Investiguemos a dívida! manual de auditoria cidadã integral adaptado ao caso português 2ª versão Agosto de 2011 Referências Este manual foi feito a partir do livro Investiguemos la Deuda - Manual para realizar auditorías de la deuda del tercer Mundo, por AAJ - ATTAC (Uruguai) - CADTM - CETIM - COTMEC - Auditoria Cidadã da Dívida (Brasil) - Emaús Internacional - Eurodad - Jubilee South Centre. 2.ª versão portuguesa, baseada na obra referida acima, da responsabilidade colectiva de Rui Viana Pereira & ? [aguarda parcerias], Agosto de 2011. Porquê uma versão específica para Portugal? Todas as questões centrais ao tema da dívida soberana (políticas, internacionais, técnicas) são válidas em qualquer parte do Mundo. No entanto os contextos político, económico e social específicos de cada país justificam uma adaptação do Manual original. Os países da Periferia europeia encontram-se em situação idêntica à dos países do Terceiro Mundo. Sofrem o mesmo tipo de medidas, de planos de «ajuste» estrutural, de «ajuda» ao desenvolvimento, as mesmas medidas de austeridade, o mesmo ataque à soberania nacional. Entretanto, a integração na União Europeia encobre por vezes essa realidade, podendo criar a ilusão de que os interesses financeiros actuam de modo diferente na Europa - coisa que uma comparação simples entre as medidas induzidas pelo FMI na América do Sul, por exemplo na Argentina, e as medidas propostas pela Troika para a Periferia europeia vem desmentir sem margem para dúvidas. Assim, apesar das especificidades do processo de endividamento português, temos tudo a aprender com a experiência de luta contra o endividamento levada a cabo em países do Terceiro Mundo. Esta versão adaptada ao caso português tenta levar em linha de conta as diferenças económicas e políticas (integração na União Europeia, moeda única, etc.) e a especificidade do contexto histórico e social. Introdução para obter respostas correctas há que fazer as perguntas certas Comecemos por definir o âmbito e a razão de ser deste manual. Porquê? - porque é em nome da dívida que o Estado social e os bens sociais são desbaratados, que são pedidos tantos sacrifícios à população, que os índices de miséria crescem, que a má redistribuição social dos rendimentos aumenta o fosso entre ricos e pobres; e porque, qualquer que seja a justificação apresentada pelos poderes públicos para insistir no endividamento, ele tornou-se um processo obscuro e incompreensível. Se procuramos investigar e quantificar a dívida soberana, é porque ela não é transparente, porque não conseguimos perceber quem deve o quê a quem, e porque as suas consequências nos suscitam as maiores dúvidas - como compreender que os contratos de dívida, geralmente justificados numa lógica de «desenvolvimento», andem associados em todo o Mundo a um agravamento da exploração e das condições de vida das populações, a uma quebra da riqueza colectiva, a uma perda de soberania, a um decréscimo do investimento produtivo, etc.? - alguma coisa correu mal e necessita ser investigada. [ver anexo sobre a evolução do endividamento e dos índices sociais no Terceiro Mundo] A dívida soberana tem a ver com muita coisa além-fronteiras; portanto, a dada altura teremos de analisar uma complexa teia de interesses e hegemonias internacionais. Mas por agora, visto que pretendemos deslindar um novelo de enorme complexidade, somos obrigados a pegar numa pequena ponta visível da meada e descobrir onde ela nos leva. Como se constrói um processo de investigação Todas as investigações partem de um conjunto de perguntas necessárias para definir o cerne da investigação e ao mesmo tempo o seu motor. Este método, que tanto é válido para a investigação científica como para a investigação da História ou de um crime, leva-nos a colocar três perguntas fundamentais sobre a dívida, logo à partida: A necessidade de rigor Tal como acontece na investigação científica, histórica ou criminal, de nada serve perder tempo a investigar, se os métodos utilizados não obedecerem a critérios de rigor. É isso que distingue a investigação da «conversa fiada de café»: o rigor das perguntas e dos métodos de trabalho - sem rigor jamais obteremos respostas eficazes. De que adianta perder tempo a calcular a distância a que o atleta lançou o dardo, se em vez de usarmos uma fita métrica usarmos um elástico? - apenas pode adiantar a quem pretenda fazer batota. A primeira pergunta - quanto devemos? - é bastante técnica; terá de ser investigada com a ajuda de especialistas. A segunda pergunta - a quem devemos? - pode encerrar algumas armadilhas e até credores habilidosamente escondidos, mas resultará mais ou menos clara à medida que formos indagando a primeira questão. É na terceira pergunta - porque devemos? - que encontramos os maiores riscos de falha. Acontece que esta pergunta, logo à partida, foi mal formulada do ponto de vista metodológico. Olhemos então mais atentamente para o que está em jogo. Existem apenas dois tipos de perguntas fundamentais ao longo da história da humanidade: ou perguntamos porquê, ou perguntamos como. Todos os outros tipos de perguntas acabam por ser variantes destas duas. Porquê (ou por quem) é o tipo de pergunta que se faz quando temos dúvidas de ordem existencial, espiritual, transcendental, enfim, à margem da lógica - exemplo: «porque existe o universo»? Como (ou de que modo, ou em que medida, ou quanto) é o tipo de pergunta que fazemos quando temos dúvidas de ordem lógica, científica ou técnica - exemplo: como nasceu o universo? como se calcula a força da gravidade? como se formou o Movimento dos Capitães? Portanto a formulação da nossa terceira pergunta coloca-nos fora do rigor metodológico; contém o risco potencial de nos conduzir a uma resposta que, por muito interessante que possa ser, não interessa nada ao âmbito da nossa investigação. O que a nossa terceira pergunta pretende significar, o que devemos perguntar em bom rigor, é isto: Por outras palavras, além de querermos saber quanto devemos e a quem devemos, pretendemos acima de tudo saber como chegámos a essa situação. Só depois de respondermos a esta pergunta poderemos saber como nos libertar da dívida e como evitar que a situação se repita. Por uma questão de simplicidade e facilidade de escrita, simplificámos a pergunta, reduzindo-a a uma fórmula simples, graficamente conveniente. Esta pergunta revela também que a auditoria cidadã (ou seja, a investigação da dívida soberana levada a cabo pelos cidadãos) não é um problema essencialmente técnico, mas sim político. A possibilidade de surgirem perguntas imprevistas durante o processo de investigação Pode acontecer (mais uma vez à semelhança da investigação científica, histórica ou criminal), no decurso da investigação, chegarmos à conclusão de que afinal havia uma outra pergunta fundamental que nos tinha passado despercebida e que pode até pôr em causa tudo aquilo que parecia uma evidência à partida. Embora não seja correcto antecipar os resultados da investigação, temos de estar preparados para que surja uma dúvida bem conhecida de todos os investigadores, resultante da procura de respostas acerca do quanto e do como: A auditoria cidadã como plataforma mínima de acção Já dissemos que auditoria cidadã integral é outro nome para uma investigação levada a cabo pelos cidadãos; que esta investigação assenta no direito internacionalmente consagrado de participação dos cidadãos na vida política, económica e cultural do seu país; que força os poderes públicos à transparência e à responsabilização perante os eleitores. A auditoria cidadã revela-se assim um instrumento político duplamente importante na época actual, pondo em jogo duas questões fundamentais: o défice de transparência democrática nos actos da administração pública e o défice de participação cívica na vida do país. Em última análise, é possível que a investigação conclua que o défice financeiro resulta afinal do défice democrático. Mas, atenção, o que se propõe à partida neste manual não é uma conclusão final, mas sim um conjunto rigoroso de métodos e instrumentos para investigar a dívida soberana. A proposta da auditoria cidadã não presume conclusões finais; não antecipa nem se baseia em programas de acção política; é por isso um processo capaz de unir na acção o máximo número de pessoas, redes, organizações e movimentos sociais, sem lhes condicionar o carácter e as propostas individuais. ou Suspensão do serviço da dívida - consequência incontornável Num Estado moderno, democrático, não esclavagista, só pode existir uma razão legítima para um Estado se endividar, atirando para cima dos cidadãos o pesado encargo de reembolsar a dívida: o bem-estar comum imediato; a introdução de benefícios para a maioria dos contribuintes; a melhoria dos meios de pagamento (ou seja, a riqueza colectiva, e não o benefício privado). Investigar o que está a correr mal num processo pouco claro e que joga com a vida de milhões de pessoas implica necessariamente suspender esse processo até à conclusão da investigação. Não propor a suspensão seria uma loucura tão suicida como não carregar no travão quando o carro se aproxima duma curva sem visibilidade. [nota: o serviço da dívida inclui o reembolso da dívida mais os respectivos juros] As condições necessárias à auditoria cidadã Portugal é um país onde os poderes públicos, no passado e no presente, aceitaram negociar com o FMI e com a Troika acordos e condições de endividamento que agravam as condições de vida da maioria dos cidadãos. A sociedade civil não pode exigir a estes poderes públicos que investiguem a dívida que eles próprios criaram; seria o mesmo que pedir a um juiz para julgar em causa própria. Propor, por exemplo, um referendo popular para obrigar os poderes públicos a realizarem uma auditoria seria, na ausência duma auditoria cidadã independente e fortemente apoiada na mobilização social, um autêntico suicídio político - os poderes públicos tenderiam a «legitimar» aquilo que já assinaram com a Troika, sob pena de se incriminarem a si mesmos. Por conseguinte terá de ser a sociedade civil a tomar esse encargo. Esta tarefa, obviamente, irá perturbar os interesses de quem negociou e assinou os acordos de endividamento - podemos contar com a firme oposição e boicote do poder público. Por isso, sem uma mobilização forte dos movimentos cívicos, não será possível iniciar qualquer investigação, quanto mais levá-la a cabo! Existirão alternativas credíveis à investigação da dívida? Uma breve nota acerca das propostas de alguns sectores políticos portugueses favoráveis à reestruturação ou renegociação da dívida: os exemplos históricos e os métodos estabelecidos pelo FMI e pelo Banco Mundial (e adoptados na íntegra pela Troika) demonstram que uma renegociação