ABUSO DE CONFIANÇA

DORME NA CAMA ACORDA NA LAMA . O FEMINISMO ACABOU?

tenho lido/ouvido/falado bastante com amigxs sobre violência sexual, física y simbólica, praticada contra mulheres em cenas libertárias.
violência sexual, assédio e estupro são temas que marcaram minha vida, e a de muitas amigas. a quase totalidade de mulheres que conheço não só passou por experiências sexuais indesejadas como teve a descoberta de sua sexualidade inaugurada por algum tipo de violação física (que quase sempre deixou resquícios traumáticos ao longo de nossas vidas).

essas ocorrências são tão usuais e freqüentes que fico espantada quando conheço alguém que não passou, por exemplo, por abuso na infância. e acho muito legal que possamos contar umas com as outras pra criar espaços seguros em que podemos, pelo menos, conversar sobre isso – nos fortalece, ajuda a dizer “não”, nos ajuda a localizar ou expressar nossa raiva, uma certa vergonha e o medo que temos quando não conseguimos dizer esse não, quando nosso não é ignorado.

(recentemente tenho pensado mais sobre isso, sobre o cara que, do outro lado – quando esse lado não é “em cima de você -, não é um cara genérico, um desconhecido que passa por você na rua e se sente no direito de fazer isso ou aquilo com seu corpo, ou com o corpo dele, de maneira a te intimidar, agredir, abusar. não é o estuprador sem nome, o que passa rápido por você na rua e passa a mão na sua bunda, o que, de dentro do carro, te chama disso ou daquilo. estou pensando no cara que tem um nome, que sai com a gente, que é amigo de outras amigas, que é militante ou toca numa banda. um ‘brother’, não um agressor. e mesmo assim é ele que se aproveita de quando você tá bêbada, ou cansada, ou de saia – entendendo isso como um sinal de que você quer trepar com ele, não importando o que você diga -. como é que esse cara consegue fazer isso com a gente e simplesmente continuar sua rotina no dia seguinte? como ele vai pra um ato, pra uma gig, pra uma reunião de coletivo, ou vai tomar uma cerveja e, no buteco, comenta com outros amigos (ou algumas amigas) sobre a noitada de ontem, depois de ter estuprado alguém?
como ele consegue tirar a roupa de uma pessoa que ficou pra dormir na casa dele porque tava muito cansada ou bêbada (e agora pode estar acordada e chorando) e porque confia nele, de alguma forma, e penetrá-la contra sua vontade, passar a mão nela, imobilizá-la, ignorar seus gritos ou apelos ou pedidos?

fico lembrando de quando as meninas íamos de saia pra ver umas bandas e não só estávamos sujeitas a dedadas (no mínimo), como também poderíamos
ser ‘xingadas’ de promíscuas (“vadia”, “galinha”, “puta”, “piranha”, “já comi”) porque estávamos lá com aquelas roupas. o problema sempre somos nós e nossas roupas. nós e nossos corpos. eles é que são óbvios e ficam marcados.

não é óbvio que tal cara seja um estuprador. ninguém se refere a ele como “o fulano que embebeda as minas e estupra elas depois”. muito em parte porque 1) além da mina e do cara, poucas pessoas vão saber disso e 2) isso nem é considerado estupro por muitos caras. é como se fosse a punição por estarmos de saia dormindo/bêbadas/cansadas/ali. no caso das meninas que gostam de beber essa punição é ainda mais exemplar, ela tem ares de castigo mesmo, já ouvi dois relatos de ocasiões diferentes sobre festas em que meninas bebiam, desmaiavam de bêbadas e eram SISTEMATICAMENTE ESTUPRADAS POR VÁRIOS CARAS. como se beber até cair, no caso das mulheres, fosse um convite explícito aos caras pra que façam fila e metam na gente enquanto estamos desacordadas, e depois ainda fiquem nos chamando de piranha pelas costas, com um ar de “ela mereceu”.

