MEDO DE GLITER – A VERSÃO MASCULINA DA AVERSÃO MACHULENTA ÀS BARATAS

sobre ação política, performance, gênero, sexualidade e corpos dissidentes da sexualidade normativa

Na segunda semana do mês nomeado para homenagear o primeiro imperador romano, no ponto do território brasileiro mais próximo a África, em um centro de captura e adestramento social, econômico, cultural, sexual e político do Estado, herdeiros da resistência afro e questionadores do império patriarcal sabotam um espaço chave de propagação e manutenção do regime heterossexista 1

Hã? Como assim? Que confusão!

Calma, a provocação acima é apenas para instigar uma reflexão a cerca das filosofias políticas que estão por trás das notícias veiculadas pelos meios de comunicação. Para quem entendeu o texto acima, já deve ter uma ideia de onde nos posicionamos e de que iremos defender. Mas… sobre o que é mesmo essa complicação toda aí?

Durante o I Seminário Internacional Desfazendo Gênero em Natal, sujeites dissidentes do regime heterossexista realizaram uma ação performática e bastante inusitada: invadiram o banheiro masculino do setor II da UFRN e lançaram uma granada sobre as ideias sexistas presente em nossa sociedade. Foram pichadas frases como “estado travesticida”, “sexo anal contra o capital”, “sou passiva mais meto bala”, “meu cu é laico”, entre outras, revelando um caráter que em nada se assemelha com o vandalismo inconsequente descrito pela INTER TV, afiliada da Rede Globo no RN, mas sim, ressoa gritos de “basta!” direcionados a violência machista.

É importante questionar os banheiros públicos como espaços políticos mantedores e difusores da política fascista de gênero aos nossos corpos. Imagine encontrar uma pessoa, de um gênero distinto ao seu, no mesmo banheiro. O estranhamento é automático e imediato. Porém, devemos lembrar que em espaços privados temos o costume de compartilhar o local.

A divisão dos banheiros se dá, sobretudo, pela noção de superioridade masculina e misoginia. É muito comum que os homens ao urinar deixem seus rastros pelo banheiro, afinal eles não foram educados pra limpar e sim suas mães, irmãs, companheiras e empregadas. As atividades de limpeza são geralmente atribuídas às mulheres, por serem vistas como inferiores às econômicas e produtivas, por exemplo. Também é importante frisar o risco de assédio ou estupro que uma mulher cis 2 corre ao entrar em um banheiro masculino, já que ela é vista como propriedade do homem e a violação de seu corpo inferiorizado é algo prazeroso para muitos machos.

Talvez o mais legal da ação deva ser a posterioridade, é interessante pensar como os “verdadeiros proprietários” irão se sentir ao utilizarem o local. Se sentirão ameaçados e incomodados e se assim se sentem é porque tem noção dos seus privilégios e dos poderes atribuídos pelo patriarcado. Banheiros sempre foram refúgios de bichas, que impossibilitadas de viver sua sexualidade, pelo heterocapitalismo 3, se esconderam atrás de portas, deixando suas preferências e telefones para contato. As cabines, já foram, pra muitos, o único espaço para experimentação do sexo, para sentir e compartilhar prazer, apesar de serem locais vulneráveis: palco de assassinatos, espaço de imposição de virilidade e cenário de uma prática que não renegava a apropriação machulenta e animalesca da sexualidade, além da fetichização do proibido, da margem, do gueto.

Ao que parece, é exatamente isto que as okupantes gritam. Um texto intitulado Medo de Gliter, mostra de forma poética e complexa uma narrativa que posiciona ainda mais a ação como ato político. Em uma parte do texto elas dizem “Porque o homem de verdade se treme de medo diante do não-homem que o perpassa. O homem de verdade é um animal acanhado, adestrado pelo seu dever-ser-homem, xerife de si, enjaulado em seus próprios privilégios, feliz em dar corpo à repetição das cadeias do cotidiano e covarde diante do que lhe outrifica” Cabe deixar claro que o homem citado aí não é apenas aquele heterossexual e sim aquele que reivindica sua identidade de macho.

Realizamos uma pequena entrevista com uma pessoa que esteve presente na organização e okupação do banheiro masculino da UFRN. Para preservarmos sua identidade a chamaremos de Bela Translésbixa:

Periódico La.M.A.: É possível compreender os banheiros sociais públicos como instituições políticas para a manutenção do heterossexismo. A partir disso, fica claro que okupar um espaço como esse, artisticamente, também é uma ação política. Qual foi o contexto vivenciado na universidade que permitiu esta ação tão original e inusitada?