conduz sempre ao agravamento das ilegitimidades anteriormente praticadas e a uma espiral de endividamento [ver anexos sobre a espiral de endividamento no Terceiro Mundo]. Todas as renegociações efectuadas numa situação de «aperto» são feitas sob ameaça e chantagem - facto que em si mesmo justificaria a anulação dos acordos [ver capítulo sobre os instrumentos jurídicos]. Além disso a renegociação pode trazer à população uma esperança ilusória de alívio, constituindo portanto um fortíssimo factor de desmobilização. Ora, esperança ilusória e desmobilização são o pior dos remédios para a situação portuguesa. O interesse objectivo das populações versus futurologia Uma das ilusões a que o discurso economicista nos habituou nos últimos 50 anos foi a fé pseudocientífica, quase religiosa, de que é possível prever o futuro. Algumas das maiores barbaridades sofridas pela Humanidade nos últimos 100 anos advêm precisamente da convicção de que é possível prever o futuro (social, político, económico, etc.). Em nome de um futuro bem «maior» e hipoteticamente previsto, é proposta a imposição no presente dos maiores sacrifícios às populações e à humanidade em geral - chegando mesmo ao genocídio. A negociação dos acordos de endividamento aposta frequentemente neste tipo de argumentos - fazendo uma previsão do futuro (em particular do futuro económico), de forma a justificar uma certa repartição dos rendimentos assente na imposição de sacrifícios às camadas mais frágeis da sociedade. O princípio de que «os fins justificam os meios», além de filosoficamente errado, já mostrou à saciedade o seu erro na prática e na realidade histórica. O que se propõe para esta plataforma mínima de acção é que A auditoria como plataforma mínima de acção comum A investigação da dívida exige a participação activa do maior número possível de movimentos cívicos, de organizações profissionais e sindicais, de especialistas das várias matérias em causa, etc. No dia em que os múltiplos movimentos cívicos portugueses compreenderem que uma plataforma mínima de acção comum não belisca a agenda particular de cada um deles, estarão criadas as condições para arrancar com uma forte movimentação social e viabilizar a auditoria cidadã. A investigação da dívida, nos moldes anteriormente definidos, pode ser uma plataforma mínima de acção. Capítulo 1 Definições relativas à dívida As condições especiais dum empréstimo podem ser propostas por qualquer das partes. Um Estado pode aceitar um empréstimo a determinado juro, na condição de obter linhas de exportação no Estado emprestador; as instituições financeiras condicionam muitas vezes a entrega dos montantes de empréstimo ao estabelecimento de determinados privilégios de negócio privado; etc. O acordo de empréstimo implica geralmente uma contrapartida sob a forma de juro - uma percentagem global, ou anual, ou mensal, fixa ou flutuante, geralmente indexada aos mercados bolsistas. No entanto as contrapartidas nunca ficam por aqui - incluem sempre outros tipos de condições. Para além das condições e contrapartidas expressas no acordo de empréstimo, existem outros condicionalismos não expressos nos documentos escritos, mas que são da maior importância para a determinar a legitimidade do acordo à luz doutrina internacional1: As diversas partes da dívida Ao examinarmos o problema da dívida, colocam-se várias ordens de razões: jurídicas; técnicas; políticas. Vários tipos de contracção de dívida [parte a ser tecnicamente revista para o caso português] A maior parte dos empréstimos públicos destina-se (ou afirma destinar-se) ao desenvolvimento; em geral tem prazo de 15 anos ou mais e taxas de juro inferiores ao mercado (ditas subvencionadas ou concessionadas). Os empréstimos privados são frequentemente a mais curto prazo (poucos anos ou mesmo meses) e com taxas referentes às condições de mercado. Os empréstimos dos bancos podem ser revistos em função das taxas de juro de determinadas praças financeiras de referência (NY, Londres, Euribor, etc.). Outra forma de financiamento consiste na emissão de títulos de dívida, com diferentes tipos de garantias, prazos, amortização e comissões. [explicitar melhor?] As taxas de juro dos mercados variam em função do chamado «risco país», ou seja o risco estimado para investimentos no país em causa. O risco país é determinado por consultores privados em função de análises parciais. Existe também um mercado secundário em que os credores podem trocar títulos de dívida entre si. [dar exemplos para explicitar melhor?] Justificações apresentadas para o endividamento A partir dos anos 1960 foram continuamente propostos aos países periféricos empréstimos internacionais destinados a alcançar o pleno desenvolvimento. O discurso justificativo é mais ou menos este: vocês têm mão-de-obra abundante, recursos naturais formidáveis... só vos falta capital e tecnologias novas para aumentarem a produção e as exportações; ao fim de alguns anos de sacrifício a bem-aventurança estender-se-á por toda a Terra? Estes empréstimos massivos deram origem em todo o mundo a «elefantes brancos» - projectos megalómanos, milhares de quilómetros de auto-estradas, etc. -, situações dramáticas de fome e miséria, transferência maciça de bens, transferência de recursos e capitais para os países do Centro, agravamento da corrupção, aumento das desigualdades entre ricos e pobres, crimes de toda a espécie contra a humanidade. Hoje, na Europa, esgrimem-se argumentos neoliberais contra o Estado social, apresentado como fonte de todos os males financeiros; os mais elementares direitos do trabalho e humanos vão regredindo paulatinamente, numa espécie de regresso à Idade Média e à escravatura disfarçada de precariedade e «trabalho social». Para obviar ao suposto «monstro insaciável» do Estado social, a Troika propõe medidas de «reestruturação da economia» - as mesmas que no Terceiro Mundo o FMI apelida há 50 anos de «ajuste estrutural». Subordinação do interesse económico ao interesse geral das populações Nunca é de mais recordar que, segundo a mais elementar lógica democrática, mas também segundo os preceitos doutrinários internacionais (e nos termos da Constituição portuguesa), os interesses das populações são superiores aos interesses económicos e financeiros; os poderes públicos devem servir antes de tudo o interesse geral dos cidadãos na sua larga maioria. Por outras palavras, nenhum interesse económico pode ser invocado para atentar contra o bem-estar das populações, nomeadamente no que diz respeito a condições de vida, habitação, saúde, educação. Quando os poderes públicos ferem estes princípios universais (ratificados em diversas cartas internacionais, como veremos adiante), estão a praticar uma ilegitimidade, podendo mesmo tornar-se usurpadores. [Nota: chama-se usurpador a um regime de poder que actua contra a vontade e o interesse das populações - caso típico das ditaduras -, ou seja, que subtrai a base de legitimidade democrática do poder público.] O contexto português [introduzir antecedentes da intervenção do FMI e da UE] Em Portugal, a partir do «cavaquismo»2, os cortes brutais à produção (justificada por uma misteriosa necessidade imperativa de aceitar condições draconianas para entrada na União Europeia) são directamente proporcionais à proliferação de alcatrão; na ausência de incremento da produção nacional, as novas auto-estradas acabaram por servir mais para importar do que para exportar. Quaisquer que fossem os argumentos inicialmente apresentados para o aumento da dívida, um dos factores a investigar é a relação entre o peso da dívida e a queda de produção e autonomia nacionais. Em Portugal o discurso político dominante, fielmente amplificado pela comunicação social, mentalizou a população de que a fonte de todos os males (a dívida) estava na despesa pública e no peso do aparelho social. Este discurso desviou as atenções públicas da questão fundamental: qual deve ser o papel do Estado; para onde devem apontar as prioridades orçamentais; para onde foram as centenas de milhares de milhões de euros injectados durante anos a fio (para benefício directo da população ou dos interesses financeiros privados?); como acreditar que a UE nos «ofereça» dinheiro sem impor contrapartidas ilegítimas? Compete à auditoria cidadã investigar as correlações entre o processo de endividamento e as sucessivas perdas colectivas e sociais. Em anexo encontram-se alguns dados referentes ao contexto económico e financeiro de Portugal nos últimos anos, com anotações de auxílio à leitura. Capítulo 2 Auditoria, meios de acção, mobilização social Tipos de auditoria A auditoria à dívida pode ser levada a cabo por diferentes actores. Tudo depende do contexto político, das instituições existentes no país e da vontade política. A auditoria cidadã é a única forma (especialmente em Portugal) de garantir que o processo não será pervertido por instâncias oficiais ou partidárias que são parte interessada no processo e que podem tender a «legitimar» endividamentos ilegítimos. Auditoria por iniciativa de órgão legislativo Foi o caso do Congresso peruano. Na sequência da restauração do Estado democrático e da fuga de Alberto Fujimori, anterior chefe do executivo, o Congresso peruano instaurou uma comissão de investigação da dívida externa. Esta comissão trabalhou de 2001 a 2002, presidida pelo deputado Rafael Valencia Dongo. A comissão tinha o encargo de examinar a dívida pública externa durante o período 1990-2000; detectou indícios graves de gestão ilegal e fraudulenta por parte do Ministério da Economia durante o consulado de Fujimori.3 Outro caso foi o do Parlamento filipino. A organização Freedom from Debt Coalition realizou durante anos um trabalho de pressão activista sobre os deputados filipinos. Este trabalho deu frutos: o Parlamento filipino decidiu em 2004 aprovar uma auditoria da dívida. Criou-se uma comissão parlamentar encarregada de abrir os livros de contas para rever e reavaliar as políticas, os programas e as estratégias de endividamento do país. Desde há meses que a resolução está bloqueada no Senado por motivos técnicos. Auditoria por iniciativa de órgão executivo ou presidencial Acontece quando o executivo tem uma orientação progressista ou nacionalista. No início da década de 1930, o Brasil enfrentou uma crise económica muito profunda; era então presidente Getulio Vargas, que criou uma comissão de estudos económicos e financeiros do Estado e dos municípios. A comissão tinha a missão de investigar todos os contratos de endividamento e expor todos os tipos de irregularidades. Auditoria por iniciativa de órgão judicial Na sequência de uma queixa feita em 1982 por Alejandro Olmos, advogado e jornalista, o juiz federal J. Ballesteros iniciou uma