Essa coisa de “não me considero mulher”, até entendo quando é um posicionamento lésbico frente a um heterofeminismo, um posicionamento separatista. Mas fora isso, acho muito fácil lavar as mãos desse jeito, se desentendendo duma categoria política. Eu acho que o queer serve como um armário político. Se recusar a reconhecer uma realidade política, “sou mulher porque decido ser parte de uma resistência”, parece com uma deserção a um coletivo de resistência, e é muito fácil se iludir com isso.
Me critiquem se estiver errada, mas acho meio parecido com quem diz que não é negrx. Existe todo um esforço do movimento negro para conscientizar as pessoas a se reivindicarem negras, porque num sistema racista é difícil alguém querer se identificar como negrx e com outres negrxs. Daí que as feministas dos 70 e lésbicas diziam, ‘a mulher que se identifica com a mulher’. Ela se reconhece mulher porque se reconhece POLITICAMENTE como uma, não é um ‘essencialismo’, é celebrar espaços exclusivos simbolicos e políticos, onde estamos recriando os sentidos disso, de ser lésbica, de ser mulher.
Eu entendo que não seja extremamente gostoso ser mulher ou se reconhecer como uma num patriarcado, pra mim não foi fácil recuperar uma auto-estima de ter esse corpo, de ter essa história, somos destruídas desde que nos ‘diagnosticam’ mulher.Somos todas sobreviventes. Mas mais que sobreviventes (que nem acho uma palavra tão empoderadora), somos GUERREIRAS. (prefiro reivindicar e ‘se’ ver como guerreira que como ‘sobrevivente’).
Se reconhecer como mulher é tomar parte numa luta. Não falo de se reconhecer enquanto mulher, mulher enquanto ‘gênero’. É mulher enquanto classe política. Porque entendo que enquanto representação de gênero, nenhuma de nós se identifica ou quer se identificar, ou se reconhece nesse mulher enquanto ‘identidade de gênero’. Ok, tem quem se adaptou mais, isso seria considerado um ‘privilégio’ (privilégio femme), mas não sei quanto isso de considerar um privilégio não apaga as maneiras perversas pelas quais se força (existe coerção, existe, onde há Poder há coerção, ninguém se torna feminina porque deseja, existe violência, existe condicionamento, existe ameaça de retirar os bens que a pessoa precisa, por isso FEMINILIDADE É SINDROME DE ESTOCOLMO COLETIVA). A palavra privilégio feminino ou cis acusa um voluntarismo bizarro nessa socialização, que seria pra mim muito liberal e culpabilizador da vítima. Sabe, precisamos reconhecer que HÁ VÍTIMIZAÇÃO. O Pós-modernismo instalou um horror a essa palavra, pra instalar o liberalismo que culpabiliza e separa, as que são derrotadas, e as que são fortes. Não há tal coisa. Há níveis muito sutis, diversos, e vários por quais houve e há resistência pessoal e coletiva. Não apaguemos a herstória das mulheres denovo, já foi super difícil recuperá-la e isso só invisibiliza mais.

Se há femmes, se há caminhonheiras, se há transhomens, se há bichas e travestis, isso acusa as maneiras diversas pelas quais existe resistência, onde se tenta negociar frente ao agressor, frente a ameaça de sobrevivência e da própria vida e da manutenção pessoal, como seguir viva e como instalar espaços de subjetividade em meio ao terrorismo doméstico e institucional. Existe vontade de potência em toda subjetividade, a feminilidade não é somente uma obediência extrema. Com isso não quero apagar colaboração. Mas coloquemos colaboracionismo em contexto de terrorismo sexual por favor. Na invasão das tropas estadunidenses no Iraque, as meninas são estupradas e abusadas pelos soldados. Isso desenvolveu um sistema de ‘sexo por sobrevivência’, as pessoas sob ocupação tem sexo com os ocupantes. Se forem ler Andrea Dworkin verão que não é diferente do que ocorre nas democracias ocidentais o que seriam as relações heterossexuais em sua conjuntura mais ampla.

Não quero apagar que existe cumplicidade, que existe quem não tome parte na resistência consciente.

Mulher enquanto identidade de gênero tem que ser destruída, gênero tem que ser destruído. Quem se identifica mais e está mais cômoda nessa identidade de gênero fomentada em nós por um heteropatriarcado de repente possui alguns níveis de ‘facilidade’ num sistema que admite quem obedece ou está de acordo, mas preferia falar em facilidade ou benefícios que em privilégios sendo que isso apaga quão perverso e violento, mutilatório é esse treinamento da feminilidade.

As pessoas acham que o que é opressivo sobre o gênero é que ele é binário, ou seja, querem ‘multiplos generos’. O que é opressivo sobre gênero não é que sejam somente dois, mas que ele é um instrumento de dominação em si. as pessoas perderam de vista que a produção das categorias homem e mulher existiu para poder explorar uma classe de pessoas, e não porque um sistema aleatoriamente, tal qual um deus, abstrato, desejou limitar o devir das pessoas. Esse é um aspecto do que é opressivo sobre gênero, mas é o mais mínimo de todos. Muito privilegiado considerar que gênero só é opressivo porque limita liberdade de ser. Ele mata pessoas, ele destrói vidas, ele coloniza grupos inteiros, ele estupra, ele genocida, ele mutila, aniquila.

“Gênero não é binário. É uma hierarquia. É global em seu alcance, é sádico em sua prática e é assassino em sua realização. Assim como raça e assim como classe. Gênero demarca as fronteiras geopolíticas do patriarcado – o que é dizer, ele nos divide ao meio. Essa metade não é horizontal, é vertical. E caso você tenha perdido essa parte, homens estão sempre no topo” Lierre Keith

Caso esteja perdendo algum ponto me critiquem por favor.