade); a perda do trabalho, a diminuição dos recursos; a deterioração da identidade social; a desvalorização social da velhice e a ausência de um papel social para os idosos (Lazaeta, 1994). No Brasil, o tema da Promoção de Saúde tem no SUS um de seus principais fundamentos, uma vez que este é fundado nos princípios da integralidade da atenção à saúde e da participação comunitária (Mendes, 1996). Estes fundamentos da Promoção de Saúde constituem as bases da Política Nacional do Idoso, considerada um exemplo entre as experiências atuais de promoção de saúde no Brasil (Assis et al., 2002). Segundo o Relatório Nacional Brasileiro Sobre o Envelhecimento da População Brasileira (Brasil, 2003), apresentado na II Assembléia Mundial sobre o envelhecimento, a Política Nacional do Idoso aprovada em 4 de janeiro de 1994, através da Lei nº 8.842.194 e do Decreto n° 1.948 que a regulamenta, estabelece direitos sociais ao idoso, garantindo autonomia, integração e participação efetiva deste na sociedade, como instrumento de cidadania. A implantação dessa Lei estimulou a articulação e integração dos ministérios setoriais com vistas à elaboração de um Plano Integrado de Ação Governamental configurando a proposta de uma efetiva Política Nacional do Idoso. Tal plano representa um avanço na integração das políticas setoriais uma vez que vários órgãos o compõem: Ministério da Previdência e Assistência Social, da Educação, da Justiça, da Cultura, do Trabalho e Emprego, da Saúde, do Esporte e Turismo, do Transporte, do Planejamento, do Orçamento e Gestão, e a Secretaria de Desenvolvimento Urbano. O Plano propõe uma gestão em rede, efetivando a ação do governo de forma intersetorial integrada, considerando o idoso como um cidadão, contando com a participação efetiva das três esferas de governo para implementação da política, acompanhamento, controle e avaliação das ações. Além disto, propõe a Política Nacional de Saúde do Idoso que tem como propósito a promoção de um estado de saúde do idoso, com a finalidade de conseguir uma máxima expectativa de vida ativa, com altos níveis de função e autonomia. Com isso busca-se a manutenção e melhoria da capacidade funcional, a prevenção de doenças, a recuperação da saúde dos que adoecem e a reabilitação daqueles que venham a ter a sua capacidade funcional restringida (Brasil, 2003). Um ponto que toda formulação de políticas e programas relativos aos idosos deve levar em conta diz respeito à especial atenção que devem receber as mulheres idosas, não só pelo contingente demográfico que representam, mas porque 70% destas mulheres nos países em desenvolvimento vivem em situação de pobreza (Restrepo & Perez,1994). É também necessário considerar seis princípios que devem servir de eixos básicos para a promoção e proteção da saúde dos idosos os quais devem estar incorporados aos vários planos e programas desenvolvidos9: - a velhice não é uma doença e sim uma etapa da vida; - as pessoas de 60 anos e mais, em sua grande maioria, estão em boas condições físicas, porém à medida que envelhecem se tornam mais propensas a debilitarem-se e a necessitarem de ajuda para seu cuidado pessoal; - é possível fortalecer a capacidade funcional dos idosos mediante capacitação e estímulos ou evitando fatores vinculados à má saúde; - do ponto de vista social e psicológico as pessoas de idade avançada são mais heterogêneas do que os jovens; - a Promoção de Saúde dos idosos deve levar em conta um bom funcionamento mental, físico e social bem como a prevenção das enfermidades e das incapacidades; - muitas medidas que afetam a saúde das pessoas idosas transcendem o setor saúde. Há pois que se considerar a importância das ações de promoção de saúde em relação à melhoria da qualidade de vida dos idosos, pois estas ações prolongam a vida produtiva dos indivíduos garantindo e prolongando sua participação como cidadãos no desenvolvimento do país. Em 2002, a II Assembléia Mundial ocorrida em Madri sobre envelhecimento definiu as diretrizes que devem nortear as políticas públicas referentes à população idosa, para o século XXI. As propostas resultantes deste encontro são baseadas no conceito acima referido de envelhecimento produtivo ou ativo. Este conceito também é utilizado para referir-se à idéia de uma implicação contínua em atividades socialmente produtivas e de trabalho gratifacante (Fonte, 2002). Este conceito traz mudanças na imagem social da velhice como sinônimo de exclusão e incapacidade, para assumir o de inserção social: "... as mulheres de hoje brilham tanto na escola como no trabalho. Isso pode ser o início da construção de um novo futuro para as idosas de amanhã. A mulher está se tornando ainda mais forte. Mais instruída. E mais decidida" (Pastore, 2003). Se por um lado há a preocupação com a inclusão deste grupo, outra discussão também atual diz respeito ao impacto que o aumento do contingente idoso e em especial das mulheres idosas provoca nos serviços e nos benefícios (como a Previdência Social e a atenção à saúde, entre outros), para os quais nem o Estado e nem a sociedade civil como um todo estão preparados. Deste modo o conceito de envelhecimento ativo precisa ser analisado de forma crítica uma vez que tende a homogeneizar as pessoas idosas e a transformar a velhice, antes vista como um período de doença e improdutividade, no seu oposto, isto é, na vitalidade e saúde eternas, negando a real decadência biológica característica desse período, em especial para os idosos mais idosos; assim sendo, poder-se-ia reduzir a velhice a uma "condição de inexistência", sem direitos sociais e de amparo. Há, portanto, que se pensar em garantias para que essa população possa envelhecer com segurança e dignidade, considerando-se os idosos cidadãos de plenos direitos. Se envelhecer é um fenômeno natural, inerente à finitude biológica do organismo humano, cabe sublinhar que são as características da sociedade que condicionam tanto a média de anos de vida de seus habitantes, como a qualidade de vida durante os anos da velhice. Assim, para alguns autores a velhice é um destino social, pois seriam as características da sociedade que selariam o destino da velhice de seus habitantes e "portanto, se pode afirmar que a velhice, muito mais do que um conceito biológico, é uma construção social" (Fonte, 2002). Promoção de Saúde e espaços urbanos A urbanização na pós-modemidade10 O fundamento da cidade moderna é a idéia grega de polis (termo traduzido como cidade-estado), que implica não só em localidade, mas, como coloca Heidegger, em "dimensão em que a existência expande seu ser histórico. A polis é o lugar histórico, espaço no qual, a partir do qual e para o qual acontece a história" (apud Radis, 2000). Segundo Adorno, a cidade moderna, conforme hoje a concebemos, nasceu no século XVIII, quando passou a ser campo e território de intervenção sobre as possibilidades humanas. Mas é no século XIX que o tema urbano é focalizado como "cenário onde se observa o surgimento de um novo modo de vida". O urbano "é um território de hierarquias, diferenças e desigualdades, mas também um campo de novas possibilidades, conflitos e negociações, de conquistas e de intervenção de estilos e novas perspectivas de vida" (Adorno in Radis, 2000). No século XX surgem as megalópoles, cidades que ultrapassam a barreira dos dez milhões de habitantes. Nelas encontramos os chamados processos de globalização tecnológica, onde além dos hardwares e dos softwares passamos a ter os know-wares, isto é, uma nova economia do conhecimento, que não se encontra em um só lugar, mas no espaço virtual, que é, em dado momento, o das conexões on-line. Este espaço, agora, virtual, é o que caracteriza as relações contemporâneas. Há uma desterritorialização, uma desespacialização. As pessoas cada vez mais deixam de ir a algum lugar para "logar" em algum lugar (Najar in Radis, 2000). A origem desta crescente urbanização que se dá em todo planeta, mais intensamente nos países em desenvolvimento, pode ser explicada, segundo Habermas, pela submissão das estruturas tradicionais às condições da racionalidade instrumental ou estratégica. Desta forma, segundo este autor, nasce a infra-estrutura de uma sociedade cada vez mais obrigada à modernização, que se estende a todos os domínios da existência: exército, sistema escolar, serviços de saúde, família e termina por impor uma urbanização da forma da vida. Segundo Maura Veras (2000), devido ao fenômeno da globalização, as cidades, na pós-modernidade, estão conectadas de alguma forma à economia planetária; assim se estabelece uma nova dialética entre o que é local e o que é global. As cidades têm pois que resolver um duplo problema, já que devem atender às localidades e ao mesmo tempo se tornar competitivas em função das ações globais. Esta segunda função, em muitos momentos, sufoca a primeira. Para Ianni "nesse fim de século, o desenvolvimento e a expansão do capitalismo, em escala mundial, está influenciando o aparecimento de um outro tipo de cidade: a cidade global. Constitui-se de densas regiões urbanizadas, com forte controle mecânico, fortemente ligadas entre si, formando novas redes de articulações, por meio das quais se configuram as possibilidades do capitalismo global" (apud Mendes, 1999). Para o geógrafo Milton Santos (2000), cada lugar está imerso em uma comunicação com o mundo, mas acaba se tornando, nesta comunhão, exponencialmente diferente dos demais, pois cada lugar, à sua maneira, é o mundo. Para ele não há um tempo global único e sim um relógio mundial. Os espaços mundializados estão ligados por redes que são instrumento da produção, da circulação e da informação mundializada. São elas que transportam o universal ao local e que terminam, como vetores da hegemonia, criando localmente a desordem. Isto porque determinam mudanças estruturais e funcionais e principalmente porque as ordens não são portadoras de sentido, pois o único objetivo é o mercado global. Assim, as atividades financeiras são as que mais se beneficiam, onde a vasta rede interativa de comunicações permite que o dinheiro, em suas múltiplas formas, flua ininterruptamente por 24h. Desta forma a globalização é perversa para a maioria da humanidade. Para Sabroza (2000) a urbanização tem reflexos negativos para a população pois, se antes podíamos trabalhar com as desigualdades, hoje o trabalho a ser feito tem que levar em conta o fenômeno da exclusão. No Brasil, segundo o IBGE, vivem nas áreas urbanas, 81,25% da população, ou seja, 137,7 milhões de pessoas. Este número é assombroso se levarmos em conta que em 1960 a população urbana representava 44,67%, ou seja, 31,3 milhões de pessoas e a população rural era de 38,76 milhões de pessoas. Projeções do IBGE apontam que, a despeito da queda das taxas de natalidade, a população urbana no meio do século XXI deverá ser de 247 milhões de pessoas (Novaes, 2003). O processo de urbanização crescente, em decorrência dos processos de globalização e incorporação de novas tecnologias (gerando ondas de desemprego estruturais), decorre de dois fluxos migratórios concomitantes: o êxodo rural (migração do campo para as cidades) e a migração interna intercidades (migração de uma cidade para outra). Este continente migratório importante que contribuiu para o inchaço das metrópoles se dá em busca de melhores salários devido aos diferenciais de renda entre macrorregiões, em busca de emprego, fenômeno que ocorre especialmente na região sudeste do país devido à concentração industrial e à implementação dos serviços, decorrente da incorporação de tecnologia e também em busca de melhor infra-estrutura de saúde e educação. Os dois fluxos migratórios geraram custos sociais pesados às áreas urbanas, com uma expansão descontrolada das periferias, onde os migrantes, de baixa renda, passaram a ocupar loteamentos clandestinos (em sua maioria), áreas de mananciais ou áreas de risco, sem infra-estrutura adequada. Esta urbanização crescente gerou uma demanda adicional especialmente financeira, para as cidades, uma vez que foi necessária a expansão de infra-estrutura para as periferias (energia, transporte, água e esgoto, limpeza urbana, segurança, educação, saúde, lazer) onde era praticamente inexistente. Demanda não atendida conforme as necessidades crescentes, e as áreas das periferias encontram-se degradadas, com desemprego crescente e altas taxas de violência. Segundo Touraine "a miséria do Pais já não é mais rural, é urbana. O grande problema do Brasil é a destruição ou sobrecarga das grandes metrópoles" (apud Novaes, 2003). As desigualdades sociais passam, também, a serem evidenciadas pela forma de ocupação do espaço urbano, uma vez que os preços dos imóveis tornam-se um mecanismo de distribuição da população no território da cidade A privatização e a distribuição dos serviços urbanos tem aumentado a desigualdade no acesso a esses serviços. Desta forma, as áreas mais ricas, onde habita a população de maior poder aquisitivo, conta com uma oferta maior de serviços e equipamentos que distribuem o bem estar urbano, como saneamento, telefonia, escolas, postos e outros serviços de saúde, áreas de lazer, etc. O fenômeno da globalização tem também provocado uma tendência à dualização social, isto é, a estrutura tradicionalmente piramidal assume a forma de uma ampulheta, com o encurtamento das posições médias e aumento das pontas. Simultaneamente vem ocorrendo o aumento da distância entre a renda dos estratos superiores e a dos inferiores. Observa-se ademais o aumento da segregação residencial na medida em que surgem bairros exclusivos das camadas superiores enquanto as médias e inferiores, são deslocadas para outros bairros. É importante lembrar que estudos revelam a vulnerabilidade destes grupos que habitam territórios homogêneos onde se instala uma dinâmica de causação circular da pobreza. Este "efeito vizinhança" reproduz o "desempoderamento" destes segmentos sociais submetidos a relações de precarização no mercado de trabalho e trajetórias de mobilidade social descendente (Ribeiro, 2003). Os mapas sociais da cidade têm tido uma certa difusão como instrumentos de orientação das políticas públicas a fim de focalizar territórios onde vêm ocorrendo desvantagens sociais. As cidades saudáveis como uma nova estratégia em Promoção de Saúde As mudanças demográficas que vêm ocorrendo, em especial nos países do terceiro mundo, tornam urgente a busca de novas estratégias para a promoção da saúde, que devem dar conta dos problemas urbanos dos segmentos populacionais que ali habitam. Com o objetivo de criar melhores condições de vida para a população, surge, na década de 1970 em Toronto, Canadá, o movimento denominado Cidades Saudáveis. Este movimento a partir de 1984 ganha força, expandindo-se para várias cidades da Europa (mais de mil cidades), Estados Unidos, Canadá e alguns países da América Latina (Cuba, Colômbia, México e Brasil). A primeira definição de Cidades Saudáveis foi elaborada por Hancok e Duhl em 1986 como: "é aquela que está continuamente criando e melhorando o ambiente físico e social, fortalecendo os recursos comunitários que possibilitam às pessoas se apoiarem mutuamente no sentido de desenvolverem seu potencial e melhorarem sua qualidade de vida." Mendes (1999) a define como "projeto estruturante do campo da saúde, em que os atores sociais (governo, organizações da sociedade civil, organizações não governamentais) procuram, por meio da "gestão social" transformar a cidade em um espaço de "produção social da saúde". Para Roux o que torna uma cidade saudável é a decisão, a vontade política de direcionar todas as políticas sociais, entre elas as políticas de saúde, para uma única meta: saúde como qualidade de vida. Para tanto, é necessário que se definam atividades a serem feitas, aportes de recursos e responsáveis por sua execução. Para o mesmo autor, uma cidade começa a ser saudável quando as organizações locais e cidadãos assumem o processo de melhoria contínua (idéia força da cidade saudável) das condições de saúde e de bem estar de todos os habitantes. A concepção central do projeto de Cidades Saudáveis é a de que saúde deve ser entendida como produção social e, como tal, gerada por processos participativos, sociais e institucionais orientados para a elaboração e implementação de políticas públicas saudáveis que visem a superar o quadro de profundas desigualdades. Sob este prisma depende da ação concertada de governo. O prefeito é o gestor social, ou seja, o ator político condutor do desenvolvimento de políticas saudáveis da cidade. Assim, as políticas de educação, transporte e habitação, para o desenvolvimento de uma proposta deste tipo devem ser saudáveis. Adotar este projeto significa assumir uma política de governo, que o envolverá de forma global, pois será necessário avançar e trabalhar as interrelações dos diferentes setores, ou seja, educação, saúde, saneamento, transporte, etc, o que implica a adoção de políticas integradas e, portanto, radicais transformações nos processos de gestão atualmente em cena. Como último ponto, segundo seus ideólogos, há a necessidade de que um projeto deste tipo inicie uma reorientação dos serviços de saúde avançando-os em sua vertente preventiva e de promoção de saúde, buscando reverter a lógica curativista e assistencialista do modelo de atendimento atual. Critica da proposta das Cidades Saudáveis A despeito dos avanços que poderia, em tese, representar a estratégia de Cidades Saudáveis, a sua adoção implica sérios problemas que, a nosso ver, levam a inviabilizar essa proposta. Antes de mais nada, sua idéia matriz, que também é a do próprio movimento de Promoção, ou seja, a de que o planejamento das cidades como um todo deve estar basicamente direcionado para a saúde, não se sustenta, independente da concepção de saúde que seja adotada. Com efeito, se adotarmos o conceito positivo da saúde, que a identifica com qualidade de vida, dizer que o planejamento das cidades deve visar à qualidade de vida dos cidadãos é apenas uma banalidade vazia, que não permite individualizar nenhuma proposta de intervenção urbana. Mas se entendermos saúde como negação da negação, ou seja, levando em conta as causas básicas do adoecer, considerar que toda a política das cidades deve ter a saúde como referência maior, implica dizer que os demais setores como educação, moradia, transporte, lazer, trabalho, etc., devem ser vistos basicamente da perspectiva das doenças virtuais por eles causadas, o que implica em medicalização da cidade, o que tornaria a proposta completamente impraticável. De um modo geral pode-se colocar, no que toca à idéia de Cidades Saudáveis, que ela manifesta o mesmo erro básico da Promoção de Saúde das "Cartas" no que diz respeito ao entendimento das relações entre o particular e o geral no campo da saúde/doença, que consiste em concluir, equivocadamente, que o fato da saúde/doença, em última instância, serem determinadas no espaço da cidade, leva a ver a saúde, em teoria e na prática, como uma entidade genérica destituída de especificidade e de peso político específico. Assim vista, a saúde passa a ser de todos (os setores e atores sociais) e, sendo de todos, corre o sério risco de ser, de fato, de nenhum. Referências bibliográficas Adorno, R. F. C., "Cidades saudáveis". In: A grande cidade. Radis. N. 19, maio, 2000. Almeida, E. S.; Vieira C. A.; Castro, Ç. G. J.; Furtado, L. A. C.; Inojosa, R. M., "Planejamento e programação em saúde". In: Gestão de serviços de saúde: descentralização/municipalização. São Paulo: Edusp, 2001. Assis, M.; Pacheco, L. C.; Menezes, I. S. "Repercussões de uma experiência de promoção da saúde no envelhecimento: análise preliminar a partir das percepções dos idosos". Textos Envelhecimento. N. 4(7), 2002. "Brasil e o Ano Internacional do Idoso". In: Relatório Nacional Brasileiro sobre o Envelhecimento da População Brasileira. [Apresentado durante a II Assembléia Mundial sobre Envelhecimento]. Disponível: http:www2.mre.gov.br/dts/dts.htm [7/10/2003]. 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Ghisleine Trigo Silveira Doutora em Saúde Pública pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo - USP Membro do Instituto de Protagonismo Jovem e Educação Isabel Maria Teixeira Bicudo Pereira Professora do Departamento de Prática em Saúde Pública Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo - USP Mais de 50% dos alunos da 5ª série não sabem ler nem escrever "A educação mundial vem se desenvolvendo a cada ano, mas o Brasil não está acompanhando esta evolução. O desempenho de alunos com até 15 anos foi avaliado em 32 países e o Brasil ficou com uma das piores posições, superando apenas a Macedônia, Indonésia, Peru e Albânia. Segundo pesquisa do SAEB (Sistema de Avaliação do Ensino Básico, do Ministério da Educação), do total das crianças brasileiras que cursam a 5ª série do ensino fundamental, 64% não sabem ler, nem escrever. Segundo o documento, enquanto os outros países alcançaram média quatro, na avaliação dos alunos em relação à compreensão de texto, o Brasil ficou com média dois, sendo que 25% ainda tiveram médias inferiores a um. " Folha On-line, 12/9/2003 O conceito de Escola Promotora de Saúde defendido pela Organização Panamericana de Saúde (OPAS) diz que cabe a ela estimular estilos de vida saudáveis em toda a comunidade escolar, desenvolvendo ambiente saudável condizente com a proposta de promoção da saúde. Diz ainda que caracteriza-se como promotora de saúde a escola que atua concomitantemente em três grandes áreas: ambiente saudável, oferta de serviços de saúde e educação em saúde (OPAS, 1995). Segundo Silveira (2000), esse referencial teórico tem recebido a adesão de inúmeros sistemas educacionais, em diferentes países, inspirando a elaboração de diretrizes para que as escolas possam incorporar, ao seu cotidiano, ações efetivas nestes três grandes campos de atuação. No caso do Brasil, o discurso formal igualmente assimilou este paradigma, o que se verifica