acção penal contra os responsáveis pelo endividamento do Estado argentino durante a ditadura.4 Durante a investigação judicial, e perante o secretismo invocado pelos responsáveis pelo endividamento, o juiz ordenou a entrega de todas as actas, contas financeiras e balanços. A sentença de Olmos revelou o carácter ilícito da dívida externa do Estado e a responsabilidade dos credores e dos devedores. Auditoria cidadã Na maioria dos casos a única forma de garantir o sucesso duma auditoria oficial consiste em manter aceso o processo da auditoria cidadã, que, sob as mais variadas formas, pode correr em paralelo. Veremos adiante o que isto implica, quer do lado da mobilização constante dos cidadãos, quer do lado técnico e organizativo. A importância dos movimentos de cidadãos A capacidade de pôr em marcha uma auditoria cidadã é directamente proporcional à capacidade de acção dos movimentos civis. A variedade de situações encontradas de país para país é vasta; não faria sentido criar uma «receita» única. Mas em todos os casos a existência de uma plataforma de acções e objectivos comuns a todas as organizações cívicas facilita o processo de mobilização. O conjunto de todas as formas de mobilização constitui uma espécie de círculo, devendo apontar em dois sentidos dialecticamente opostos: concentrar e disseminar. Concentrar objectivos e acções gerais, a todos os níveis e áreas da sociedade; disseminar em direcção a todos os tipos de organizações cívicas nos bairros, nas empresas, nas escolas, criando movimentos locais e sectoriais sintonizados, mas adaptados à especificidade e níveis de consciência locais. O significado da mobilização social Temos de abrir aqui um parêntesis para aclarar esta expressão, que parece ter sido imersa numa bruma desprovida de significados, como aconteceu a tantas outras nos últimos 40 anos. Mobilizar significa pôr em movimento. Não tem nada a ver com o conceito anglófono de mob ou flashmob. É uma acção continuada, um conjunto de métodos sistemáticos que se opõem à instrumentalização e a outras formas de oportunismo e representação populista. Uma forma típica de mobilização, entre muitas outras, são as assembleias regulares de estudantes, ou de moradores, ou de trabalhadores, das quais saem grupos de trabalho que exercem acções continuadas e respondem regularmente perante as suas assembleias. É claro que para pôr grupos de cidadãos em movimento é preciso um móbil, como nos romances policiais - ou seja, um «motor» (é esse o significado da palavra); esse motor, ou motivo, será tanto mais eficaz (numa primeira fase) quanto mais próximo estiver dos interesses imediatos, quotidianos, da população em causa. [a acrescentar em breve: exemplos de motores e métodos de mobilização na sociedade portuguesa] A importância da informação e da formação Existem vários factores associados entre si e de importância decisiva no processo de mobilização: informação formação de quadros. Dado que todo o processo de auditoria cidadã depende da mobilização pública, a informação é determinante. Nos países onde não existe liberdade de imprensa, os movimentos cívicos vêem-se colocados perante limitações difíceis de rodear; exige-se-lhes paciência, engenho e tempo, para conseguirem chegar a sectores suficientemente vastos da população. Nos países que gozam formalmente de liberdade de imprensa mas onde de facto a comunicação social está sujeita a processos de censura interna ou controle dos conteúdos por parte de forças partidárias e financeiras (caso típico de Portugal), a situação, embora pareça melhor, na realidade é pior- nestes países, ao nível ideológico, é suposto haver liberdade de informação e portanto o público tende a confiar na imprensa como fonte fidedigna; ao contrário, os cidadãos sujeitos a regimes ditatoriais oficialmente censórios estão de pé atrás com a imprensa e buscam fontes alternativas. Numa ditadura é claro para toda a gente que a imprensa tende a ser um órgão de propaganda do regime; num país democrático a resistência tem grande dificuldade em desmascarar a comunicação social e em criar órgãos de informação concorrentes dos tradicionais. A credibilização das fontes de informação alternativas nos países democráticos exige tempo, paciência e fontes de financiamento - no Portugal de antes do 25 de Abril toda a gente aceitaria uma folha informativa toscamente impressa a stencil; no pós-25 de Abril essa folha corre o risco de ser deitada para o lixo com desprezo, por não reflectir os standards formais da informação oficial. Em suma, é de recear que o papel dos órgãos de informação «vendidos» ao regime vigente seja relativamente mais perigoso num Estado democrático do que num Estado ditatorial. A importância das forças políticas e sindicais Os partidos de oposição democrática podem constituir uma ajuda preciosa. Convém sondar a disponibilidade, se não dos partidos, ao menos com alguns dos seus militantes sensíveis à questão da auditoria. As organizações partidárias, tal como os sindicatos, têm enorme influência na aderência das populações a qualquer batalha política. Têm também grande experiência e um forte aparelho organizativo. Quaisquer que o tipo de participação destas organizações, não se deve permitir que elas obstruam a acção e a independência dos movimentos cívicos. Mesmo que não haja intenção de domínio por parte dos militantes partidários, muitos cidadãos tenderão a desmobilizar, em virtude do hábito adquirido durante décadas de exercício da democracia representativa e de democracia passiva. O motor da auditoria cidadã terá de ser a mobilização popular, e não a pressão interinstitucional ou de bastidores. [à medida que o processo de discussão e mobilização for progredindo, acrescentaremos aqui exemplos concretos de mobilização] Mediatização e formação de quadros Já falámos da importância da informação - trata-se não só de contrariar a propaganda oficial, mas também de: Por outro lado, a mobilização popular, em todas as camadas e regiões do país, estará condenada ao fracasso se não contar com a acção de quadros esclarecidos no terreno, capazes de transmitirem a informação e argumentação necessárias. Assim, duas tarefas prioritárias se perfilam, antes de todas as outras necessárias: Financiamento A falta de financiamento para realizar uma auditoria não impede o processo, embora sem dúvida o torne mais lento e difícil. A experiência do Brasil mostra a importância de apelar à colaboração graciosa de profissionais, a título individual ou corporativo, bem como angariar voluntários e estudantes. Capítulo 3 Elementos para realizar uma auditoria Os elementos aqui apontados tentam beber da experiência dos países onde foram feitas auditorias. Entre eles contam-se o Brasil, o Uruguai, o Equador, a Argentina, as Filipinas. Nalguns países do Centro houve movimentos exigindo a auditoria, numa acção de solidariedade com a Periferia (França, Reino Unido, Itália), e a experiência adquirida nesses países também é útil a vários títulos. Metodologia geral: esmiuçar para recompor o todo Para entender o problema da dívida no seu todo, temos de compreender as razões do endividamento, as suas particularidades, os pormenores. Senão, todo o nosso discurso se tornará oco. Ora o cidadão comum não é tolo, saberá detectar a vacuidade desses argumentos; e portanto imediatamente se sentirá usado e enganado, afastando-se do processo de mobilização. O processo de pormenorização abrange 4 etapas: análise geral do processo de endividamento análise dos contratos investigação do destino real dos fundos análise dos dados actuais. Elementos para a análise geral do processo de endividamento A primeira etapa consiste em realizar uma análise histórica, económica, política e social das causas da dívida nacional para compreender as suas características. Esta análise é indispensável, tanto mais que cada país tem especificidades únicas - pense-se, por exemplo, no caso português, nas relações entre a indústria de construção civil, as obras públicas, os fundos de desenvolvimento, etc. Por outro lado, nos países do Terceiro Mundo encontramos factores universais, assim como nos países da Periferia europeia e na sua relação com o Centro. É natural que no caso português a maioria, senão todos esses aspectos, venham a ser encontrados. Não basta, porém, assumi-lo retoricamente - é necessário prová-lo. Estudo das características políticas e sociais do país Reconstituir o contexto em que se produziu o endividamento. Reconstituir as relações externas do país no contexto internacional. Vários economistas (por exemplo, Ernest Mandel) provaram já que os países do Sul são os verdadeiros credores do Norte, e não o inverso, pois ao longo de vários séculos foram saqueados num montante global muito superior ao dos investimentos capitalistas vindos do Norte. Cremos que estas contas nunca foram feitas para os países da periferia europeia, mas é expectável que o resultado seja semelhante. No caso português há várias perguntas específicas a fazer: ainda estaremos a pagar dívidas geradas pelo Estado Novo e pela guerra colonial? Qual a origem e finalidade dessas dívidas? Que consequências, ao nível da estrutura produtiva, tiveram as condições e contrapartidas da nossa entrada para a União Europeia? Etc. Demonstrar a evolução da taxa de juro Muitos países endividaram-se na década de 1970, graças a uma oferta excessiva de capitais, na sequência da «crise do petróleo» que afectou a Europa e da crise de superprodução verificada no Ocidente no início dessa década. A maioria dos contratos de endividamento negociados nessa época tinha uma cláusula que fixava uma taxa de juro variável. Esta cláusula, que em si mesma é ilegal,5 é em parte a origem do consequente aumento da dívida externa dos países do Terceiro Mundo, uma vez que as taxas de juro aumentaram consideravelmente no início dos anos 1980; tinham sido relativamente baixas uma década antes e os economistas não previam alterações de monta. Por conseguinte é preciso verificar se o Estado português também foi afectado por este fenómeno e, em caso afirmativo, qual a evolução das taxas de juro. [falta aqui quadro] No âmbito da investigação em foco, convém também tentar demonstrar a evolução dos indicadores macroeconómicos, entre eles o crescimento económico (ou a estagnação) e o PIB per capita, para depois compararmos com a evolução da dívida externa. Esta investigação permitirá destacar o impacto da dívida externa sobre a situação económica e social do país e também identificar os momentos chave do processo de endividamento - logo, focar ou seleccionar melhor alguns períodos para a realização de auditorias da dívida. Convém ainda elaborar um quadro dando conta da evolução da política de câmbios, em particular da moeda nacional em