fico muito tempo pensando em como eles conversam sobre isso. se não sentem constrangimento nenhum. como nós temos nossas redes formais/informais/implícitas/explícitas de solidariedade feminina, eles terão espaços pra conversarem sobre esse tipo de coisa? eles conseguem conversar com alguém sem acoplar um ar de conquista sexual à coisa? eles dizem “fiz uma merda ontem”?

porque não é de um cara tosco que estou falando, é de um que não toma refrigerante porque boicota multinacional,
é um militante de uma luta por mundos em que caibam outros mundos, um cara que faz escolhas políticas bacanas. como ele lida com essa separação entre o que é privado e o que é público? por que caras que são legais em diversas instâncias continuam capazes de reproduzir os papéis mais cruéis do patriarcado? …
e esse tanto de reflexão me traz de volta ao segundo título do texto
)
tenho visto (e sentido também) o cansaço de muitas feministas (ou mulheres que militam contra o patriarcado mas acham o rótulo “feminista” inadequado). às vezes não temos mais disposição pra sermos chamadas de “radical” o tempo todo. “chatas”, “loucas”, “exageradas”. e nos cansamos de ignorar certas piadas, comentários e olhares em nome de uma convivência ok com algumas pessoas. isso significa que o feminismo acabou? está ultrapassado?

é admissível que uma cena que se diga libertária tenha espaços pra violência e abuso baseadas em uma idéia de que alguns corpos estão a serviço de outros? por que os discursos de liberação sexual não são acompanhados por práticas de libertação de papéis e comportamentos limitantes, exploradores, hierarquizantes, colonizadores?

ainda estou tentando lidar com meu próprio cansaço. e esse texto é isso mesmo, um amontoado de perguntas que não consigo responder.

GUERRILHA FEMINISTA

o que diabo a gente faz com um estuprador, por exemplo? aumentar as penas cada vez mais adianta? qual é a real eficácia disso? que tipo de punição seria interessante? medidas socio-educativas adiantam ou são mais interessantes?

Sobre essa pergunta: o feminismo acabou? Eu espero que não, claro.
E sobre esse cansaço de ser chamada de radical, não sei, sempre fico pensando no que significa essa ‘radicalidade, essa convivência ok com algumas pessoas’…

Oque ela significa em termos relacionais/ideológicos mesmo e como isso aparece…- que tipo de política do cotidiano é essa reconhecida como radical?
Pelo que voce fala aparece como um comentário necessariamente negativo associado ao exagero, histeria, etc etc etc. Isso é claro é o comentário do outro, do de fora, que eu como feminista posso concordar ou não. Posso colar ou não nesse comentário. Posso ficar cansada ou não.

Tb não estou apontando nenhuma resposta, mas acho que tem muita coisa a gente problematizada nessa batalha com o machismo. Até que ponto a gente se identifica mesmo com a histeria ou com o exagero, ou ainda, será que a gente se identifica mesmo ou é só um cansaço que vem da rejeição?
Nesse segundo ponto: o que a gente faz com o estuprador? Acho que a gente prende, pune, é claro.

Só que essa medida do sistema penal significa repressão e punição desse desejo. Porque o estuprador é um cara que deseja violentar alguém certo? E é também um cara que tem uma história de vida social, cultural e psicológica que levou a isso… porque, é claro, a gente não concebe que ele tem uma genética ‘da maldade’ nem do ‘machismo’ que fez ele fazer isso..rs.

Eu acho que tem ser punido mesmo. Ele, individualmente, sim. Mas, não dá pra ser só isso. Isso é um problema do sistema penal inteiro, das formas de punição individual, para um crime que é certo sentido coletivo, sustentado por uma cultura machista, por uma família que foi machista, por uma história de vida marcado por uma maneira machista de resolução de problemas.

Todo o sistem penal esta baseado no vigiar, punir (e excluir). E aí é um problemão mesmo.