pela criação dos Parâmetros Curriculares Nacionais, em meados de 1997. No caso dos temas transversais, eles se propõem a responder e a discutir questões atuais que têm impacto na sociedade, portanto podem ser modificados conforme as alterações ocorridas na realidade social. Eles não devem se constituir em disciplinas isoladas, mas devem ser incorporados ao cotidiano escolar, perpassando todas as disciplinas e concretizando-se em práticas que reflitam a visão de mundo e o projeto pedagógico de cada unidade escolar. Hoje, os temas transversais que constam dos parâmetros curriculares são: - ética; - pluralidade cultural; - trabalho e consumo; - orientação sexual; - meio ambiente; - saúde. Cada um desses temas deve estar presente no dia a dia da escola, na fala de cada professor, assim como em cada atividade e/ou experiência vivenciadas pelos alunos, dentro ou fora da sala de aula. Não podem, nem devem ser explorados de forma improvisada, mas devem ter sua implementação planejada cuidadosamente pelo conjunto dos professores, de forma a que em nenhum momento os alunos se deparem com contradições, ou respostas improvisadas, que não reflitam o pensamento da escola, enquanto instituição. A escola deve ser o grande laboratório onde as crianças e jovens têm oportunidade de vivenciar, na teoria e na prática, todas essas questões. Não há programa a ser cumprido ou avaliação a ser feita, mas questões a serem discutidas sob diferentes ângulos e diferentes pontos de vista, de forma a que os alunos tenham condições de perceber e entender o que ocorre na sociedade da qual fazem parte como cidadãos. É na discussão sem preconceito de cada um desses temas que os alunos irão treinar sua visão crítica do panorama social, assim como construir o seu ponto de vista sobre cada questão colocada. Esta proposta revela um avanço do sistema de ensino brasileiro e oferece um panorama promissor nas questões de educação porque, entre outras coisas, privilegia a flexibilidade e a adequação do conteúdo dos parâmetros a diferentes realidades; cria e, realmente, desencadeia o processo de descentralização do poder; estimula a criatividade e sugere autonomia na criação do projeto pedagógico de cada unidade de ensino; aponta para a necessidade da participação da comunidade e do estabelecimento de parcerias que possibilitem uma construção mais adequada e aperfeiçoada do projeto escolar. Com relação à saúde, o que se pretende agora é que ela deixe de ser responsabilidade apenas dos professores de ciências, biologia e/ou educação física, para fazer parte do plano de trabalho da escola, com a participação de todos; que seja abandonada a ênfase dada ao comportamento individual e se questione e discuta a participação dos aspectos sociais que têm impacto na saúde da população (tipo de moradia, trabalho, lazer, disponibilidade e qualidade dos serviços de saúde, etc.); que se discuta e se pratique saúde; enfim, que se deixe de lado a visão reducionista de saúde, que se mostrou totalmente incapaz de equacionar os problemas e implementar as mudanças desejadas. Assim, a proposta atual é que a escola assuma o seu real papel social, colaborando, na ampliação da visão da saúde como resultante, não apenas do desempenho individual, mas do enfrentamento de questões de ordem coletiva relacionadas a todo o cenário socioeconômico-cultural, visto o meio ambiente como parte desse cenário. Escola Promotora de Saúde: o tripé educação em saúde, ambiente saudável e serviços de saúde Entre os objetivos a serem alcançados pela Escola Promotora de Saúde, segundo a OPAS, pode-se citar: - promoção de ambiente saudável; - estímulo ao desenvolvimento de estilos de vida saudáveis; - promoção da auto-estima entre os alunos; - estabelecimento de relações positivas entre os alunos, entre alunos e professores, entre professores e pais e entre a escola e a comunidade; - oferecimento dos conhecimentos e habilidades necessárias para que os alunos tomem decisões adequadas em relação a sua saúde pessoal e ao aprimoramento do ambiente que os cerca, dentro e fora da escola (OPAS, 1995). A consecução desses objetivos implica o estabelecimento de estratégias e procedimentos que a OPAS traça detalhadamente, mas que devem ser adequados a cada região e a cada realidade. Para Promover Saúde, uma escola tem que ter poder para decidir seu destino, traçar seu projeto pedagógico, discutir suas necessidades reais e estabelecer as estratégias necessárias para atendê-las. Precisa ter liberdade para discutir os valores inerentes à equidade, à ética e justiça social, valores esses que devem se originar na família mas que, necessariamente, têm que se consolidar e concretizar na vivência escolar. É nesse espaço que as crianças e jovens devem enfrentar essas questões, entendê-las e, assim, ir formando a visão de mundo que irá guiar toda a sua vida como cidadão. Essa postura implica trabalho íntimo com a comunidade, que deve conhecer a proposta da escola, discuti-la em conjunto e ajudá-la na definição de seu projeto pedagógico, assumindo-o como seu também. "A escola é mais uma das instâncias no processo gradativo de formação da cidadania e, não há como avançar nessa direção sem que se estabeleça a necessária sinergia entre escola e movimentos populares" (Silveira, 2000). Para isso, a escola necessita buscar apoio e parcerias na comunidade, partindo dos pais dos alunos e chegando a outras instituições públicas e/ou privadas, organizações não governamentais, empresas, instituições religiosas, voluntariado, etc. O apoio da comunidade é imprescindível para a viabilização e sucesso do projeto de uma escola e isso só ocorre quando ela realmente assume sua participação no trabalho escolar e sua co-responsabilidade na elaboração de seu projeto, estando apta e disposta a defendê-lo em qualquer situação. Embora a OPAS ofereça um modelo detalhado a ser seguido, a escola que realmente quiser ser promotora de saúde tem que criar suas próprias estratégias de ação, descobrir suas necessidades, realizar seu próprio diagnóstico e traçar seu plano de ação. É importante que se defina claramente o significado de cada um desses três elementos, na composição do ideário da Escola Promotora de Saúde. Educação em saúde Segundo a OPAS (1998) a educação em saúde deve ter um enfoque integral e responder às necessidades dos alunos em cada uma das etapas de seu desenvolvimento, trabalhando desde seu amor próprio, até a capacidade de adquirir hábitos higiênicos e adotar formas de vida saudáveis. Deve ser centrada em ensino de caráter transdisciplinar, não constituindo território privativo de uma única disciplina ou professor, mas presente na fala, no conteúdo e no exemplo de todos os professores da escola. Deve ser coerente com o ambiente físico e emocional da escola; deve migrar do individual para o coletivo, do particular para o social; deve analisar as questões de saúde não mais de forma reducionista, buscando as causas dos problemas na ação de cada indivíduo, mas de forma ampliada, reconhecendo o peso da sociedade, como agente responsável por esses problemas. Antes de encaminhar seus alunos a diferentes especialistas da área da saúde (médico, psicólogo, fonoaudiólogo, etc.), deve averiguar se a causa do problema não está dentro da própria escola, da rotina estabelecida, do tipo de relações existentes. Deve tentar um diagnóstico pedagógico, antes de recorrer ao diagnóstico médico, evitando assim engrossar a demanda pelos serviços de saúde. A educação em saúde é importante no espaço escolar na medida em que colabora para que cada participante do seu universo (alunos, professores, funcionários técnico-administrativos, pais) reavaliem seus estilos de vida em busca de uma melhor qualidade de vida. Para tornar real esse ideário há necessidade de que se cumpram alguns pré-requisitos, tais como: - diagnóstico das necessidades; - planejamento de um programa de ensino integrado; - preparação de material didático adequado; - formação, capacitação e atualização dos docentes (OPAS, 1998). Ambiente saudável O ambiente escolar, tanto intra como extramuros, deve propiciar aos alunos oportunidade de vivenciar tudo que faz parte do discurso da escola, de sua proposta de ação. Basta observar o ambiente físico e emocional reinante em uma escola para se poder traçar com certo grau de certeza a visão de mundo e o nível de engajamento de sua direção e de seus professores. "A escola saudável deve estimular em seus alunos o sentido de responsabilidade social, desenvolvendo neles a capacidade de resolver conflitos através do diálogo e da negociação, como fatores preventivos da violência e como instrumentos de uma convivência harmônica" (OPAS, 1998). Uma escola com área verde preservada, limpa, equipada, onde as relações entre os diferentes protagonistas são positivas, respeitosas, transparentes, onde alunos e professores e pais têm prazer de estar, está dando um recado a toda a comunidade, está educando pelo exemplo. Esses atributos significam que essa é, com certeza, uma escola saudável; e uma escola saudável é sempre uma boa escola. Serviços de saúde "Quando se reconhece que a saúde da infância e juventude é um valor fundamental a ser promovido em todas as sociedades e países e se toma como referência o caráter abrangente da promoção da saúde, até por uma questão de boa lógica, é indispensável assegurar a colaboração entre jovens, adolescentes, famílias, escolas, serviços de saúde, organizações não-governamentais, instituições oficiais, indispensável para conferir um enfoque integral à educação em saúde, fora e dentro da escola" (Silveira, 2000). Nesse sentido, os serviços de saúde constituem apenas um dos mecanismos dos quais a escola deve lançar mão para assegurar a boa saúde de seus alunos. Assim, não cabe à escola promotora de saúde abrigar diferentes serviços ou profissionais de saúde, mas manter com eles uma relação íntima e aberta, onde a utilização dos serviços prestados pelas unidades de saúde, seja uma conseqüência natural desse relacionamento. Na verdade, o grande desafio é articular esses dois níveis legítimos de promoção da saúde. Os profissionais das unidades de saúde e educação devem conhecer-se mutuamente e os profissionais da saúde devem ser conhecidos da escola, dos alunos e seus pais, devem freqüentá-la, participando e colaborando com seu projeto. Isso significa que a escola não os está solicitando apenas em situações de urgência, acidente ou risco. A escola tem que encarar a unidade de saúde como sua parceira, cuja ação é muito importante para a concretização de seu projeto pedagógico. A escola Promotora de Saúde e a "escola nossa de cada dia" Embora a formação das crianças e dos adolescentes não seja competência exclusiva da escola, é nela que se trabalha sistematicamente com o conhecimento. Entre outras vertentes, são os conhecimentos e as habilidades que a vida em sociedade demanda dos alunos que informam o currículo escolar. Em linhas gerais, a escola brasileira pretende que os alunos: - possam comunicar suas idéias, quando falam ou quando escrevem; - dominem a linguagem e o raciocínio matemático; - enfrentem problemas de sua vida cotidiana, especialmente os que dizem respeito ao seu corpo, à sua saúde e à preservação ambiental; - sejam solidários com o seu grupo e a sua comunidade; - compreendam a realidade que os cerca, situando-se nela temporal e espacialmente; - construam progressivamente sua autonomia intelectual; - possam aplicar, em outras circunstâncias, o que aprenderam na escola. Ainda que esta lista possa ser aprimorada - e ampliada - não é de todo impossível construir um consenso sobre os conhecimentos e habilidades que a escola precisa assegurar aos que a freqüentam. Os maiores desafios surgem quando se trata de chegar a "conteúdos escolares" que dêem conta das chamadas "demandas sociais" - uma discussão que tem como foco o currículo escolar. Embora sejam amplas e profundas as discussões nesta área, num exercício de premeditada simplificação, pode-se admitir de que se trata de assegurar aos estudantes quatro conteúdos escolares básicos: - a aprendizagem de fatos, eventos, acontecimentos; - a construção de conceitos sobre a realidade física e social, bem como o estabelecimento de relações entre esses conceitos; - a construção progressiva de métodos e procedimentos; - a construção de valores, atitudes e normas de conduta. Em síntese, a escola tem a responsabilidade de ensinar os alunos a raciocinar com base em conhecimentos sólidos e valores sociais e democráticos. Isto porque se acredita que a educação - e a escola - é o principal caminho para que todos sejam cidadãos - de fato. A escola brasileira já vem dando boas respostas a esses desafios, mas não tem sido fácil dar concretude ao slogan "educação para TODOS". Não tem sido fácil passar de uma escola para poucos para uma escola que atende - e ensina - a todos. Persiste em muitas escolas uma pedagogia que permanece indiferente às diferenças ou que, na melhor das hipóteses, não as leva em conta senão de modo marginal. Há, no entanto, escolas que dão um salto qualitativo e reconhecem que as diferenças e as desigualdades extra-escolares - biológicas, psicológicas, econômicas, sociais e culturais - não se transformam em desigualdades de aprendizagem e de êxito escolar, a não ser ao sabor de um funcionamento particular do sistema de ensino, de sua forma de "tratar" as diferenças. Reféns desse entendimento, praticam um currículo que não é hostil aos alunos das classes populares. Práticas "amigáveis" - atraentes, significativas, acessíveis, que levem em conta suas experiências anteriores -, mas que não têm a ver com a distribuição desigual do conhecimento, que, eventualmente, possa levar estudantes pobres e de minorias a terem menos acesso aos conteúdos e ao domínio das competências necessárias à vida em sociedade. E, salvo melhor juízo, os pressupostos e as práticas da escola promotora de saúde não apenas referendam essas posições, como também oferecem uma gama de possibilidades a todos os alunos, especialmente em relação aos critérios da relevância social e conteúdos significativos que ela sugere. A rigor, entre a "escola Promotora de Saúde" e a "escola comprometida com a aprendizagem de todos" não se estabeleceria nenhuma "escolha de Sofia", a não ser em casos de apropriação equivocada daqueles pressupostos e/ou práticas. Nestes casos, ainda continuaremos a conviver com escolas que se perdem num frenético "ativismo pedagógico", às voltas com atividades e/ou projetos que, em alguns casos, funcionam como um álibi para as genuínas habilidades e/ou competências que não estão sendo asseguradas aos alunos que as freqüentam. Escolas que vivem uma estranha duplicidade: o cotidiano das "aulas", esvaziado de sentido, interesse e aprendizagem, e o "espaço" da fragmentação das chamadas "atividades extracurriculares". Por vezes, um "ativismo" que vai cedendo espaço ao melhor aproveitamento do tempo dedicado às atividades genuinamente pedagógicas: a escola se livra dos "acessórios" e descobre o seu caminho: como assegurar que todos aprendam, de maneira a que faça realmente diferença os oito ou 11 anos de escolaridade a que todos os cidadãos brasileiros aspiram. Uma escola saudável é uma boa escola? Sem dúvida, uma escola saudável é, também, uma boa escola; mas, nem sempre, uma boa escola é saudável. Uma boa escola pode estar tão voltada para resultados imediatos centrados apenas em aquisição de conhecimentos que acaba por explorar valores como a competitividade em detrimento da participação, a exclusão em detrimento da inclusão, o salve-se quem puder em detrimento da solidariedade; seu projeto pedagógico busca o sucesso enquanto questões de ética e outros valores importantes na formação do cidadão não são discutidos e vivenciados na escola com a ênfase desejada. Por outro lado, uma escola saudável é aquela que, além de buscar o sucesso, está muito preocupada com cada um de seu alunos, seja ele brilhante ou não: - tem um projeto pedagógico definido, fruto da colaboração de todos: professores, diretores, pais e comunidade contando, portanto, com sua total adesão; - é onde os alunos são gente e não apenas números; têm um perfil, uma família, uma história cujos dados não apenas engrossam seu prontuário, mas são utilizados em seu benefício durante toda sua trajetória escolar; - conta, também, com um ambiente tanto físico como emocional, compatível com o discurso e o projeto da escola; - é uma escola aberta, onde os pais são bem-vindos, onde os alunos têm prazer em permanecer, onde a comunidade sente-se à vontade para utilizar seu espaço na realização de atividades culturais ou de lazer; - é onde se exercita o empowerment, como uma estratégia pedagógica no exercício da cidadania; - é onde o ensino é levado à sério, com a preocupação de que os alunos tenham sucesso, não só nos vestibulares mas, principalmente, na vida, como cidadãos; assim, os conhecimentos oferecidos têm que fazer sentido para os alunos, devem servir para explicar questões reais, que eles conhecem e que os preocupam; - é onde os princípios da ética, da justiça social, da eqüidade, são vivenciados a cada minuto, em todas as situações e, entre todos os membros da comunidade escolar; - é onde não existe o preconceito, a injustiça, o abuso do poder, a prática da exclusão; - é onde o meio ambiente é preservado, é respeitado, tanto dentro como fora da escola de acordo com os princípios da educação ambiental; - é onde a violência é combatida, discutida com os alunos na tentativa de se compreender suas causas, estejam elas dentro ou fora da escola. Dessa forma, uma escola saudável é, com certeza, uma boa escola. Uma escola cujos alunos certamente não estarão incluídos entre aqueles que chegam à 5a. série sem saber ler e escrever, segundo notas com freqüência divulgadas pela imprensa. Recursos Humanos para a Promoção de Saúde Ana Maria Cavalcanti Lefevre Doutora em Saúde Pública pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo - USP Pesquisadora do Centro de Controle de Doenças da Prefeitura Municipal do Estado de São Paulo Vitória Kedy Cornetta Professora Livre Docente da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo - USP Neste artigo pretende-se avançar a idéia que o conjunto de representações sociais relativas a área de Recursos Humanos (Simioni, 1996) determina a práxis11 dos trabalhadores e gerentes que atuam neste campo e que isto é fundamental para se entender a questão dos recursos humanos para a Promoção de Saúde. Inicialmente discutiremos a questão das representações que os gerentes do setor saúde têm sobre a área de Recursos Humanos e como estas representações influenciam as formas contratuais, a permanência, investimentos e benefícios propocionados aos Recursos Humanos desta área. No segundo tópico pretendemos indicar como as representações que estes gerentes e profissionais tem sobre saúde e doença estão relacionadas ao modelo de prestação de serviços de saúde, quando este modelo tem como base a Promoção de Saúde. No terceiro tópico levantaremos os principais atributos e habilidades que devem ser desenvolvidas no promotor de saúde para que se possa iniciar a construção efetiva dos serviços de Promoção de Saúde no Brasil. No quarto tópico serão elencadas propostas para que o desenvolvimento deste profissional possa ser efetivado. A representação gerencial da área de Recursos Humanos para o setor saúde Tradicionalmente podemos observar que os gerentes apresentam três grandes tendências de representação a respeito da área de Recursos Humanos para o setor saúde (Governo do Estado de São Paulo, 1991). Um primeiro conjunto de representações para a área a concebe como a riqueza e o patrimônio de determinada administração. Leva em consideração o fato de que, para o setor saúde, os resultados, sejam eles qualitativos ou quantitativos, dependem diretamente da relação entre o cliente e a equipe de saúde, bem como entre a comunidade e os serviços de saúde. O vínculo pessoal equipe de saúde-paciente é entendido como fator importante para prevenção e cura das doenças não podendo ser substituído por exames diagnósticos e equipamentos em geral. As administrações que têm como base este tipo de representação tendem a criar planos de carreira, áreas de desenvolvimento de pessoal com setores de educação continuada, planos de benefícios e outros mecanismos que tenham como objetivo a manutenção, a satisfação e o desenvolvimento dos recursos humanos existentes na instituição. Os trabalhadores são efetivos na instituição e isto pode ser feito através da forma contratual onde os trabalhadores são efetivados, após a realização de concursos públicos ou de forma conceitual, uma vez que estes trabalhadores são vistos pela instituição, de forma permanente, como estáveis, pois esta os encara como uma riqueza que deve ser preservada e continuamente investida visando ao seu aperfeiçoamento. Atualmente, não tem sido a visão mais freqüentemente adotada. Uma simples observação lingüística confirma esta afirmação: notamos, por exemplo, que termos "negativos" como "gasto", "custo" ou "despesa" com pessoal são os mais constantemente utilizados quando a administração se refere aos seus recursos humanos, contrapondo-se aos termos "positivos" "investimento", "ampliação" e "modernização", quando se fala de equipamentos, materiais e obras. O mesmo podemos dizer a respeito das diversas reformas em curso, tanto na administração pública como na privada, que têm sempre como base a contenção de custos em relação à área de Recursos Humanos. Há um amplo consenso sobre a necessidade de superar entraves e limitações dos processos gerenciais de Recursos Humanos tradicionalmente adotados pelas instituições de saúde. Para isso, é indispensável elaborar propostas e trabalhar sua viabilidade, buscando sempre a inovação e o aperfeiçoamento das práticas de administração do trabalho nos serviços de saúde. Uma segunda tendência considera a área de Recursos Humanos como meio