Bela Translesbixa: Não é de hoje que a questão dos banheiros públicos, como tecnologias de normalização dos corpos, aparece para nos. Ainda no ano passado, uma transsexual foi agredida e ameaçada de morte por um funcionário da UFRN ao tentar acessar um banheiro feminino. Esse bafo gerou toda uma mobilização em torno da construção de banheiros unissex na universidade, mas que não rendeu muitos frutos – somente 1 banheiro desse tipo foi instalado, no DEARTE (local do bafo). No caso da Okupa Cu – como batizamos a okupaçao do banheiro masculino do Setor II -, quisemos repolitizar a questão de forma radical, numa ação direta que transformasse o banheiro ocupado numa zona pósgenero e sexodissidente, criando alem de um banheiro publico livre de opressão de gênero, um espaço de segurança e visibilização dos corpos postos em risco pelo regime heterocapitalista.

PLa.M.A.: Como os participantes do Desfazendo Gênero se posicionaram diante da ação? é possível dizer que houve coerência entre o discurso intelectual e a postura política?

BTLB: Quisemos nos aproveitar da brecha aberta pela realização do I Seminário Internacional Desfazendo Gênero na UFRN porque temíamos o isolamento, que poderia implicar numa repressão forte por parte da universidade. Assim, investimos na construção de uma rede de apoya mútua entre guerrilheiros, militantes e pesquisadores das políticas de corpo, gênero e sexualidade. Durante o evento, fomos visitados por muitas pessoas que, de forma mais ou menos intensa, contribuíram para a construção do nosso espaço.

PLa.M.A.: É comum que numa ação como essa, as pessoas envolvidas se sintam em êxtase, pode falar um pouquinho como foi a vivência na ação?

BTLB: Ah, o êxtase! E uma potencia política! Os primeiros momentos da okupa foram muito intensos: tivemos de lidar com dois grupos de seguranças e com um macho transtornado que tentou se infiltrar no nosso espaço. Estávamos a flor da pele. Mas depois de despistar os seguranças e de expulsar o macho, fizemos uma festa. Porque, como diz a frase do coletivo Mujeres Creando da Bolivia, “nuestra venganza es ser felices”. E nossas alegrias anormais deram o tom da okupaçao. Nossas festas foram espaços políticos de desconstrução dos corpos e produção de afetos dissidentes e em meio a tudo isso procuramos viabilizar debates politicamente necessários, mostras de filmes, ações performáticas nos corredores, reuniões de coletivos de empoderamento afeminado, etc…

PLa.M.A.: Para as pessoas trans * os banheiros estão muito longe de serem somente um espaço de excreção das necessidades fisiológicas, na verdade é um verdadeiro terror. Até onde a okupação do banheiro masculino do setor II da UFRN pode ser um ato contra as violências proferidas aos corpos trans?

BTLB: Sem dúvida uma das principais linhas de força que moveu nossa ação foi a das pessoas trans* como corpes vulnerabilazades pelo regime heterocapitalista. Assim é que um dos efeitos em nível institucional da nossa okupa foi a instalação efetiva do banheiro ocupado como banheiro pósgenero (unissex). Em nível molecular, também entendo como um efeito da okupa a desnaturalização do banheirão e o reconhecimento desses espaços como zonas de normalização e violência de gênero.

PLa.M.A.: Por fim queríamos agradecer e pedir que deixasse uma mensagem aqui pra gente:

BTLB: Gostaria, de dizer que já não precisamos de grandes massas numéricas e de grandes causas para fazermos nossa política; que já não precisamos esperar a revolução com suas grandes narrativas heroicas para agirmos. Afirmo aqui a possibilidade de agir como molécula e de perfurar o sistema que vige com uma parafernália de tecnologias pirateadas que abram linhas-de-fuga através das quais seja possível mirar outros corpos, outras políticas e outros mundos. Afirmo aqui a potencia do contaminação em lugar da conscientização; a potencia do desvio em lugar do tampão; potencia da energia erótica em lugar do recalque. E acredito que podemos começar por zonas muito locais, pequenos focos onde o poder atua, mas que, ao serem deslocados, deslocam todo o complexo da ordem. Por uma política das moléculas!

1 – A partir de Monique Wittig, as reflexões políticas mais contemporâneas sobre gênero e sexualidade, compreendem a heterossexualidade não como uma condição sexual e sim como um regime político, que se assenta na submissão e na apropriação das mulheres pelos homens. Uma prática que tem de ser imposta, administrada, organizada, divulgada e mantida à força.

2 – o termo cis é uma reivindicação do transfeminismo que objetiva questionar e desempoderar os gêneros e as sexualidades normativas, frente as categorizações subjugadoras do heterossexismo. Uma mulher cis é aquela que nasceu com vagina, aceita a imposição sexista assumindo o gênero feminino e colabora com o regime reproduzindo práticas heterossexuais.

3 – Heterocapitalismo é um conceito usado pelas Ludditas Sexxxuais. Afirma que o capitalismo, para desenvolver-se, necessitava de uma premissa heterossexual rígida, intolerante e totalitária. Utiliza, portanto, a heterossexualidade imposta, como estratégia imprescindível para a atingir uma sociedade de massas e criar um mercado consumidor significativo às pretensões, inicialmente, mercantis e posteriormente industriais.