relação ao dólar (é claro que esta questão apenas se aplica a Portugal antes da entrada para a zona euro). As desvalorizações da moeda nacional levam a que, para obter a mesma quantidade de moeda norte-americana, haja que exportar um volume maior de mercadorias. Analisar a dívida privada Ao levar a cabo uma auditoria é útil estudar também a dívida privada nacional e tentar estabelecer relações com a dívida pública. Acontece com frequência que estas dívidas privadas acabam por ser «nacionalizadas»: passam para as mãos do Estado, que as toma a seu cargo sem se preocupar em verificar se são justificadas. A avaliação da dívida privada permite não só identificar os responsáveis pelo endividamento dum país, mas também seguir a pista dos diversos componentes e portanto melhorar o processo de pormenorização e posterior recomposição da dívida. Uma auditoria deve trazer à luz estes tipos de «transferências» de dívidas. Nos países hegemónicos muitos créditos foram também «nacionalizados» - ou seja, comprados aos bancos que os detinham sem indagar da sua validade, para depois proceder a supostas operações de anulação da dívida, à custa, nestes casos, dos contribuintes do Norte. De forma complementar e na medida do possível, será interessante analisar também a política monetária e a política em relação à taxa de câmbio, as contas do banco central e a evolução dos gastos sociais de primeira necessidade a nível nacional e regional, pois um povo pode estar a pagar muito caro as consequências duma política monetária inadequada. É claro que no caso português, após a entrada para a União Europeia, esta questão adquire redobrada complexidade, pois as políticas monetárias certamente terão sido adoptadas em favor dos países hegemónicos dentro da UE. Convém investigar as sucessivas modificações ou metamorfoses de cada parcela dos empréstimos - frequentemente certas quantias iniciais foram «reembolsadas» à custa de novos empréstimos e portanto no momento da auditoria já desapareceram do inventário da dívida. [falta aqui um estudo do papel cruzado dos bancos privados e do Banco Central Europeu] Identificar os autores e procurar a data de subscrição dos contratos Os funcionários que assinaram os contratos de dívida devem ser cuidadosamente identificados a fim de determinar se no momento da subscrição possuíam as competências e atribuições estabelecidas na legislação. Muitas vezes os governos praticam contratos secretos, passam ao lado do parlamento quando deviam pedir a sua aprovação, etc.; nestes casos é frequente que os governos aceitem cláusulas que ferem os interesses do país e as condições de vida das populações. A doutrina internacional classifica estas dívidas de odiosas, sujeitas portanto a anulação.6 Investigar se uma parte da dívida foi convertida em títulos Durante a década de 1990 novo surto de oferta de capitais financeiros produziu novo aumento das dívidas externas dos países do Terceiro Mundo. Em certos países os contratos de empréstimo foram transformados em títulos de dívida, os quais podiam ser revendidos a outros investidores. Produziu-se assim uma dispersão da dívida, tornando mais difícil o processo de renegociação e de auditoria. Note-se que esta oferta de capital pode também ser considerada como dívida odiosa [ver Capítulo 4], quando apenas serviu para pagar juros de dívidas anteriores que entravam nesta categoria. Estabelecer a evolução da dívida interna e da política fiscal adoptada A dívida interna é contraída pelo Estado, pelas instituições públicas ou bancos públicos nacionais, perante um credor interno (ou estrangeiro, por intermédio dos grandes bancos) e expressa-se frequentemente em moeda local (unionista, no caso português actual); por vezes é indexada a moedas fortes; neste caso a dívida dependerá da flutuação das moedas a que está indexada. A dívida externa e a dívida interna estão intimamente relacionadas: a política fiscal adoptada por um país exerce influência sobre a evolução da dívida interna, que por sua vez se repercute na dívida externa. Inversamente, o peso do serviço da dívida externa (orçamento de Estado para reembolso da dívida mais respectivos juros) e a necessidade constante de colectar fundos são também responsáveis pelo aumento da dívida interna ou das mudanças de política fiscal, de comércio exterior e outras. A necessidade de atrair capitais estrangeiros pode levar um governo a emitir títulos de dívida em moeda nacional que serão vendidos a investidores nacionais ou estrangeiros com taxas de juro geralmente muito altas. Nos últimos 20 anos verificou-se um aumento da dívida pública interna na maior parte dos países da Periferia. Este crescimento está ligado à crise da dívida pública externa, às sucessivas crises financeiras da década de 1990 e à aplicação de medidas drásticas impostas pelo Banco Mundial e pelo FMI. Dado que muitos bancos da Periferia foram comprados por bancos do Centro, a dívida pública interna está em grande parte nas mãos dos mesmos credores que detêm a dívida pública externa..7 Por tudo isto interessa perguntar, no âmbito duma auditoria, que relação existe entre a dívida interna e a dívida externa. O exame da evolução da dívida interna e da política fiscal deveria também permitir analisar a relação entre a dívida externa e a balança de pagamentos, expondo e quantificando a fuga de capitais, os diversos tipos e impactos dos investimentos estrangeiros directos, etc. Para ir mais além seria necessário rever os tratados bilaterais e os acordos regionais de investimento e de comércio vigentes no passado, a fim de analisar o impacto da abertura económica no país em estudo. No caso particular de Portugal, desde a adesão à UE, a quantidade de acordos condicionantes das actividades económicas e produtivas (muitas vezes politicamente mascarados de «ajuda» ao desenvolvimento), de restrições, de acordos que não passam afinal de esquemas de divisão do trabalho e da produção entre países da zona euro, e de muitas outras subtilezas económicas e financeiras manipuladas pelos países hegemónicos da UE, acabou provavelmente por gerar uma situação em que o país perdeu capacidade de produção, tornando-se sobretudo um consumidor (e portanto um pedinte de empréstimos), sem qualquer capacidade para pagar as dívidas. Quando se sabe à partida que é impossível reembolsar os empréstimos, eles entram na categoria de ilegítimos, como veremos mais adiante. Assim, para o caso português, a relação entre a curva descendente da produção interna, as medidas económicas e políticas da UE, e o endividamento interno e externo crescente tem de ser estabelecida. Toda esta meada tem de ser minuciosamente deslindada no processo de auditoria, pois doutra forma não é possível expor a ilegitimidade da dívida e das medidas políticas associadas. Elaborar a lista de empresas privatizadas A partir de finais da década de 1980 (mais especificamente, no caso português, a partir do governo de Cavaco Silva e da entrada para a UE em 1986), foram privatizadas empresas públicas estratégicas que davam bons lucros (ou teriam a capacidade de os gerar a curto ou médio prazo). Estas empresas foram vendidas directa ou indirectamente a consórcios estrangeiros, ao desbarato, e tornaram-se muitas vezes consumidoras de matérias-primas e serviços exteriores; por outro lado, os lucros passaram a ser repatriados para os países de origem dos investidores, aumentando a necessidade interna de divisas estrangeiras - e por arrasto a dívida externa. [introduzir exemplos portugueses] A auditoria deve expor as consequências destas privatizações. No caso português, os processos de privatização devem ser rigorosamente contrastados com a legislação e a Constituição, no sentido de detectar ilegitimidades e atentados ao interesse público (caso típico do processo de privatização das águas e respectiva rede de distribuição, em curso pelo menos desde 2004, que implica um atentado à Constituição: a privatização de uma parte do território ou dos recursos naturais e a sua venda ao estrangeiro). Análise dos contratos A partir das indicações fornecidas pela secção anterior, que permite trazer à luz as linhas mestras da análise, esta etapa requer em primeiro lugar a recolha de todo o tipo de documentos relativos à dívida externa. Note-se que as instituições financeiras internacionais e os demais grandes agentes económicos utilizam contratos de empréstimo normalizados, o que permite esboçar um método de análise de contratos relativamente uniforme. A primeira coisa a fazer é identificar o órgão e os funcionários que oficialmente autorizaram a assinatura do contrato de endividamento externo. Isto permitirá localizar o lugar onde supostamente se conservam os contratos de endividamento. Exame do destino real dos fundos A análise dos contratos encontrados é uma fase relativamente complexa. A seguir a esta etapa deveria estabelecer-se outra, quando seja possível realizá-la, que é importante para o estabelecimento da legitimidade ou não de cada dívida. Trata-se de examinar o destino real dos fundos concedidos por um credor. É necessário perguntar: qual era o destino previsto para esses fundos? qual foi o destino real? Isto equivale a perguntar: qual foi a contrapartida do empréstimo contraído? a contrapartida é de «qualidade»? a quem servem os resultados? a população beneficia realmente do empréstimo? qual é o organismo estatal responsável pela vigilância e uso dos fundos públicos? desempenhou correctamente o seu papel? Qual a contrapartida do empréstimo? Ao proceder a este exame poderão ser encontrados projectos que nunca se concretizaram. Uma metodologia proposta pela jurista e advogada Laura Ramos consiste em examinar o destino dos créditos a dois níveis. O primeiro nível identifica os fins que determinaram a decisão dos credores - são as dívidas primárias. O segundo nível examina os meios financeiros utilizados pelos credores para alcançar os fins propostos - são as dívidas emergentes.8 A contrapartida do empréstimo é de «qualidade»? Laura Ramos apresenta inúmeros exemplos de dívidas primárias e emergentes no seu livro. Citemos, entre outros casos de dívidas emergentes, a utilização das quantias de uma dívida contraída por uma instituição pública que beneficia, feitas as contas, o sector privado. Só através duma auditoria se consegue identificar o desvio de fundos e portanto estabelecer em tribunal a quem cabe o pagamento desta parte da dívida. As agências de crédito à exportação [a verificar: a especificidade portuguesa] As agências públicas de crédito à exportação garantem as empresas que vendem no estrangeiro contra os riscos financeiros ou políticos da exportação. Cada país (especialmente os países ricos) criou as suas. Estas agências, extremamente discretas e