para a produção dos serviços de saúde. Sob este ponto de vista, os recursos humanos de determinada administração são vistos como meios para a obtenção de melhores resultados e não como um fim em si mesmo. Sob esta ótica, um bom gerente administra os Recursos Humanos tendo em vista a obtenção da eficiência e eficácia da equipe de trabalho. Os gerentes que adotam este conjunto de representações normalmente optam por formas contratuais do tipo não permanente, pois acreditam que a estabilidade acomoda os trabalhadores retirando deles o estímulo para produzir e progredir. Acham também que a estabilidade retira do gerente a possibilidade de gerenciar os Recursos Humanos de sua empresa. O sucesso de uma organização depende, em maior ou menor grau, do empenho de cada um dos seus integrantes. Os gerentes, ainda quando não se apercebam formalmente, reconhecem que seu papel no desempenho final da organização é muito limitado, restringindo-se apenas à mobilização dos recursos e das condições mais adequadas possíveis a seu funcionamento. Uma terceira tendência de concepção desta área diz respeito aos Recursos Humanos da saúde como agentes de mudança para a construção do SUS, através da prática cotidiana do seu trabalho. Esta terceira tendência adotaria diversas formas contratuais, possibilitando a existência de trabalhadores com vínculos permanentes para determinados postos de trabalhos e trabalhadores com vínculos temporários para outros postos, para permitir uma agilidade maior para a reposição de pessoal, de maneira que a população pudesse estar permanentemente atendida. A determinação do que seria um posto de trabalho com vínculo permanente e do que seria um posto de trabalho com vínculo temporário deverá ser feita de acordo com a natureza do trabalho a ser desenvolvido. Assim, algumas funções para a área da saúde devem ser ocupadas por trabalhadores com vínculo permanente com a instituição. Um exemplo de funções permanentes seriam aquelas referentes às áreas de vigilância sanitária e epidemiológica, para as quais a instituição necessariamente leva anos de investimento na formação de seus Recursos Humanos, os quais deveriam permanecer em caráter exclusivo e integral afim de atender às necessidades populacionais. Raciocínio inverso deve ser aplicado às formas contratuais de caráter não permanente para a área da saúde. Assim trabalhadores para áreas que não requeiram trabalhos especializados, ou que seja contratados por curto espaço de tempo, devem ser recrutados através de outras formas contratuais que não as permanentes. Temos como exemplo os trabalhadores de limpeza urbana, que são contratados para o combate do vetor do dengue; estes trabalhadores devem atuar somente na área necessitando de limpeza, portanto não são especializados para o setor saúde, devem também ter uma atuação sazonal, devido ao comportamento desta doença e por princípio terem um tempo, pois espera-se que o vetor seja erradicado. Sendo esta função, por natureza, não permanente, o trabalhador também não o será. Na prática, estas tendências devem coexistir e o desenvolvimento dos recursos humanos para o SUS deveria ter como meta, a formação de equipes eficientes, eficazes, que atuassem como agentes para a efetiva construção do SUS e que, acima de tudo, fossem vistas como o principal patrimônio e riqueza de uma dada administração. A representação do conceito de saúde e os Recursos Humanos para a área de Promocão de Saúde Temos como pressuposto para a análise que será apresentada neste tópico que as representações sociais dos trabalhadores da saúde são as bases sob as quais derivam as suas práxis individuais. Outro ponto importante a ser ressaltado é que as representações são socialmente produzidas (Spink, 1993). Deste fato deriva que os profissionais da saúde têm representações que são comuns a esta área o que possibilita as trocas simbólicas entre eles já que pertencem ao mesmo campo social (Simioni, 1996). Precisamos também colocar que as representações são, em sua maioria, geradas a partir dos órgãos formadores, no caso as universidades, escolas médicas, cursos de enfermagem e outros da área da saúde. Estes órgãos formadores espelham, por sua vez, o que a sociedade maior pensa sobre saúde e doença. Dito isto, fica fácil inferir que as representações, apesar de serem manifestadas a partir das falas individuais, tem sempre uma produção social e são socialmente compartilhadas. Assim sendo, podemos dizer que os profissionais da saúde têm, como qualquer outro trabalhador de outras áreas, representações próprias do seu campo, geradoras e norteadoras de práticas específicas. Todo campo social é estruturado através de um conjunto de representações que mantém entre si relações de hegemonia, competição, subordinação, etc. Em geral, na maior parte do tempo, uma destas representações é hegemônica, isto é, domina e subordina as outras representações competidoras. A nossa hipótese é que hoje, entre nós, a representação hegemônica no campo da saúde define-a, sempre, por oposição à doença. Assim, se perguntarmos aos trabalhadores o significado do termo saúde poderemos verificar que, apesar da variabilidade, a maioria das respostas acabará desembocando numa visão da saúde como não doença. Aprofundando-se mais nesta linha de raciocínio podemos observar que não há terminologia para definir saúde, salvo relacionando-a como não doença (Lefevre, 1999). Conforme nosso pressuposto inicial as práxis individuais e coletivas derivam-se do conjunto de representações sociais. Desta forma podemos imaginar que o campo da saúde, até o momento tem construído sua rede de serviços, e a sua forma de atuação (efetivada através das práxis dos promotores de saúde) tendo como base real uma relação circular e tautológica entre saúde e doença cuja base representacional é sempre a mesma: afastando-se o doente da doença obteremos a saúde (Lefevre, 2001). Ora, esta não é a visão da Promoção de Saúde, que tem como base outras representações relativas ao conceito de saúde na medida em que o seu objetivo não é afastar a doença do indivíduo ou vice-versa mas construir uma sociedade globalmente saudável, livre de doenças. Por isso é que se diz que, da ótica da Promoção, os serviços de saúde devem promover a saúde e não a não-doença circular. Sob este prisma, acreditamos não ser possível desenvolver os Recursos Humanos que atuam na área de saúde sem antes ser elaborada uma ampla pesquisa que indique com precisão as representações presentes no imaginário social onde se deseja intervir. Tal estudo mostrará com clareza o trabalho de desenvolvimento a ser feito junto aos trabalhadores visando a tornar a sua visão de saúde e doença compatível com o modo como a Promoção vê a saúde e a doença. Outro aspecto a ressaltar é que é essencial que os órgãos formadores participem deste processo, a fim de que modifiquem a ótica sob a que têm sido normatizados os cursos relativos à área da saúde, uma vez que esses órgãos são os principais formadores das representações dos atores que atuam no campo da saúde. Acreditamos que esta mudança paradigmática é essencial ao desenvolvimento do campo da promoção de saúde, pois, como assinalamos, a construção desta área se dará necessariamente através dos trabalhadores que nela atuam. Mas não se imagina, é claro, que esta mudança possa ser feita de forma rápida nem global. Ela será sempre lenta e gradual. E podemos dizer que, numa certa medida, este processo de mudança já está em curso. Atributos e habilidades que deve ter um trabalhador da Promoção de Saúde Assim, no sentido de contribuir para o desenvolvimento deste processo de mudança em direção a uma nova visão de saúde, abordaremos aqui, brevemente, o tópico relativo aos atributos e habilidades que deveria possuir um profissional de saúde atuando na linha da Promoção de Saúde. Segundo o referencial adotado neste artigo, este trabalhador teria que operar um deslocamento de sua praxis do campo da doença para o campo da saúde, entendida como assinalamos, como negação secundária da doença. Assim, gradativamente, o especialista em doença seria substituído pelo especialista em saúde. O especialista em saúde, sem nunca deixar de ser, também, um especialista em doença, deve ter alguns atributos que o diferenciem do antigo especialista unicamente em doença. Em primeiro lugar é fundamental que se leve em conta que, apesar deste profissional pertencer ao campo da saúde, e portanto ser o responsável pelo comando das ações relativas a este campo, sua visão deve extravasar a área restrita de seu setor. Desta forma ele deve conhecer o campo da política, da educação, da cultura, dos esportes, da habitação, meio ambiente e quaisquer outros com os quais se faça a intersecção com a área da saúde. Portanto é pré-requisito fundamental que este trabalhador tenha uma ampla visão do entorno que se dá em relação a área da saúde, exigindo-se dele portanto uma visão generalista. O que se pretende é um especialista de saúde com visão generalista. Para que este profissional consiga atuar de maneira ágil neste entorno ampliado que se tornou o seu campo de trabalho é necessário que tenha capacidade de relacionar fatos, dados e de lidar com realidade complexas. Para isto é necessário pessoas com flexibilidade de idéias, capacidade de assimilar o novo e o diferente. O especialista em saúde é necessariamente um trabalhador que extravasa aos muros da unidade básica de saúde e atua junto à comunidade que o cerca. Para isto é necessário que tenha preparo para atuar junto a esta população. É preciso que tenha noção básica dos princípios de comunicação social e individual, e de como abordar este morador e à comunidade como um todo respeitando a cultura local e podendo atuar como um elemento capaz de implementar, em conjunto com a comunidade, as ações necessárias ao desenvolvimento da Promoção de Saúde naquela comunidade. Ao mesmo tempo, como se assinalou, este profissional não pode deixar de ser um especialista em saúde e em doença. O fato de adquirir ferramentas para desenvolvimento da saúde comunitária não deve ser de maneira alguma um bloqueio para que a atenção à doença permaneça junto àquela comunidade. Portanto este especialista deve crescer agregando às suas representações aquelas relativas ao campo da saúde, mas não abrindo mão daquelas já existentes em seu campo de ação. Ele deve acima de tudo ser um generalista especialista. Acredita-se que facilitaria esta análise se trouxéssemos à luz alguns exemplos. Nesse sentido, o dengue ou a AIDS, poderiam ser ilustrativas do que dissemos acima na medida em que são, claramente, doenças que extravasam ao campo especifico da saúde; o dengue pela relação com o lixo, com a cultura, com a estrutura econômica, educação, etc. (Lefevre, 2000); a AIDS por todos este aspectos salvo a questão ambiental, existente na dengue devido à presença do vetor. Ambas são doenças onde a visão específica do setor saúde é insuficiente. O profissional que atua junto a estas áreas necessita