Não sei se acredito em só soluções massivas. Colocar um bando de medidas socio-educativas e achar que resolve tb, porque o cara tb pode encarar isso só como uma punição. Mas, acho que ajuda, que é melhor, claro, que ficar só preso. E pode ser que ajude e não adiante em nada. Tem algo ali na relação entre ele e a mulher que tem ser problematizado pra ele.

Das soluções massivas, que não as individuais, que é ajudar mesmo na produção de uma cultura não machista, prá daqui sei lá a anos, ver isso diminuído.. nao sei.


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abuso de confianca
dorme na cama acorda na lama . o feminismo acabou?
tenho lido/ouvido/falado bastante com amigxs sobre violência sexual, física y simbólica, praticada contra mulheres em cenas libertárias. violência sexual, assédio e estupro são temas que marcaram minha vida, e a de muitas amigas. a quase totalidade de mulheres que conheço não só passou por experiências sexuais indesejadas como teve a descoberta de sua sexualidade inaugurada por algum tipo de violação física (que quase sempre deixou resquícios traumáticos ao longo de nossas vidas).
essas ocorrências são tão usuais e freqüentes que fico espantada quando conheço alguém que não passou, por exemplo, por abuso na infância. e acho muito legal que possamos contar umas com as outras pra criar espaços seguros em que podemos, pelo menos, conversar sobre isso – nos fortalece, ajuda a dizer “não”, nos ajuda a localizar ou expressar nossa raiva, uma certa vergonha e o medo que temos quando não conseguimos dizer esse não, quando nosso não é ignorado.
( recentemente tenho pensado mais sobre isso, sobre o cara que, do outro lado – quando esse lado não é “em cima de você -, não é um cara genérico, um desconhecido que passa por você na rua e se sente no direito de fazer isso ou aquilo com seu corpo, ou com o corpo dele, de maneira a te intimidar, agredir, abusar. não é o estuprador sem nome, o que passa rápido por você na rua e passa a mão na sua bunda, o que, de dentro do carro, te chama disso ou daquilo. estou pensando no cara que tem um nome, que sai com a gente, que é amigo de outras amigas, que é militante ou toca numa banda. um ‘brother’, não um agressor. e mesmo assim é ele que se aproveita de quando você tá bêbada, ou cansada, ou de saia – entendendo isso como um sinal de que você quer trepar com ele, não importando o que você diga -. como é que esse cara consegue fazer isso com a gente e simplesmente continuar sua rotina no dia seguinte? como ele vai pra um ato, pra uma gig, pra uma reunião de coletivo, ou vai tomar uma cerveja e, no buteco, comenta com outros amigos (ou algumas amigas) sobre a noitada de ontem, depois de ter estuprado alguém?
como ele consegue tirar a roupa de uma pessoa que ficou pra dormir na casa dele porque tava muito cansada ou bêbada (e agora pode estar acordada e chorando) e porque confia nele, de alguma forma, e penetrá-la contra sua vontade, passar a mão nela, imobilizá-la, ignorar seus gritos ou apelos ou pedidos?
fico lembrando de quando as meninas íamos de saia pra ver umas bandas e não só estávamos sujeitas a dedadas (no mínimo), como também poderíamos ser ‘xingadas’ de promíscuas (“vadia”, “galinha”, “puta”, “piranha”, “já comi”) porque estávamos lá com aquelas roupas. o problema sempre somos nós e nossas roupas. nós e nossos corpos. eles é que são óbvios e ficam marcados.
não é óbvio que tal cara seja um estuprador. ninguém se refere a ele como “o fulano que embebeda as minas e estupra elas depois”. muito em parte porque
1) além da mina e do cara, poucas pessoas vão saber disso e
2) isso nem é considerado estupro por muitos caras. é como se fosse a punição por estarmos de saia dormindo/bêbadas/cansadas/ali.