opacas, entregam um apoio financeiro colossal (o dobro da ajuda pública ao desenvolvimento), principalmente a grandes empresas ou bancos que as substituem para administrar a longo prazo a dívida contraída pelo comprador estrangeiro? Na prática as agências funcionam como seguradoras. Originalmente os riscos cobertos incluíam vicissitudes políticas nos países importadores, ou seja, riscos que nem a empresa exportadora nem o seu cliente têm possibilidade de controlar. Hoje em dia a cobertura de risco de não pagamento alargou-se à simples incapacidade de pagamento por parte do cliente e a garantia do Estado importador já não tem justificação política. Assim, estas agências converteram-se cada vez mais em instituições que transferem o risco da empresa para o domínio público. As agências de crédito à exportação representam as fontes mais importantes de financiamento público para os projectos do sector privado - projectos de mineração, centrais de produção de energia, etc. Os contratos negociados com as agências de crédito à exportação representam hoje um quarto da dívida pública nos países em desenvolvimento. Em África esta fatia é muito maior, chegando a 71% da dívida externa na Nigéria, 58% no Lesoto, 55% no Gabão, 42% no Congo, 33% na RDC e 31% nos Camarões. Apoiam o dobro dos projectos petrolíferos, de gás e minas dos que são apoiados por bancos multilaterais de desenvolvimento e pelo Banco Mundial juntos. A intervenção das agências torna o processo de endividamento muito complexo. Quando uma empresa ocidental (ou o banco que tomou o crédito a seu cargo) contraiu uma garantia de exportação, ao constatar que o serviço poderá não ser pago dirige-se à agência de crédito à exportação para ser reembolsada. Esta agência passa a ser detentora do título da dívida. O crédito privado transforma-se em público. Caso não se verifique o reembolso, o contribuinte do Norte paga então os erros do seu sector privado. Por sua vez, a agência poderá tentar recuperar uma parte do seu dinheiro, vendendo os créditos em mercados especializados na recuperação de créditos. O crédito volta a ser convertido em privado e o país do Terceiro Mundo depara-se com uma situação em que os termos do contrato de endividamento mudaram sem que o país em causa pudesse intervir na negociação; frequentemente as condições de reembolso são agravadas. Se o contrato previa uma contragarantia soberana, o credor pode dirigir-se ao país da empresa em dificuldades e então a dívida passa a ser pública. Estas agências de crédito à exportação abarcam actualmente 10% das exportações mundiais e desempenham um papel crucial na privatização de empresas públicas do Terceiro Mundo. Alguns relatórios, como The Corner House ou a Declaração de Berna, dão conta da total falta de transparência destas agências, apesar de serem financiadas pelo erário público. Revelam que aquando da negociação dos contratos as instituições pouco se ralam com a pertinência e seriedade dos projectos. Revelam também a prática generalizada da corrupção, através do pagamento de comissões. Parte da auditoria da dívida deveria examinar em profundidade os contratos negociados com estas agências e, na medida do possível, determinar a sua legitimidade. Por último é necessário lembrar que a maioria das agências de crédito à exportação não estavam obrigadas a respeitar os direitos humanos nem o impacto social e ambiental dos projectos que financiavam. Análise comparativa de dados orçamentais actuais Cada país constitui uma realidade diferente. Por isso em cada caso é preciso descobrir quais os dados que convém procurar e comparar, com o serviço da dívida. No Brasil, por exemplo, a auditoria cidadã concluiu que em 2004 os gastos sociais se elevavam a 33.000 milhões de USD, enquanto o serviço da dívida atingia os 69.790 milhões de USD. A auditoria deve incluir uma análise das relações entre a dívida e os indicadores sociais - pobreza, indigência, desemprego, subemprego, precariedade, distribuição de rendimentos, etc. Consulte-se o sítio na Internet do Observatório Internacional da Dívida (www.oid-ido.org), que estabelece métodos para calcular essas relações. que estabelece métodos para calcular essas relações. Como superar os obstáculos? O caminho da auditoria está pejado de obstáculos; definitivamente, a sua realização não é uma tarefa fácil. Os obstáculos podem ser de carácter técnico ou de índole política. Obstáculos técnicos Suponhamos que o arranque da auditoria começou relativamente bem - acordo geral por parte da sociedade civil sobre a necessidade de realizar uma auditoria, mobilização das associações, grupos, movimentos sociais e membros de partidos políticos em torno da questão, etc. Suponhamos ainda que a estratégia a seguir (agenda e planificação das tarefas, organização dos grupos de trabalho, identificação dos tipos de documentos a procurar, etc.) também foi claramente estabelecida. Ainda assim pode acontecer que os documentos sejam escassos ou que a língua utilizada nesses documentos seja um problema, como aconteceu no Brasil. Além disso, ao investigar-se o processo histórico de endividamento pode descobrir-se que os documentos se encontram dispersos por diversos países. Tudo isto pode desanimar os investigadores e travar a marcha da auditoria. Para resolver estes problemas é indispensável criar uma rede de solidariedade internacional. O contacto com funcionários que trabalham em postos chave também pode ser precioso. Obstáculos políticos É previsível (diríamos mesmo garantido) um bloqueio político que impeça o acesso aos documentos de endividamento. Este obstáculo é mais difícil de superar que o anterior. Muitos políticos, alguns deles dirigentes históricos (para não falar já dos gestores financeiros, das pessoas nomeadas para cargos de direcção da função pública, da maioria dos autarcas, etc.), não têm o mínimo interesse em que se comece a esgaravatar no processo de endividamento. Por isso mesmo insistimos na necessidade de encontrar aliados nos partidos políticos. Chegados a esta fase, e sempre partindo do princípio que se obteve um consenso por parte da sociedade civil, é necessário exercer uma grande pressão para ir conseguindo acesso a alguns documentos. À medida que o volume de documentação conclusiva acessível for aumentando, dar-se-á provavelmente um efeito de «brecha na barragem». Para exercer essa pressão, a ajuda dos órgãos de comunicação social é muito importante. Ora, no caso português mais ainda, a comunicação social cada vez mais cerra fileiras em torno das forças no poder (políticas e financeiras - até porque estas são as donas dos órgãos de comunicação social e aqueles são os seus defensores nas instituições de poder). É portanto de prever que, se nada for feito previamente para combater este estado de coisas, a comunicação social não só não ajude, como receba a encomenda de produzir uma campanha arrasadora de desmobilização e descrédito do processo de auditoria. Por isso não nos cansamos de repetir que, no caso português, muito antes de iniciar qualquer processo de auditoria é necessário construir instrumentos de comunicação, informação e formação de quadros. Capítulo 4 Aspectos jurídicos da auditoria Há várias entidades que podem decidir fazer uma auditoria, entre elas os movimentos de cidadãos. Mas só o governo pode decidir, com base nos resultados da auditoria, não pagar parte ou a totalidade da dívida e encetar acções legais. Por isso a pressão sobre os poderes públicos é tão importante. No caso português, sendo a expectativa duma auditoria institucional irrealista e até perigosa, a cooperação entre movimentos de cidadãos e o governo parece estar fora de causa. Em compensação convém prestar especial atenção à doutrina internacional aplicável. Os poderes públicos: direito de actuar e decidir legalmente No âmbito do direito internacional há bastante doutrina que apoia a auditoria pública.9 Trata-se dum instrumento privilegiado, assente na competência dos poderes públicos, reconhecida pelo direito internacional. Permite aos governos decidir sobre o carácter lícito ou ilícito da dívida externa pública. Se um governo se nega a proceder a uma auditoria, compete aos cidadãos exigi-la através do exercício do direito de petição, segundo as garantias políticas e cívicas de cada constituição. Determinar a legalidade ou ilegalidade da dívida externa: um direito soberano e um dever dos poderes públicos Nenhum governo pode ser obrigado a pagar uma dívida externa que tenha sido declarada juridicamente como um acto ilegítimo ou ilegal, sob pretexto de existir uma obrigação internacional. Segundo as normas de direito público, determinar o carácter lícito ou ilícito da dívida externa é uma competência dos poderes públicos. Todos os governos, enquanto órgãos do Estado, têm o direito e a obrigação de exercer as suas competências internas, particularmente no que respeita à avaliação das dívidas públicas, mediante a realização duma auditoria pública e da correspondente instrução fiscal para apurar responsabilidades e punir os responsáveis. Os cidadãos: direito a conhecer os factos e reclamar reparações Os movimentos de cidadãos, como vítimas directas do endividamento, têm o direito de questionar a validade dos créditos recebidos e de exigir, ao abrigo dos direitos humanos internacionalmente reconhecidos, as reparações correspondentes aos prejuízos causados quando se comprove a existência de danos e prejuízos resultantes das acções governamentais.10 A auditoria cidadã coloca o problema do direito e da legitimidade da dívida. Inclui a ideia de reparação e permite uma análise do passado que delimita as responsabilidades, tanto a nível interno como a nível dos credores, e define a parte odiosa ou viciada de outros tipos de ilicitude da dívida. A auditoria representa assim uma protecção social e financeira dos cidadãos, além de proporcionar argumentos jurídicos para a anulação da dívida. Exigir uma auditoria: um direito fundamental O direito de participar nos assuntos públicos do Estado Artigo 21º, alínea 1, da Declaração Universal dos Direitos Humanos: «Toda a pessoa tem o direito de tomar parte na direcção dos negócios públicos do seu país, quer directamente, quer por intermédio de representantes livremente escolhidos». Disposição similar foi formulada no Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos de 1966, onde se reforça este direito estabelecendo a protecção dos direitos políticos, particularmente o direito de participar nos assuntos públicos directamente. A Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia não contraria (nem poderia fazê-lo) estes preceitos.11 A dívida externa, como acto governativo, compromete os recursos do Estado em sentido amplo: recursos financeiros, recursos humanos, recursos naturais, rendimentos nacionais, etc. No acto do empréstimo o Estado compromete-se e com ele toda a população. Assim, quando um governo actua como órgão do Estado, trata-se de um acto essencialmente público: os seus efeitos far-se-ão sentir directamente sobre os cidadãos. Em contrapartida, emerge o direito de os cidadãos participarem «nos negócios públicos»: todos os cidadãos têm o direito de exigir que o governo preste contas, de cada vez que o órgão actua como poder público. O controle cívico aparece assim como um elemento essencial, derivado do direito de participar nos negócios públicos.12 Ao oferecer às populações um direito de fiscalização e controle sobre a utilização de fundos, a auditoria cidadã permite também instalar uma estrutura capaz de administrar a restituição de bens mal-adquiridos e a sua utilização em benefício das populações. O direito à informação: um direito humano No que diz respeito à informação, o referido Pacto de 1966 estabelece o seguinte: «Toda a pessoa tem o direito à liberdade de expressão; este direito compreende a liberdade de procurar, receber e difundir informações e ideias de toda a índole, sem limitação de fronteiras, seja oralmente, por escrito, ou em forma impressa ou artística, ou por qualquer procedimento da sua preferência» (artigo 19.