ter visão ampla da sociedade que o cerca, tanto em seus aspectos políticos, culturais, sociológicos e outros, como os ambientais, e também conhecimentos específicos da doença, do tratamento, dos serviços de atenção de apoio, etc. É a este profissional que podemos chamar de generalista especialista que a Promoção de Saúde deve desenvolver. Propostas para o desenvolvimento de profissionais de Promoção de Saúde Inicialmente, vamos distinguir aqui o que entendemos por cursos das áreas tradicionalmente denominadas de formação daqueles das áreas tradicionalmente denominadas de treinamento. Por formação deve-se entender os cursos de graduação que se destinam à criação de profissionais de nível superior para a área da saúde, como medicina, enfermagem, nutrição, odontologia, fisioterapia e outros. Estão incluídos sob esta denominação os cursos de formação específica para nível médio na área da saúde, como auxiliares de enfermagem, técnico de enfermagem, técnico em radiologia e outros. São cursos que destinam-se especificamente à criação destes profissionais. Necessitam para o seu funcionamento de autorização e reconhecimento por parte dos órgãos superiores da área de educação, como o MEC, determinação de carga horária mínima, local apropriado para o funcionamento e outras exigências que estes órgãos determinem para o seu funcionamento. Nos treinamentos o objetivo é o preparo de profissionais ao desempenho de determinada função. Não se pensa em criar profissionais, mas em habilitá-los para uma determinada tarefa específica. Neste caso não há necessidade de autorização de funcionamento de órgão da área de educação. Estes cursos são normalmente produzidos pelas próprias instituições nas quais os profissionais atuam, ministrados por outros profissionais mais experientes, ou por empresas e outras instituições contratadas com a finalidade de melhorar o desempenho dos profissionais para determinada tarefa. Para o desenvolvimento de profissionais da área de Promoção de Saúde há necessidade de mudanças tanto nas áreas de formação como nas de treinamento para que obtenhamos mudanças de práxis dos trabalhadores. As áreas de formação, como é do conhecimento geral, subdividem-se em graduação e pós-graduação e esta última em pós-graduação lato senso (cursos de especialização e outros) e stricto senso (mestrado e doutorado). Em relação aos cursos de graduação, para contribuir para a formação de profissionais para a promoção de saúde, há necessidade da inclusão de disciplinas que orientem o aluno efetivamente em direção à saúde entendida como resultante do enfrentamento das causas básicas do adoecer. Não se pretende que estes profissionais deixem de ser formados em suas áreas específicas (Medicina, Enfermagem, Odontologia, etc.), que enfatiza a atenção aos doentes, mas que a atenção ao doente não se dê, como atualmente, em detrimento da atenção à doença. O que ocorre atualmente é que os profissionais acreditam que ao atender o doente estão promovendo a saúde, o que deve ser enfaticamente contestado. A distinção e a oposição clara entre estas "atenções" gerará campos de trabalho também diversos. Em relação aos cursos de pós-graduação há necessidade de ampliação dos cursos de especialização já existentes, criação de cursos curtos e de disciplinas específicas voltadas para a saúde e, a médio prazo, de mestrado e doutorado em Promoção de Saúde (Dias, 1996). Esperamos com isto que, gradativamente, seja construído um universo de representações distinto para os campos da saúde e da doença, gerador de práticas distintas entre os trabalhadores que militam na área da saúde. A partir do momento em que os órgãos formadores iniciem a busca de criação de profissionais que atuem no campo específico da saúde, as áreas de treinamento em serviço, naturalmente surgirão, como uma necessidade de habilitação dos profissionais que já estão trabalhando e que necessariamente terão que ser habilitados para desenvolverem este novo desafio que se apresenta: serem profissionais da saúde. Considerações finais O desenho de estratégias de comunicação constitui, sem dúvida, um instrumento de destaque na implementação de Recursos Humanos para a Promoção de Saúde. Com base no entendimento de que os estilos de vida da população não constituem riscos autocriados, a abordagem de comunicação em recursos humanos precisa privilegiar os aspectos formativos. Ao privilegiar os aspectos formativos, a comunicação focaliza o receptor - seus desejos e expectativas, o conhecimento anterior sobre o tema, suas atitudes e percepções - no contexto das sociedades onde vive. Dessa forma, as ações de Recursos Humanos para a Promoção de Saúde aumentam sua chance de constituírem elementos facilitadores que permitiriam aos indivíduos e populações, autonomamente, transformarem hábitos de trabalho, construídos com base no exercício da cidadania, gerando, assim, comportamentos inovadores. Em suma, parece claro que não pode haver Promoção de Saúde sem participação ativa dos profissionais de saúde e mobilização dos gestores e que para isso é preciso que haja comunicação, ou seja, que a área de Recursos Humanos pense, articuladamente, em formação e informação, socialmente contextualizada. Bioética e Promoção de Saúde Paulo Antonio de Carvalho Fortes Professor Associado da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo - USP Elma Lourdes Campos Pavone Zoboli Professor Assistente da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo - USP Conceito, características e breve evolução histórica A fim de viabilizar a convivência, a sociedade e/ou os grupos têm traçado, ao longo da história da humanidade, diferentes balizamentos. A ética é um deles. A palavra ética, do grego ethos, refere-se aos costumes, à conduta de vida e às regras de comportamento. Circunscreve-se ao agir humano, aos comportamentos cotidianos e às opções existenciais. A ética da saúde ocupa lugar de destaque no conjunto das reflexões éticas, pois enfoca questões relacionadas à manutenção e à qualidade de vida das pessoas. Leopoldo e Silva (1998) considera a ética da saúde profundamente enraizada no terreno dos direitos humanos, pois a vida é o primeiro dos direitos. Entende que implica "compromisso com a realização histórica de valores que encarnem, nas condições determinadas de situações sociais e políticas diferenciadas, o direito de que todo ser humano deveria primordialmente usufruir". Na busca de uma abordagem secular, interdisciplinar, prospectiva, global e sistemática para os temas de ética, consoante com a afirmação e a construção dos direitos humanos que marcam o mundo moderno nos anos 1970, tem se instaurado na área da saúde, nas últimas três décadas, a bioética. Antigas concepções verticais, autoritárias, com deveres e princípios absolutos, não são mais aceitas e passam a ser substituídas por alternativas de caráter horizontal e democrático, com responsabilidades recíprocas e bilaterais (Gracia, 1989). Nasce nos Estados Unidos da América como parte de um movimento social que pretende conciliar o desenvolvimento das ciências, que apresentam alto potencial de interferência com a vida humana e a natureza, com os interesses éticos e humanitários. Porém, três décadas depois de seu aparecimento, está disseminada por todos os continentes (Pessini & Barchifontaine, 2000). Pode-se dizer que a bioética é fruto das repercussões sociopolíticas e culturais do desenvolvimento tecnocientífico que ocorreu na segunda metade do século XX, período posterior à Segunda Guerra Mundial, no qual se desenvolveram as denominadas éticas aplicadas: a ética na política, a ética nos negócios, a ética ambiental e também a bioética. A bioética abraça este processo de confronto entre os fatos biológicos e os valores humanos na tomada de decisões envolvendo os problemas práticos em diferentes áreas da vida, como na assistência médico-sanitária. A reflexão bioética, então, se dá sobre fatos, princípios, valores e normas que são considerados válidos para conduzir a uma "boa vida" na área das ciências da vida e dos cuidados da saúde, criticando ou legitimando o comportamento moral nestas áreas. Fala-nos do que é certo, correto e justo, assim como da responsabilidade dos indivíduos por seus atos, com a finalidade última que vivamos bem em sociedade. Tem por objetivo a "busca de benefícios e da garantia da integridade do ser humano, tendo como fio condutor o princípio básico da defesa da dignidade humana" (Schramm & Oliveira, 1997). Tal é esta defesa, que Cortina & Martinez (1998) chegam a definir a bioética como uma maneira de enfocar a ética a partir da perspectiva da vida humana ameaçada. A aceitação da dignidade humana, enquanto valor fundamental, faz com que nos referenciemos ao imperativo categórico kantiano, de cada indivíduo ser tratado sempre como um fim em si mesmo, não como um mero meio para a satisfação de interesses do Estado, de terceiros, da ciência, dos cientistas ou de interesses industriais e comerciais. Desta forma, tem perspectiva autonômica e humanista e tende a ver o homem em sua globalidade. Pretende, também, a humanização das ações e dos serviços de saúde e a garantia da dignidade humana e dos direitos dos cidadãos enquanto usuários destes serviços. O termo "bioética" aparece na literatura científica, pela primeira vez, em 1970, no artigo "The science of survival" do biólogo, atuante no campo da oncologia humana, Van Rensselder Potter, da University of Wisconsin/EUA, mas foi disseminado no meio científico por seu livro Bridge to the Future, publicado em 1971. Potter entendia que a bioética seria um campo do conhecimento necessário para construir uma ponte entre a ciência e as humanidades, especificamente entre as ciências biológicas e sociais e a ética. Uma ponte que uniria os valores éticos aos fatos biológicos, uma ponte necessária em virtude das possíveis conseqüências desfavoráveis aportadas pelo desenvolvimento biotecnológico sobre a espécie humana e o meio ambiente. Sua preocupação era voltada para o questionainento do progresso científico e sua relação com a vida em geral e a sobrevivência do ecossistema. Progresso que, ao lado dos benefícios que inegavelmente tem trazido, acarretaria conseqüências perniciosas como a poluição industrial e das águas ou o "efeito estufa", conseqüências que não se limitariam aos homens contemporâneos, mas também para as gerações futuras, que serão beneficiárias ou prejudicadas pelas ações e omissões do presente. O pensamento de Potter tem pontos aproximativos ao do filósofo alemão Hans Jonas, que nos alertou, com pertinácia, que o universo ético tradicional, em vigor até meados do século XX, era composto de pessoas contemporâneas e, diferentemente, no atual universo ético se inserem seres que estão ainda para vir num futuro distante, que formarão as "futuras gerações" (Jonas, 1994). Entretanto, no mesmo ano da publicação do livro de Potter, 1971, André Hellegers, obstetra holandês, fundador do Kennedy Institute for Human Reproduction and