POLIFONIA DOS DESEJOS

07/fev/2011

“Espero q vc saiba q vc não é a única q o fulano visita”.

Se fosse uma peça ou um roteiro escrito pela autora dessa mensagem, vinda do celular do fulano, a marcação provavelmente seria um “sinta raiva”. Minha reação, no entanto, foi uma risada tranquila, que entreteu momentanemente o ambiente de trabalho silencioso e ansioso pelo fim do expediente. Não, não ri nervosa ou debochadamente. Ri pela graça (ou desgraça) da ingenuidade das palavras, cuja autoria eu ainda não sabia. Sobre ser a única, sim, eu sabia não ser. E não queria ser.

Não acredito muito em relacionamentos monogâmicos. Acredito mais na polifonia dos desejos. Na possibilidade de corpos diferentes, de vozes destoantes, conversas multilíngues, línguas de vários gostos, cheiros diversos, mãos de vários toques. Com conchinha, sem conchinha, só sexo, mais conversa do que sexo, fazer sexo e calar, fazer sexo e conversar, e chorar, e gargalhar, e dormir, e ir embora, e beber coca-cola, e não lembrar direito, e querer apagar, e lembrar durante semana, mês, e funcionar de primeira, e funcionar só depois, e não funcionar nunca… Únicas vezes ou encontros continuados. O mundo é tão grande pra gente experimentar tão pouco.

Claro que quando nos apaixonamos, as vozes se calam um pouco. Mesmo com um acordo poligâmico mútuo, o interesse por outros cheiros, toques e gostos diminui, mas ainda assim existe. Passei quase três anos num relacionamento aberto, de onde vazava uma paixão doida, três ou quatro meses depois escorria também amor, num ritmo de intimidade de se fazer perder, planejando o futuro, velhinhos numa casa de campo, preservando as nossas escapadas permitidas.

Não gostávamos da palavra namoro justamente por ela trazer o peso da posse. E não éramos um do outro. Queríamos ser livres e a liberdade nos fazia querer estar juntos. Éramos companheiros. O termo namorados só se tornou um pouco menos indigesto quando uma professora (que era a fim dele; pena que ele não) lembrou para nós dois, depois de uma aula, o significado em amor que a palavra carrega. Mesmo assim, deve dar pra contar nos dedos de uma mão as vezes que nos referimos ao outro como namorado(a).

As pessoas costumam me perguntar se o fim teve a ver com a poligamia. Não. Teve a ver com a distância. No segundo ano, ele se mudou de cidade, e por mais que a gente se visse umas três vezes por mês, às vezes mais, nunca menos, o lance foi se perdendo em brigas que só existiam à distância.

Antes nos víamos todos os dias e resolvíamos eventuais incômodos, com palavras e carícias e poucos cascos, coisas impossíveis de se fazer por telefone e internet, esses manetas insensíveis.

Outra pergunta que sempre fazem: mas não existia ciúme? Claro que sim. Onde existe humano existe cerca ou vontade dela. Mas existia também a vontade de não sentir e a enorme abertura que nos dávamos para conversar sobre. O acordo poligâmico estava sempre em versão beta.

De início, a única regra era experimentar outras pessoas, depois podíamos ficar com outros quando longe dos olhos em amor e por fim, podíamos ficar, sem se envolver com outras pessoas. Mas quebramos todas as regras consentidamente, pelo menos uma vez. E apesar dos momentos difíceis (sim, claro que eles existiram), se uma paixão surgisse agora, eu repetiria toda essa sensação de liberdade, de amor e amizade. Acredite, é muito menos pesado do que esse desespero de ter de fincar cerca e cuidar da sua propriedade privada.

Por isso, sim, eu sabia, talvez antes de você, que não sou a única. Raras vezes somos a única. Não quero ser a única, não quero só um. A não ser que único se refira à qualidade e não quantidade… Espero que você consiga um dia abrir as cercas e contribuir para um mundo mais bonito.