º). Por seu lado, a Comissão dos Direitos Humanos sublinhou recentemente que o exercício da democracia engloba: a)a transparência da gestão dos assuntos públicos e da administração em todos sectores da sociedade e a obrigação de prestar contas; b)uma verdadeira participação da sociedade civil.13 O acesso à informação é um direito fundamental no que respeita aos actos governamentais, particularmente quando o governo contrai empréstimos públicos que comprometem os recursos do Estado. No plano jurídico internacional este direito foi reconhecido pela quase totalidade dos Estados, que ratificaram o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos de 1966, com a excepção notável dos EUA que, mais de 30 anos depois de o terem assinado, continuam a recusar a sua ratificação.14 A finalidade deste direito é que os cidadãos tenham acesso aos documentos ou às informações que se encontram nas mãos do poder público. Como corolário, implica que os funcionários e as entidades estatais têm a obrigação de facilitar o seu livre exercício. O campo de aplicação da disposição do Pacto de 1966 é muito amplo. A extensão do artigo citado pode ser interpretada como englobando o direito de cada indivíduo a procurar, pedir e obter as informações referentes a leis, decretos, actos administrativos, resoluções e regulamentos, pressupostos e balanços, memorandos, balanços de contas, declarações de bens dos funcionários e das autoridades do Estado, e, em geral, qualquer tipo de documento: escritos, fotos, gravações na posse ou sob controle da entidade pública requerida.15 Tudo o que se refere à dívida externa entra no âmbito da aplicação desta disposição: não se pode invocar o carácter secreto das negociações da dívida externa pública16 para impedir o acesso dos cidadãos às informações necessárias para que conhecem a maneira como foram administrados os recursos públicos. A democracia e o controle democrático dos actos do governo conferem aos cidadãos: a)o direito de saber o que o governo decide no plano das relações internacionais em geral e no plano económico e financeiro em particular; b)o direito de participar activamente neste processo sempre que os bens do Estado, os recursos públicos, os recursos naturais, o bem-estar da população (saúde, educação,?) possam ser «hipotecados» por causa das dívidas públicas contraídas em nome das populações. Em conclusão: o direito à informação é um direito humano fundamental, central na questão da auditoria. Sem ele, a auditoria não poderia ser realizada. A auditoria torna-se assim um instrumento político, um paradigma do exercício da transparência democrática e da fiscalização dos actos governativos. Âmbito da auditoria O campo de aplicação da auditoria engloba a análise de todas as dívidas contraídas pelo poderes públicos perante as instituições públicas ou privadas independentemente da natureza do regime. Mas também de todas as dívidas privadas contraídas por empresas privadas e que posteriormente foram transferidas para o cargo do Estado, transferências essas de que as sucursais das empresas multinacionais beneficiam largamente (e, no caso português, vários bancos e empresas financeiras portuguesas). A amplitude deste campo é que permite colocar as três questões fundamentais em jogo: quanto se deve? a quem se deve? porque se deve? e por vezes até perguntar: deve-se realmente? Como já foi referido nas secções anteriores, neste contexto a participação dos sindicatos, dos camponeses, dos movimentos de mulheres, dos jovens, dos estudantes, etc., é condição de garantia da transparência e viabilidade da auditoria cidadã, impedindo que os credores se tornem juízes em causa própria. Por outras palavras, a auditoria não se reduz de forma alguma a um exercício técnico; é, antes do mais, um instrumento político e de controle democrático. É também um instrumento político pedagógico, se envolver uma ampla mobilização social. Elementos jurídicos para examinar um contrato de empréstimo Antes de empreender qualquer exame jurídico dos contratos de empréstimo, é necessário ter em mente os seguintes elementos gerais: a natureza do direito aplicável ao contrato de empréstimo a hierarquia e interpretação dos convénios internacionais (veja-se a Convenção de Viena sobre o direito dos tratados) o debate sobre a utilização dos termos de ilegalidade ou ilegitimidade da dívida. Natureza do direito aplicável aos contratos de empréstimo O que é que está em causa? Trata-se de direito interno dos países, de direito internacional público, de direito internacional dos direitos humanos, do direito ao desenvolvimento, do direito mercantil, ou até do direito dos Estados credores? A natureza dos contratos de empréstimo difere muito de caso para caso, tal como a identidade dos contraentes. Em primeiro lugar é preciso verificar se no contrato está previsto um procedimento de arbitragem. Se assim for, é mais fácil determinar a natureza do contrato. Há contratos em que a vinculação ao direito internacional público está expressa, mas estes casos são raros. Quando se faz um contrato entre um Estado e um banco multinacional ou um grupo bancário privado, trata-se de um contrato internacional sujeito às regras dos contratos internacionais. Neste caso os conflitos são dirimidos no Centro Internacional de Resolução de Disputas Relativas a Investimentos (CIRDI-ICSID)17, tribunal arbitral criado pela Convenção sobre Resolução de Disputas Relativas a Investimentos entre Estados e Nacionais de Outros Estados, assinada em Washington em 18 de Março de 1965. Este tribunal é membro do Grupo Banco Mundial, tem sede no Banco Mundial, cujo presidente é por inerência presidente do conselho de administração do referido tribunal. Se se trata de um contrato entre entidades públicas e que implica um investimento de grande montante e larga duração dentro do território do Estado contratante, pode considerar-se que o contrato está sujeito ao direito internacional sobre desenvolvimento. Quando se firma um acordo entre Estados ou entre um Estado e uma instituição económico-financeira internacional, trata-se de um acordo internacional regido exclusivamente pelo direito dos tratados. Neste caso é possível recorrer aos tribunais ordinários, aos tribunais arbitrais internacionais ou a qualquer outra instância internacional.18 Por último, um contrato pode ser vinculado a uma ordem jurídica específica regendo excepcionalmente os direitos e deveres dos contratantes Quando se trata de empréstimos entre bancos privados e Estados do Terceiro Mundo, o direito internacional público e o direito internacional sobre desenvolvimento são quase impossíveis de aplicar.19 Em suma, a definição do direito aplicável não é apenas um problema técnico jurídico mas também um problema político. Encaixar o contrato na hierarquia das normas Quando em ocasiões passadas os países do Terceiro Mundo reivindicaram a anulação de dívidas, os países ocidentais esgrimiram frequentemente com o princípio Pacta sunt servanda, segundo o qual as partes estão ligadas pelo tratado em que se comprometeram, até ao esgotamento de todas as suas obrigações. As entidades credoras também argumentam a mesma regra de ouro nas relações comerciais. Sucede que, ao reivindicarem este princípio, esquecem que as normas de direito têm uma hierarquia. Em princípio, o respeito e a aplicação dos direitos humanos, tal como estão expressos e reconhecidos universalmente nas convenções internacionais, são superiores aos direitos garantidos num contrato financeiro. Na sequência da assinatura de um contrato de empréstimo, o governo pode dar prioridade ao cumprimento das suas obrigações de respeitar os direitos humanos, excluindo as cláusulas do contrato que lhes sejam contrárias, sem que a sua responsabilidade internacional seja questionada. Esta problemática reflecte-se na luta pelo respeito dos direitos económicos, sociais e culturais inseridos no Pacto Internacional relativo aos Direitos Económicos, Sociais e Culturais (PIDESC), adoptado em 1966 e ratificado até hoje por 152 Estados.20 Além disso existem princípios de direito nacional e internacional que prevêem o questionamento de um compromisso em circunstâncias particulares (para além dos casos de força maior, estado de necessidade, etc.). Podemos alegar o princípio Rebus Sic Stantibus, que é uma cláusula subentendida nalguns contratos, em virtude da qual se supõe que toda a convenção foi concebida «num momento e numa situação determinados» e que, para que o contrato continue a ser válido, é necessário que a situação se mantenha. Qualquer alteração substancial pode dar lugar a uma modificação das estipulações do contrato. A este princípio pode-se juntar a alteração unilateral das condições originais do contrato de dívida (como o aumento dos juros; ver adiante). Isto permitiria propor a revisão dos contratos originais. O que está em jogo numa auditoria é detectar essas circunstâncias a fim de justificar a anulação da dívida, com base nos princípios de ordem jurídica. Ilegitimidade ou ilegalidade? A questão que se coloca aqui é a de saber se um contrato de dívida pode ser impugnado pela sua ilegalidade, pela sua ilegitimidade ou por ambas. A legalidade é a conformidade de um acto ou facto com as leis. É o conjunto das regras jurídicas aplicáveis num país determinado, num momento preciso. Fala-se de legitimidade quando o carácter de um acto satisfaz uma norma ou um princípio normativo que indica o