Bioethics, em Georgetown, Washington, introduziu o termo bioética enquanto disciplina acadêmica e como denominação institucional. Isto favoreceu a divulgação do vocábulo, mas também possibilitou a "confusão" entre bioética e ética médica, restringindo o uso do termo para o campo biomédico, assim contrariando as motivações originais de Potter, que entendia a disciplina de forma mais abrangente. A bioética, desenvolvida a partir de Hellegers pode ser denominada de Bioética Clínica, estando centrada no relacionamento entre profissionais, instituições de saúde, pacientes e tecnologia biomédica, dentro de uma abordagem que se orienta fundamentalmente no sentido da individualidade e não do coletivo. Assim, a bioética até os anos 1990 nos EUA e alguns países da Europa, fixou-se como uma resposta às conseqüências do desenvolvimento das ciências médicas e biológicas em situações de "fronteiras da vida" ou "situações limite", segundo a terminologia empregada por Giovani Berlinguer (1996): reprodução assistida, fecundação in vitro, aborto, clonagem, eutanásia, transplantes, questões ligadas a hereditariedade e engenharia genética. Nos anos 1990 aparecem diversas iniciativas em partes da Europa e nos países em desenvolvimento, especialmente os latino-americanos, que formulam críticas à excessiva ênfase dada pelos "bioeticistas" às questões relacionadas à biotecnologia e se desenvolve a fase "pública" da bioética. Esta fase expande o campo de reflexão da bioética e a dirige para problemas mais voltados à coletividade, como o acesso aos serviços de saúde, a alocação de recursos escassos, as questões demográficas e populacionais e a responsabilidade individual e coletiva sobre a assistência .à saúde. A reflexão bioética passa a incluir como fonte de preocupação a pobreza, as desigualdades sociais, o racismo, a Saúde Pública, as políticas sanitárias e ambientais, reaproximando-se do pensamento de Potter sobre a disciplina (Anjos, 1997; Schramm, 1997; Neves, 1996; Pessini, 1995; Garrafa, 1995). É, portanto, nesse contexto atual da bioética pública, que ocorre sua aproximação com os fundamentos da Promoção de Saúde. O termo Promoção de Saúde está associado a um "conjunto de valores: vida, saúde, solidariedade, eqüidade, democracia, cidadania, desenvolvimento, participação e parceria" (Buss, 2003). Assim, há vários conceitos que são utilizados pela Promoção de Saúde que se entrecruzam com campos de abordagem da bioética: a ampliação da manifestação da vontade e da autonomia dos indivíduos e das coletividades, a qualidade de vida, o ambiente saudável, a justiça e a eqüidade no campo da saúde. Para os propósitos deste trabalho nos fixamos em dois tópicos: a autonomia e a justiça. As ações de Promoção de Saúde e a autonomia Entre diversos aspectos abordados nos relatórios das conferências mundiais de Promoção de Saúde destacam-se: "oferecer oportunidades para que as pessoas conquistem a autonomia necessária para a tomada de decisão sobre aspectos que afetam suas vidas" e "capacitar as pessoas a conquistarem o controle sobre sua saúde e condições de vida" (Pereira et al., 2000). Autonomia significa que é o indivíduo que deve escolher, de forma esclarecida e livre, entre as alternativas que lhe são apresentadas. É ele que decide o que é o "bom" para si, de acordo com seus valores, expectativas, necessidades, prioridades e crenças pessoais. A pessoa autônoma deve ter liberdade de manifestar sua vontade, isto é, deve estar livre de coações internas ou externas de monta que a impeçam de exercer suas escolhas. A pessoa ainda deve ter capacidade para decidir de forma racional, optando entre as alternativas que lhe são apresentadas e compreender as conseqüências de suas escolhas. Enfim, autonomia significa que a pessoa pode se mover dentro de uma margem própria de decisão e de ação, pois se o indivíduo não pode escolher o que lhe acontece, ele pode escolher o que fazer diante da situação que lhe é apresentada, ou seja, ele pode escolher dentro do possível, realizando uma ação autônoma. A ação autônoma também pressupõe que exista liberdade de ação e requer que a pessoa seja capaz de agir conforme as escolhas feitas e as decisões tomadas. Assim sendo, se a pessoa é autônoma, ela é responsável pelos resultados e conseqüências de seus atos (Chaui, 1995; Savater, 1993). Em termos bioéticos pode-se dizer que, como princípio, as ações relacionadas à promoção de saúde devem se balizar pelo respeito da autonomia da pessoa, dos grupos humanos e da coletividade. Respeitar a autonomia é reconhecer que a pessoa, o grupo humano ou a coletividade são os que devem deliberar e tomar decisões; é considerar os direitos das pessoas, seus motivos e suas razões. Uma das preocupações da promoção de saúde, evidenciada desde a promulgação da Carta de Ottawa, é desestimular comportamentos e estilos de vida não saudáveis que possam resultar em precariedade de condições de vida e saúde. Entre as pessoas que estariam levando estilos de vida tidos como "não saudáveis" são elencados fumantes, alcoólatras, usuários de drogas ilícitas, comedores de excesso de sal ou gordura, sedentários, ou ainda pessoas que realizam sexo sem utilização de preservativos. Também são, por vezes, relacionados, os cultuadores de formas de lazer, que envolvam significativos riscos de vida: os que fazem "esportes radicais" como alpinismo, skate e asa-delta e os motociclistas (Wilkler, 1987). Porém, é preciso que se saliente que as ações de Promoção de Saúde ao intentarem modificar estilos e comportamentos de vida, devem evitar, ao máximo, a intrusão nos assuntos dos indivíduos e das famílias, desrespeitando posições minoritárias ou divergentes daquelas hegemônicas na sociedade, em busca de "atitudes saudáveis". Desde o século passado, John Stuart Mill (1806-1873), filósofo inglês, autor do clássico On Liberty, publicado em 1859, afirmava que o único fim para o qual a sociedade deveria interferir com a liberdade de qualquer um de seus membros seria o de autoproteção. Para Mill o único propósito aceitável pelo qual o poder estatal ou social deveria sobrepujar a vontade do indivíduo seria a prevenção de danos ou malefícios a outros indivíduos ou à própria sociedade. Assim sendo, não se justificaria a imposição de restrições a pessoas autônomas em nome de benefícios para elas, benefícios julgados segundo uma ótica externa (Mill, 1985). Assim, por exemplo, se existem leis ou regulamentos que levam ao impedimento de fumar em edifícios públicos, restringindo a autonomia individual, estes são eticamente validados pelo princípio da não maleficência, pela não causação de danos involuntários a terceiros, mas não porque impedem a pessoa autônoma de fumar. As ações de Promoção de Saúde não devem ampliar a penalização dos indivíduos por não terem tomado "melhor conta de sua saúde", por não terem preservado a "boa saúde" (Berlinguer, 1996). Esta tendência aparece fortemente em amplos setores da sociedade. Isto pôde ser averiguado em pesquisa realizada por um dos autores sobre a temática da alocação de recursos escassos de saúde. Quando demandados para escolher entre uma mulher com problemas hepáticos causados por hepatite, e uma segunda, com hepatopatia desencadeada por consumo alcoólico, para ser internada em uma única vaga existente em instituição hospitalar, 82.3% dos 395 entrevistados priorizaram a primeira mulher. As justificativas mostraram nitidamente que o consumo de álcool foi considerado como sendo um "estilo de vida não-saudável" e aceito como critério de valoração negativa para a priorização no acesso dos candidatos à única vaga existente (Fortes, 2000). A culpabilização da mulher alcoólatra fica evidenciada nas expressões que se seguem: "Porque a mulher que bebe procura pela doença". "Com hepatite não tem vício, então merece ser atendida". "Porque o álcool mata e bebe porque quer! Quer 'queimar' dinheiro": "Hepatite, porque é vítima da doença, a outra foi procurar". "Problema de fígado causado por alcoolismo, procurou por isso". "Primeira adquiriu a doença por opção, e a outra não é causadora da doença". "Quem toma álcool está provocando sua própria morte e quem tem hepatite não tem culpa". Os que defendem a valoração negativa do estilo de vida "não-saudável" se fundamentam na aceitação da responsabilidade do indivíduo por sua saúde. Estes indivíduos fazem escolhas que resultam em "prejuízos" para sua saúde ou sua vida, não utilizando medidas preventivas existentes ou assumindo comportamentos que põem em risco sua saúde. Sendo assim, aqueles que autonomamente tivessem escolhido estilos de vida "não-saudáveis" deveriam ser preteridos, por exemplo, em situação de escassez de recursos, quando confrontados com outras pessoas que tivessem conduzido sua vida por alternativas consideradas favoráveis à manutenção da saúde. Essas colocações nos remetem a questionamentos como: somos realmente os únicos responsáveis por nossa saúde? Somente podem ser responsáveis por seu estilo de vida "não-saudável" aqueles que têm ou tiveram condições de exercer sua autonomia para poderem se conservar saudáveis? Isto nos remete a Wikler (1987) e Crawford (1977), que alertavam que a responsabilização das pessoas por estilos de vida "não-saudáveis" tenderia a desviar a discussão sobre fatores sociais, ambientais, econômicos e sobre as condições de trabalho, que influem fortemente no processo saúde-doença. Poderia se tornar em uma forma diversionista de se afastar a responsabilidade da sociedade pelas patologias e agravos à saúde causados aos indivíduos por problemas coletivos e ambientais. Um exemplo que pode servir para essa reflexão é o caso da utilização cada vez mais freqüente dos computadores pessoais nas duas últimas décadas. Esta tem contribuído para o aumento do número de casos clínicos de LERs (lesões de esforço repetitivo). Mesmo sabendo que os que trabalham em setores da informática, manipulando horas e horas seus teclados, não desconhecem o perigo de apresentar LER, pode-se penalizá-los por adquirirem a patologia? Para a decisão ser autônoma, como anteriormente citado, entende-se que a pessoa deva estar livre de coerções internas ou externas de monta que afetem ou venham a afetar sua decisão. Se há concordância com essa afirmação, como atribuir peso e importância para as emoções, para os fatores psíquicos ou para os condicionantes sociais? Como avaliar se existiam alternativas disponíveis e aceitáveis para que o indivíduo se orientasse por outros caminhos que não a opção por um estilo de vida "não-saudável"? Cabe a reflexão de ser eticamente aceito que os indivíduos, tendo acesso às devidas e esclarecedoras informações, recebam orientações ou sejam persuadidos à mudança de estilos de vida ou de comportamentos não saudáveis. A persuasão é eticamente defensável, porém não a coerção. É, ainda necessário que seja ressaltado, que os promotores de saúde não devam cair na tentação de agir de forma paternalista, pois o paternalismo mesmo requerendo ações de caráter