no caso das meninas que gostam de beber essa punição é ainda mais exemplar, ela tem ares de castigo mesmo, já ouvi dois relatos de ocasiões diferentes sobre festas em que meninas bebiam, desmaiavam de bêbadas e eram sistematicamente estupradas por vários caras. como se beber até cair, no caso das mulheres, fosse um convite explícito aos caras pra que façam fila e metam na gente enquanto estamos desacordadas, e depois ainda fiquem nos chamando de piranha pelas costas, com um ar de “ela mereceu”. fico muito tempo pensando em como eles conversam sobre isso. se não sentem constrangimento nenhum. como nós temos nossas redes formais/informais/implícitas/explícitas de solidariedade feminina, eles terão espaços pra conversarem sobre esse tipo de coisa? eles conseguem conversar com alguém sem acoplar um ar de conquista sexual à coisa? eles dizem “fiz uma merda ontem”? porque não é de um cara tosco que estou falando, é de um que não toma refrigerante porque boicota multinacional, é um militante de uma luta por mundos em que caibam outros mundos, um cara que faz escolhas políticas bacanas. como ele lida com essa separação entre o que é privado e o que é público? por que caras que são legais em diversas instâncias continuam capazes de reproduzir os papéis mais cruéis do patriarcado? … e esse tanto de reflexão me traz de volta ao segundo título do texto )
tenho visto (e sentido também) o cansaço de muitas feministas (ou mulheres que militam contra o patriarcado mas acham o rótulo “feminista” inadequado). às vezes não temos mais disposição pra sermos chamadas de “radical” o tempo todo. “chatas”, “loucas”, “exageradas”. e nos cansamos de ignorar certas piadas, comentários e olhares em nome de uma convivência ok com algumas pessoas. isso significa que o feminismo acabou? está ultrapassado?
é admissível que uma cena que se diga libertária tenha espaços pra violência e abuso baseadas em uma idéia de que alguns corpos estão a serviço de outros? por que os discursos de liberação sexual não são acompanhados por práticas de libertação de papéis e comportamentos limitantes, exploradores, hierarquizantes, colonizadores?
ainda estou tentando lidar com meu próprio cansaço. e esse texto é isso mesmo, um amontoado de perguntas que não consigo responder.
consenso
1.
primeiro vai pedir. depois vai tentar. depois vai forçar. finalmente, vai tomar.
saia preta blusa roxa ou calça preta blusa preta? tênis, tênis confortável pra dançar (mas também correr se eu precisar) perfume brinco brilho gel no cabelo? gel no cabelo, ‘definidor de cachos’.
ele diz que é seu amigo. você pensa que é seu amigo. você age como amiga, não quer ser chata mesmo dizendo não.
barulho suor uma luz branca irritante tontura cerveja! cerveja! cerveja, eu adoro cerveja! ele dança, chega perto, sorridente, displicência, finje desinteresse mas passando a língua na boca daquele jeito nojento você tenta parar de mexer o quadril de um jeito determinado pra ele não entender errado.
ele entende errado. só entende o que quer. não respeita o que você não quer. não te respeita.
mais cerveja! eu adoro cerveja, cerveja me deixa alegre, a música me deixa alegre, dançar me deixa alegre, meu corpo cheio & tão leve cada vez mais alegre cada vez mais perto mais preocupada meio tonta sem noção mas sem vontade, nenhuma vontade de ficar com ele, mas se eu der um beijo nele ele vai embora? elemedeixa quieta? ele vai atrásdeoutra?
não vai. não deixa. ele fica, continua, contra a parede agora você não pode dançar nem respirar direito a língua dele corre como uma mão sufocando um pescoço mas suaboca suorelha, a mão dele é como uma língua pegajosa dentro do seu decote, dentro do decote, decote? por que eu vim de decote?
você bebeu demais, ele também. ele quer vomitar. ele te pede pra ir lá fora com ele, pede ajuda porque tá passando mal. você pode aproveitar pra ir embora, mas se ele tiver mentindo, mas se for só uma desculpa pra ficar longe de olhos além dos seus, o que você vai fazer? ele também usando tênis bom pra correr.