que deve ser ou o que deve fazer-se. A legitimidade remete para valores (muitas vezes subjectivos, o que torna o problema mais complexo). Uma dívida é ilegal quando existe violação do direito, como no caso da dívida odiosa [ver mais adiante]. Por outro lado pode falar-se de ilegitimidade da dívida, pois este termo refere-se à finalidade da dívida, ao seu impacto, e a sua formação depende da evolução e do funcionamento do sistema económico internacional e do capitalismo. Uma dívida também é ilegítima quando haja utilização perversa do direito? ou do não-direito (paraísos fiscais, zona de vazio jurídico, etc.). A dívida dos países da periferia deve ser analisada de ambos os pontos de vista, embora eles sejam distintos. Que aspectos da formação do contrato de empréstimo poderiam ser questionados juridicamente? Quais eram as faculdades dos contraentes no momento da conclusão do contrato? Ao fazer uma auditoria deve proceder-se à análise da natureza política e histórica do regime e da capacidade do credor para ter em conta estes dados quando decide outorgar o empréstimo. Se um governo ilegítimo contrai uma dívida, o governo que lhe segue pode perfeitamente negar-se a cumprir o compromisso. Há irregularidades nos procedimentos? A pergunta a fazer é esta: as partes contraentes violaram as normas que regulam os procedimentos internos de contracção de um empréstimo? A constatação de irregularidades pode acarretar a nulidade do compromisso; compete à auditoria trazer essas irregularidades à luz. A resposta a esta pergunta implica um balanço dos seguintes elementos: Dado que a dívida contraída por um Estado equivale a um imposto que os cidadãos devem pagar ao longo do tempo, deve imperar o princípio de que não se pode obrigar a pagar um imposto que não foi legitimamente decidido («no tax without representation»). A capacidade de contrair empréstimos e de fixar as políticas em matéria de dívida pública nos sistemas republicanos compete ao poder legislativo. Por isso temos de começar por analisar: quais as normas constitucionais ou as internas que autorizam e regem as dívidas públicas? Qual o órgão de Estado, tanto a nível interno como externo, que tem a faculdade constitucional de contrair empréstimos? A realidade é que, seja pela complexidade técnica das operações financeiras, seja pela impossibilidade de negociar no âmbito de um corpo deliberativo (como o parlamento nacional), em geral utilizam-se normas ou leis que delegam o controle da dívida ao poder executivo. Existem essas normas ou leis? Existem normas gerais ou uma lei administrativa financeira que estabeleça a delegação de faculdades em determinados casos? Esta questão tem de ser analisada com minúcia, pois sempre que exista delegação no poder executivo cria-se uma autêntica armadilha - haverá tendência para o governo extrapolar as suas competências estritas, firmando acordos e aceitando condições que ferem outras competências e normas. O poder executivo utiliza a lei de rendimento fiscal anual para obter autorizações de aumento do endividamento. Em geral essas autorizações são conferidas por quantidades globais, sem precisar as taxas de juro, o tipo de moeda, as condições e destino do empréstimo, etc. Como foram incluídas na lei de rendimento fiscal anual as operações de crédito público? O poder legislativo exigiu um estudo prévio de análise de sustentabilidade da dívida ou um plano de financiamento? De que forma se regista ou se contabiliza a dívida pública bruta ou líquida nas contas públicas nacionais? Que departamento ou repartição de Estado tem a seu cargo as contas públicas nacionais, o património, o endividamento, as contas de investimento? Existem análises patrimoniais, de solvência, de liquidez, etc.? A aprovação do Estado para operações privadas é outra forma de endividamento público. O rendimento fiscal reflecte as operações de aprovação do Estado aos bancos ou às empresas privadas? [veja-se o caso BPN] Quando um governo emite títulos de dívida ou contrai empréstimos nos mercados internacionais de capitais, geralmente e-lhe exigida a renúncia à imunidade soberana do Estadoou a delegação da jurisdição a tribunais internacionais. Que órgão de Estado tem a faculdade de autorizar a renúncia a tal imunidade soberana ou à delegação de jurisdição a tribunais estrangeiros? Existem vícios de consentimento? A constatação de um ou mais vícios de consentimento num contrato acarreta a sua nulidade. Por exemplo, um vício de consentimento típico é a ameaça: dentro duma relação bilateral, um contrato de empréstimo pactuado em relação de desigualdade manifesta entre o credor (posição dominante) e o devedor pode ser considerado como nulo, visto que o devedor não pode sofrer pressões externas (violência, chantagem, etc.). O Estado que contrai um empréstimo deve poder exercer a sua soberania plena. Para enumerar os vícios de consentimento podemos inspirar-nos nos vícios inscritos no repertório da Convenção de Viena, que rege o direito dos tratados internacionais: violação das regras internas sobre a competência para concertar tratados (artigo 46; já tratámos dele na parte consagrada às capacidades dos contraentes); restrição particular do poder de expressar o consentimento do Estado (artigo 47); erro (artigo 48); dolo (artigo 49) - o dolo qualifica uma situação enganosa: quando as manobras praticadas por uma das partes são tais, que se torna evidente que sem essas manobras a outra parte não teria aceite o contrato; corrupção do representante do Estado (artigo 51); ameaça ou emprego da força (artigo 52). A Convenção de Viena não parece aplicar-se ao conjunto da problemática da dívida; não obstante, pode ser útil que os juristas envolvidos no processo de auditoria conheçam estes artigos. Trata-se de uma dívida odiosa? Alexander Sack é o teórica da dívida odiosa: «Se um poder despótico contrai uma dívida não segundo as necessidades e o interesse do Estado mas sim para fortalecer o seu poder despótico, para reprimira a população que o combate, essa dívida é odiosa para toda a população do Estado. Essa dívida não é obrigatória para a nação: é uma dívida do regime, dívida pessoal do poder que a contraiu; cai com a queda do dito poder.» As instituições internacionais, violando abertamente o direito internacional e os seus próprios estatutos, apoiaram conscientemente regimes que planificaram e ordenaram a execução de crimes contra a humanidade. O Banco Mundial apoiou sistematicamente os aliados estratégicos dos EUA, como a ditadura de Mobutu no Zaire, as ditaduras brasileira e argentina, Pinochet no Chile, Suharto na Indonésia, Marcos nas Filipinas, etc. A esta constatação há que juntar o facto de que o FMI, o Banco Mundial e os credores privados não podiam ignorar que estavam a tratar com regimes ilegais, ilegítimos e usurpadores, que se baseavam na negação absoluta de toda a legalidade. Não podiam ignorar que tratavam com governos que tinham planificado e executado os crimes mais graves contra a humanidade. Segundo a prática internacional e os termos da sentença Olmos [ver Capítulo 2 e mais adiante], podemos dizer que se as IFIs e as companhias financeiras privadas entregaram fundos (sob a forma de empréstimos) a uma ditadura que, além de o ser, planificou e executou crimes contra a humanidade, essas instituições internacionais náo podem pretender em caso algum que: a.o acto é um acto de Estado juridicamente válido perante o direito internacional; b.os governos posteriores constitucionais estariam juridicamente obrigados pelo direito internacional a reembolsar as dívidas das ditaduras em questão. Trata-se de dívidas com vício de nulidade ou de invalidade substantiva. São os credores que têm de provar que as dívidas foram contraídas no interesse do Estado e da sua população, de maneira regular e por um governo regular e legítimo. O direito internacional ensina-nos que todos os actos governamentais, incluindo os actos jurídicos através dos quais um governo usurpador contraiu dívidas públicas, inelutavelmente contêm o vício de nulidade. A obrigação de reembolsar essas dívidas fica a cargo das pessoas que, ao abrigo do regime usurpador, foram responsáveis por tais actos. Por consequência os credores não possuem nenhum título legal de reclamação, ainda que os empréstimos tenham sido outorgados mediante assinatura de acordos ou contratos internacionais. Tal pretensão implicaria dissociar os direitos humanos das relações económicas internacionais, criando um sistema de impunidade para os responsáveis por violações massivas dos direitos humanos. Existem outras fontes de ilegalidade e ilegitimidade por detectar nos contratos? Vários outros princípios de direito internacional podem revogar um contrato abusivo: usura: quando o credor empresta a uma taxa de juro superior à legal; enriquecimento sem justa causa: o não-enriquecimento à custa de outrem constitui um princípio geral de direito. É reconhecido tanto no direito romano como no direito não codificado (como o dos EUA). Este princípio é importante, pois permite à entidade vítima de empobrecimento obter reparações por parte de quem enriqueceu à sua custa.21 A corrupção pode ser incluída neste âmbito; custo excessivo: o Estado endividado pode negar-se a pagar uma prestação se, por causas imprevisíveis, o custo da mesma aumentar excessivamente; lesão: quando uma das partes aproveita a situação de debilidade ou de instabilidade da outra para obter uma vantagem económica importante; abuso de direito: quando uma das partes, exercendo um direito, se comporta de modo desleal e abusivo, usa de má-fé ou viola o espírito desse direito. Além destes vícios, pode-se considerar o empréstimo ilegítimo quando: o contrato apresenta cláusulas abusivas [como já se indicou no Capítulo 3] - por exemplo, as condições de ajuste estrutural (ou reestruturação) do FMI e da Troika, que implicam cortes drásticos nos orçamentos da saúde, da educação e outros serviços sociais, não contribuem para o bem-estar da população; o contrato contém cláusulas que minem a soberania nacional - caso este também ilustrado pelo Memorando da Troika em Portugal. Joseph Hanlon menciona mais duas categorias de condições inaceitáveis: os credores não devem utilizar a renegociação da dívida para juntar condições que noutras circunstâncias seriam inaceitáveis; a garantia pública de um empréstimo ilegítimo não o legitima; é inaceitável que um governo garanta ou nacionalize um empréstimo ilegítimo. Faz parte do papel da auditoria anotar todas estas cláusulas e denunciar a sua existência. O comportamento do credor Antes de chegar à reivindicação da anulação de uma dívida, é preciso delimitar as responsabilidades (penal e civil) no processo de formação da dívida. A auditoria permite esclarecer