beneficente, é contrário aos desejos de uma ou mais pessoas capazes de decidirem autonomamente. A autonomia na promoção da saúde além de se referir ao eixo do desenvolvimento de habilidades e atitudes pessoais, também abrange o incremento do poder das comunidades, que devem, através das informações técnicas e consciência política, atuar em prol de sua saúde. A Carta de Ottawa afirma que a promoção da saúde tem de incluir uma maior participação e controle das comunidades no processo de melhoria da qualidade de vida e saúde a partir da capacitação das pessoas para atuar neste sentido. Isto parece imprimir uma dupla dimensão à autonomia - individual e política - como advoga Adela Cortina (1998). A filosofa explica que, no âmbito da saúde, a autonomia abarca uma dimensão individual no que tange às escolhas de cada um, mas também tem uma face política que visa legitimar as normas e políticas públicas para a área. Isto porque as normas na atenção à saúde implicam validez para toda uma comunidade, região ou país e devem ser decididas pelos que serão por elas afetados. É claro que esta consideração da filósofa remete às questões do exercício da cidadania na saúde e, no caso brasileiro, à participação comunitária nos conselhos e nas conferências de saúde, possibilidades de exercício da manifestação autônoma do cidadão. Assim, as ações de promoção da saúde devem capacitar para a participação social nas decisões sobre as políticas de saúde, indo além da dimensão individual da autonomia. Promoção de Saúde e o princípio ético de justiça As declarações internacionais sobre Promoção de Saúde, desde a Carta de Ottawa, se referem à busca da justiça e da eqüidade como pressupostos de sua ação. Porém, é preciso ser lembrado que em nossa sociedade existe um pluralismo ético-cultural, não existindo consenso sobre o que venha a ser justiça ou o que seja eqüidade. Isto deve ser lembrado, pois a predominância nos textos relacionados à Promoção de Saúde é o entendimento de justiça como eqüidade. A justiça como eqüidade aceita o princípio da diferença, que as pessoas não são iguais e que se deveria tratar desigualmente os desiguais, compreendendo as diferentes necessidades que têm e tentando reduzir as desigualdades existentes. Segundo a Organização Mundial da Saúde, a garantia de eqüidade implica em reduzir, ao mínimo possível, as diferenças desnecessárias, evitáveis e injustas das condições de saúde, entre os grupos humanos com diferentes níveis sociais. Ao se aceitar essa formulação de justiça, aceita-se também que o Estado e a sociedade organizada devam intervir no campo da saúde para garantir a justiça distributiva e minimizar os efeitos das loterias biológica e social. A esse respeito, Belinguer (1996) afirma: "Se pensarmos que o bem-estar de cada pessoa tem valor intrínseco particular, daí decorre que as instituições básicas de uma sociedade democrática devem tender a reduzir a influência desses vários fatores moralmente arbitrários nas oportunidades de vida de cada um". No Brasil, a Constituição de 1988 acatou a orientação do direito de todos os cidadãos à saúde, fundamentando no princípio da justiça distributiva eqüitativa que vinha sendo defendido há algumas décadas por importante parcela do movimento sanitário. O art. 196 expressa "A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação". Certo que uma sociedade, em um determinado momento histórico, pode não apresentar condições para dar conta de todas necessidades de todas as pessoas. Por isso, o "bioeticista" espanhol Diego Gracia (1989) considera que deva ser reformulada a máxima: "A cada pessoa conforme suas necessidades" para "A cada pessoa conforme suas necessidades até o limite que permitam os bens disponíveis", pois as sociedades contemporâneas não possuem recursos para o atendimento de todas as necessidades pessoais. Aceita-se, portanto, a justeza da ocorrência de uma "discriminação positiva", ou seja, a diferenciação em nome dos mais despossuídos, necessária no atual momento pelas graves e profundas desigualdades sociais vividas por grande parte da população brasileira. Defende-se um conjunto de ações de saúde baseado na eqüidade, para cuja implementação é necessário que as ações de Promoção de Saúde privilegiem a efetiva participação dos cidadãos, incentivando o controle das decisões tomadas a respeito da forma, da organização e dos caminhos a serem trilhados pelo sistema de saúde. Conclusão Pode-se afirmar que a bioética e a Promoção de Saúde têm como objetivo comum o respeito à dignidade do ser humano e a melhoria da qualidade de vida. As duas disciplinas vêm o ser humano do ponto de vista de sua integralidade e entendem que a saúde é fruto de condições de vida e trabalho, significando que, para se promover a saúde das pessoas, é necessário que as ações sejam direcionadas para elementos sociais, econômicos, culturais e ambientais, além das ações específicas do setor saúde. Eticamente podemos considerar que a promoção de saúde inclui uma virtude antecipatória, quando atua nas causas básicas que podem resultar em agravos à saúde individual e coletiva, evitando danos. Mais ainda, quando avança para além da prevenção dos agravos à saúde e procura modificar as condições de vida para que sejam dignas. É, portanto, condizente com o princípio ético da "não-maleficência", do não causar danos e evitá-los. A Promoção de Saúde também tem validade ética pelo potencial atenuador de futuros conflitos que ocorrem na competição por limitados ou escassos recursos de saúde. As medidas de promoção de saúde podem atingir todas as camadas sociais, com potencialidade para ampliar resultados eqüitativos que diminuam as desigualdades existentes em nosso meio. Assim, a Promoção de Saúde se aproxima da bioética na defesa da vida humana ameaçada, pois facilita o atendimento das diminuições das desigualdades desnecessárias, evitáveis e injustas que restringem as oportunidades para que as pessoas atinjam seu direito ao bem-estar. Enfim, cabe lembrar que ações de promoção da saúde condizentes com a realidade em que vivemos, devem ser orientadas para a busca de uma melhor qualidade da vida individual e coletiva, porém uma qualidade não centrada apenas em referenciais técnicos ou econômicos, mas sim uma qualidade orientada para o desenvolvimento integral do ser humano. É seu papel buscar identificar as causas das desigualdades sociais e das deficientes condições de saúde e trabalho, e atuar enquanto agente transformador da dura realidade vivida, na busca de políticas públicas saudáveis e no impedimento de ações nocivas para o meio ambiente. Referências bibliográficas Anjos, M. F., "Bioética: abrangência e dinamismo". In: O mundo em saúde, 21 (1), 1997, p. 4-12. Berlinguer G., Ética da saúde. São Paulo: Hucitec, 1996. Buss, P. M., "Uma introdução ao conceito de promoção da saúde". In: Promoção da Saúde: conceitos, reflexões, tendências Rio de janeiro: Fiocruz, 2003. Chaui, M., Convite à filosofia. São Paulo: Ática, 1995. Cornetta, V. K., "Recursos humanos em saúde". In: Saúde, desenvolvimento e globalização. São Paulo: Ícone, 2002. Cortina, A.; Martinez, E., Ética. Madrid: Akal, 2a ed., 1998. ______, A. Ética aplicada y democracia radical Madrid: Tecnos; 2a ed., 1997. 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Assim, a suposta "novidade" consistiria na modalidade perversa em que ela aparece hoje, tomando a forma de um amplo, indefinido, generoso e a-partidário movimento em favor da melhoria da chamada "Qualidade de Vida" do homem contemporâneo, que toma o lugar, no plano simbólico e prático, de uma Saúde Pública ou Coletiva engessada e limitada pelo modelo biomédico que a conduz a um teórico e prático beco sem saída. Nessa linha, saúde já não seria mais o contrário de doença (que deixa de ser seu objeto) mas "outra coisa" chamada Saúde Positiva, identificada com a idéia de Qualidade de Vida. Continuando nessa linha, a "solução" para os impasses da Saúde Pública ou Coletiva seria deixar de ser ela mesma e virar Promoção de Saúde, abandonando a luta política, ideológica e prática em torno da "negativa" doença, vista como objeto mais próprio da Medicina, Odontologia, Nutrição e demais ciências ou práticas "bio", para abraçar a coisa "generosa" da Qualidade de Vida. Ora, talvez a maior contribuição da história da Saúde Pública ou Coletiva tenha sido, e seja, justamente, a de buscar entender e enfrentar, no plano do público ou do coletivo, a doença como um significante ou interpretante do Mal e do Erro, que incita e permite o Homem a pensar e agir em favor do Bem e do Acerto. Por isso, num quadro depressivo de derrota da "esquerda" e de fim neoliberal das ideologias e da história, é precisamente esse potencial transformador que se pretende eliminar de vez do campo da saúde, através, entre outras coisas, da introdução do movimento de Promoção de Saúde/Qualidade de Vida. Para viabilizar tal proposta de eliminação, a crítica de "esquerda" que o movimento de Promoção de Saúde faz das insuficiências do modelo biomédico foi utilizada para, em seguida, ser reinterpretada em termos de "saúde positiva", com toda uma série de estratégias e políticas a elas associadas. Por essa razão, a Saúde Pública ou Coletiva, enquanto proposta transformadora, precisa reagir a esta tentativa de abastardamento de seus eixos, mantendo, como "missão maior", o enfrentamento teórico e prático, aqui, agora e manhã, da doença por meio do que neste livro chamou-se de negação da negação. Como a expressão "Promoção de Saúde" faz parte da história da Saúde Pública ou Coletiva apontando sempre, de uma forma ou de outra, para o futuro, seria importante, acrescentando-se a idéia de negação da negação, mantê-la como porta-voz desta "missão maior". Sobre os Autores FERNANDO LEFEVRE Professor titular da faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo/USP. Formou-se em pedagogia em 1969. Durante quatro anos (1970-1974) foi bolsista de pós-graduarão do governo francês, período em que estudou comunicação e semiótica na Universidade de Paris. Desde 1979 trabalha na área de Saúde Pública, com especialização em metodologia qualitativa. Autor de vários livros e artigos. Co-autor do livro Discurso do Sujeito Coletivo e um dos co-autores do Discurso do Sujeito Coletivo como Método de Pesquisa Qualitativa e do software "Qualiquantisoft". Coordenador do Instituto de Pesquisa do Discurso do Sujeito Coletivo; São Paulo. ANA MARIA CAVALCANTI LEFEVRE Doutora em Saúde Pública pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo/USP. É bióloga de formação e especializou-se em Educação em Saúde Pública e Recursos Humanos. Atualmente é professora comissionada da faculdade de Saúde Pública da USP. Além de inúmeros trabalhos publicados, é co-autora do livro Discurso do Sujeito Coletivo e uma das co-autoras do Discurso do Sujeito Coletivo como Método de Pesquisa Qualitativa e do software "Qualiquantisoft". Sócia fundadora do Instituto de Pesquisa do Discurso do Sujeito Coletivo; São Paulo.