estes aspectos. Desleixo no exame minucioso das capacidades do futuro devedor Um contrato de empréstimo pode ser considerado ilegítimo se o credor é de algum modo responsável pelos crimes, delitos graves, violações dos direitos humanos e de normas ou princípios do direito internacional ou do direito do país devedor. Parte-se do princípio que o credor tem conhecimento da natureza do regime do Estado devedor e também que se interessa pela utilização dos fundos prestados, sua rentabilidade, etc. Contudo, a responsabilidade do credor não está claramente definida nas relações financeiras internacionais nem no direito internacional.22 A finalidade destas leis é a de corrigir relações de força desequilibradas e sobretudo proteger o mercado financeiro, pois um crédito malparado pode ter consequências perigosas no conjunto do sistema financeiro e do funcionamento do crédito bancário.23 Estas limitações não são de todo regra no direito internacional mercantil, mas alertam-nos para a necessidade, no âmbito da auditoria, de fazer pressão para que se reconheça a co-responsabilidade em matéria de endividamento a nível internacional. Mais uma vez, temos aqui a auditoria no seu papel de instrumento político. Na hipótese de um avanço do dioreito internacional neste campo, é útil que as conclusões duma auditoria delimitem todas as responsabilidades em causa, de forma a poder apresentá-las perante um tribunal e obter a anulação da dívida. Risco imponderado Outra pista a considerar é o risco moral. Neste caso os agentes credores podem ser encorajados a investir em acções de alto risco, por terem subscrito um seguro que cobre as perdas prováveis. Os credores sabem que serão reembolsados, pouco lhes importa por quem, e desprezam a qualidade ou seriedade do projecto [ver também as notas sobre as agências de crédito à exportação, Capítulo 3]. No que respeita à dívida externa pública, os credores estão seguros de que o Banco Mundial e o FMI [a que se juntam agora, dentro da UE, a Comissão Europeia e o Banco Central] sempre acorrerão a restabelecer, em última instância, a situação financeira perigosa de um Estado. A História demonstra que se verificam muitos abusos nesta matéria e até o FMI já condenou esta prática, pois, segundo os seus próprios argumentos, isto debilita a «disciplina» do investimento.24 O risco moral deve ser considerado da responsabilidade do credor; as dívidas contraídas sob este risco devem ser consideradas ilegítimas e portanto não reembolsáveis. Os credores devem ser obrigados a avaliar os verdadeiros custos dos seus investimentos e a concluir a probabilidade de não serem reembolsados.25 A responsabilidade do credor O credor pode ser acusado de ter abusado da confiança do devedor ou de o ter enganado. No entanto também é importante investigar o grau de responsabilidade do devedor no endividamento. Para isso convém em primeiro lugar identificar e obter informações sobre a qualidade das pessoas que assinaram e negociaram o contrato de empréstimo. A seguir é preciso verificar se não ocorreu um dos seguintes delitos, pois certos vícios e delitos apenas podem ser imputados ao credor: fraude: como o facto de se pretender que existem dívidas imaginárias ou quando se pretende cobrar uma dívida que já foi paga; corrupção: quando, durante a negociação ou a atribuição dos fundos de empréstimo, um funcionário público aceita uma comissão ou um suborno; falsificação de documentos; malparança de fundos públicos: quando o dinheiro proveniente de empréstimos recebidos por um Estado é atribuído a um destino que não era aquele para o qual o empréstimo havia sido contraído; extorsão: quando se impõem condições sob ameaça para alcançar a renegociação de uma dívida; etc. Os funcionários públicos cometem delitos de incumprimento dos seus deveres quando ditam ou executam resoluções ou ordens contrárias à Constituição ou às leis locais cujo cumprimento lhes incumbe. Além disso «cometem um delito de administração fraudulenta quando, abusando do seu cargo, cometem ou ordenam qualquer acto arbitrário em prejuízo da administração pública ou dos particulares, ou quando, com engano, por actos ou contratos, prejudicam a administração em benefício próprio ou alheio. Os governantes do Sul cometem o delito de traição à pátria por submeter o destino do país a interesses estrangeiros. Todos estes delitos comuns são, em geral, sancionados penalmente pelas legislações internas dos países onde se produziram os actose geram a obrigação de indemnizar as vítimas pelos danos sofridos».26 Por último, «a situação do devedor é o segundo aspecto a analisar dentro das circunstâncias em que se desenvolveu o processo de contratação de um empréstimo ou de reestruturação do seu pagamento. Entendemos, neste caso, que quando quem deve pagar as dívidas não esteve em condições de outorgar o seu consentimento livre e informado, o empréstimo é ilegítimo e portanto inexigível. Examinar se a população que tem de pagar a dívida externa consentiu as operações financeiras internacionais que geraram o endividamento, leva-nos em primeiro lugar a analisar a natureza dos governos signatários dos empréstimos e, logo, no caso das democracias, a examinar até que ponto o seu comportamento é democrático».27 Será necessário inspirarmo-nos nas noções de direito privado para examinar um contrato de empréstimo? O paradoxo é o seguinte: por exemplo, o direito nacional americano ou europeu protege o devedor dos abusos do endividamento, impondo cláusulas de limitação dos créditos, de não acumulação em função do salário recebido, etc. Mas isto não existe no direito internacional. Assim, temos por um lado ordens jurídicas nacionais demarcadas com precisão e, por outro, uma ordem internacional bastante imprecisa e vaga. No entanto, os princípios gerais do direito internacional compreendem os princípios gerais de direito «reconhecidos pelas nações civilizadas» e os princípios incluídos nas normas de direito civil dos países europeus que têm um alcance internacional. Os juristas podem contribuir para que esta possibilidade se torne realidade, fazendo avançar a ordem jurídica internacional. Portanto é útil investigar, no âmbito da auditoria, qual a regulamentação do banco central nacional, a legislação do sistema bancário e financeiro, as normas que regulamentam os depósitos, empréstimos e reservas bancárias, a existência de garantias do Estado sobre os depósitos e sobre os seguros de câmbio, a legislação e as normas sobre movimentos de capitais, os depósitos de residentes nacionais e estrangeiros (fuga de capitais) e a legislação sobre sociedades offshore. Condições e perspectivas de recurso à justiça penal As autoridade s de procedimento penal dispõem de meios de investigação incisivos, que podem ser úteis para estabelecer o uso efectivo dos valores postos à disposição do Estado devedor. No entanto apenas se podem submeter assuntos a estas autoridades em determinadas condições e os resultados das suas investigações nunca são garantidos. Não existe actualmente nenhuma jurisdição supranacional competente para estudar crimes ou delitos que possam ter sido cometidos no contexto dum empréstimo monetário a um Estado. Portanto só se pode apelar às autoridades judiciais nacionais. Os pontos seguintes são apresentados de forma genérica e abstraindo das particularidades de cada legislação nacional. As condições A justiça penal só pode actuar quando exista suspeita de infracção cometida no uso dos fundos emprestados. Esta suspeita deve basear-se em factos precisos. A autoridade judicial tem de ter competência para examinar a infracção. Em matéria internacional a competência fundamenta-se geralmente sobre o lugar onde foi cometida a infracção, sobre a nacionalidade do infractor ou da vítima. Se existe suspeita de desvio dos fundos emprestados ao Estado por meios penalmente reprimíveis nesse Estado, geralmente as autoridades locais são competentes. Do mesmo modo podem ser competentes as autoridades dum Estado em que tenham sido colocados fundos desviados, se este Estado reprimir o branqueamento de dinheiros - é o caso das principais praças financeiras europeias e norte-americanas, entre outras. As medidas A autoridade competente para realizar uma investigação penal dispõe geralmente de meios de coacção eficazes e de capacidade para interrogar, intimar, etc., a fim de obter informações úteis. Pode proceder a pesquisas e apoderar-se dos documentos relevantes; pode obrigar os estabelecimentos financeiros a fornecer informações e documentos; pode ordenar o embargo de contas sob suspeita de receber fundos de origem criminosa. Mesmo nos Estados que reconhecem o segredo bancário, esse segredo cede perante o juiz criminal. A ajuda mútua internacional Um juiz ou procurador não pode actuar fora do território nacional - terá de solicitar assistência a um juiz do Estado onde se encontram as provas em causa. A relação entre juízes de países diferentes depende dos acordos internacionais estabelecidos entre esses países e do facto de a infracção em causa estar ou não contemplada na lei do outro país. Recuperação dos valores desviados Se os valores em causa foram desviados para outro país, é possível recuperá-los, em princípio. Para isso deve ser requerida ajuda mútua, nas condições mencionadas no ponto anterior. Anexos Dados relativos ao contexto económico e financeiro português Evolução da dívida líquida externa em percentagem do PIB [gráfico] o que é a dívida líquida externa ? o que é o PIB ? Evolução da relação entre dívida externa pública e a dívida externa privada [gráfico] leitura do gráfico ? Financiamento da banca portuguesa pelo BCE [gráfico] leitura do gráfico ? Evolução e lucros das empresas privatizadas [gráficos - recapitalizações e investimentos antes da privatização - recapitalizações à custa dos contribuintes depois da privatização - lucros antes e depois da privatização - valor bolsista - montantes arrecadados com as privatizações - possíveis origens da má gestão das empresas nacionalizadas; investimentos bolsistas durante a gestão pública] leitura dos gráficos ? Dados sobre as PPP [gráficos - empresas PPP que correspondem a serviços sociais (responsabilidade do Estado) - capitais e prejuízos garantidos pelo Estado - lucros arrecadados pelo Estado e pelos privados nas PPP] leitura dos gráficos ? Investimento público e crédito privado no sector produtivo [gráficos - evolução do sector produtivo primário, secundário, etc.] leitura dos gráficos ? Anexo 2 Breves notas sobre a soberania alimentar [pedir ao Nuno Belchior?] Anexo 3 Contextos jurídicos Direitos humanos, PIDESC ? Dívida odiosa ? Constituição portuguesa Subordinação do interesse económico ao interesse público ? Soberania e protecção dos recursos naturais ?