Retorno ao gênero: o pós-modernismo e a teoria lésbica-e-gay

Sheila Jeffreys

Nos anos 80, produziu-se um repentino entusiasmo pela obra dos Mestres do pós-modernismo- Foucault, Lacan e Derrida – seguido de sua incorporação à teoria feminista. Algumas críticas feministas sinalizaram que esse fato causou certa despolitização do feminismo. No campo da teoria gay e lésbica, a obra das grandes figuras masculinas do pós-modernismo, assim como a de outros teóricos inspirados neles, tem sido recebida com ainda mais entusiasmo. Não deveria ser surpreendente que a chamada teoria lésbica-e-gay, a saber, aquela que homogeneíza lésbicas e homens gays, se mostre tão atrativa aos olhos desses últimos. Tudo que remeta de forma demasiadamente explícita ao feminismo é contemplado com suspeita. No momento atual, o projeto de elaborar uma teoria lésbica independente aparece como uma empresa extravagantemente separatista. As estrelas da nova teoria lésbica-e-gay, Judith Butler e Diana Fuss, ambas mulheres, se dedicam a reciclar um feminismo fundamentado nos Mestres pós-modernos – na sua maioria gays – que no fira a sensibilidade dos gays. Não é uma tarefa fácil. Como conseguir, por exemplo, que o fenômeno do travestismo seja considerado não apenas aceitável, mas também revolucionário para a teoria lésbica-e-gay, quando sempre havia sido um tema sumariamente controverso para a teoria feminista desde que as lésbicas se distanciaram do movimento de liberação gay? Isso só é alcançável pelo retorno ao gênero, pela invenção de uma versão inofensiva do gênero, com a qual as lésbicas e os gays possam jogar eternamente e serem revolucionários ao mesmo tempo.

A versão de gênero introduzida pela teoria lésbica-e-gay é muito distinta do conceito de gênero das teóricas feministas. Trata-se de um gênero despolitizado, asséptico e de difícil associação com a violência sexual, a desigualdade econômica e as vítimas mortais de abortos clandestinos. Aqueles que se consideram muito distantes dos escabrosos detalhes da opressão das mulheres redescobriram o gênero como jogo. E essa perspectiva é bem recebida no mundo da teoria lésbica-e-gay porque apresenta o feminismo como uma diversão, e não como um desafio irritante. Uma análise preliminar de quem são esses novos porta-vozes da teoria lésbica-e-gay pode nos ajudar a entender a razão da escolha dessa política em concreto. Enquanto as destacadas feministas dos 70 faziam sua formação profissional em ciências políticas, história e sociologia, essa nova variante procede dos estudos literários e culturais, assim como dos estudos fílmicos. Temos, por exemplo, o livro compilado por Diana Fuss, Inside/Out. Lesbian Theories, Gay Theories. Judith Butler exerce a docência em um Centro de Humanidades e, por consequência, não pertence necessariamente ao campo da crítica cultural. As outras dezoito autoras procedem do campo da literatura, dos meios de comunicação, dos estudos fílmicos, da fotografia e da historia da arte. Não há razão para que uma crítica de arte não possa realizar contribuições valiosas ao desenvolvimento da teoria política; entretanto, talvez seja um sinal preocupante que tudo o que a nova geração de alunas e professoras lésbicas e alunos e professores gays chamam de “teoria” venha do mundo das artes e não das ciências sociais. Talvez isso explique o fato de que nessa nova teoria não há lugar para o antiquado tema das autenticas relações de poder, nem tampouco para a economia ou para uma forma de poder que não simplesmente flui, mas que se encontra nas mãos de classes e elites determinadas. A teoria pós-moderna outorgou um lugar preeminente à linguagem dentro do político: a palavra se tornou realidade e o crítico cultural se converteu em ativista político, soltando a pena enquanto a dona de casa maltratada por seu marido por esquecer uma teia de aranha em um canto da sala se torna extremamente invisível. Atentemo-nos agora às autoridades citadas pela nova teoria lésbica-e-gay. Nas notas da sua introdução, Diana Fuss cita Judith Butler, Derrida em várias ocasiões, Foucault, nove homens e duas mulheres. O que é bastante surpreendente, levando em conta o importante corpus de teoria lésbica-feminista original que poderia servir de fonte de inspiração; mas essas obras não existem para a nova teoria lésbica-e-gay. Não há referencias a Mary Daly, Audre Lorde, Janice Raymond, Julia Penelope, Sarah Hoagland ou Charlotte Bunch. Desapareceram com as separatistas de pensamento que advogam por uma teoria lésbica na qual os homens gays não tem lugar. A raiz do problema de gênero para a nova teoria lésbica-e-gay se encontra na ideia de predomínio da linguagem e das oposições binárias que procede de Lacan e Derriba. A linguagem adquire uma importância sem par. Enquanto outras feministas consideram a linguagem um fator importante, que faz parte de um panorama composto por outras forças opressoras que perpetuam a opressão das mulheres – as restrições econômicas, a violência exercida pelos homens, a instituição da heterossexualidade -, para as novas defensoras pós-modernas da teoria lésbica-e-gay a linguagem se converte em um assunto primordial. A linguagem atua através da construção de falsas oposições binárias que controlas misteriosamente a maneira de pensar e, consequentemente, de agir. Um desses binômios – masculino/feminino – é o mais crucial para a opressão das mulheres, assim como para a das lésbicas e gays. A feminista pós-moderna exclui os homens de sua análise. O poder se converte, em sentido foucaultiano, em algo que navega por aí em perpétua reconstituição, sem sentido real e sem conexão alguma com pessoas reais. Consequentemente, Judith Butler associa o poder a certos “regimes”, afirmando que “os regimes de poder do heterossexismo e do falocentrismo perseguem seu próprio crescimento por meio de uma constante repetição de sua própria lógica”. Em outro lugar, antropomorfiza a heterossexualidade:

O fato de que a heterossexualidade está em contínuo processo de auto-interpretação é prova de que se encontra em perigo constante: “sabe” da possibilidade de que desapareça.

Uma heterossexualidade com tese de doutorado! Normalmente, uma analise feminista questionaria em interesse de quem ou de que se constituem esses regimes, e a pergunta, por sua finalidade, não pareceria estar fora de lugar. E aí os homens voltariam a aparecer.

O conceito de gênero que utiliza Butler se encontra igualmente distanciado de todo contexto que envolva relações de poder. O gênero da repetida estilização do corpo, uma serie de atos repetidos dentro de um marco regulador altamente rígido, que com o tempo se cristalizam e criam a aparência de uma substancia ou de uma existência natural. Em outra parte do livro, afirma que “o gênero é uma forma de travestismo (drag)”. Dessa forma, o gênero significa uma maneira de sustentar o corpo, uma atuação, uma aparência, e não é surpreendente que a conclusão de Butler seja de que todas as formas de intercambio genérico, como o travestismo e os jogos de papeis entre as lésbicas, são atos revolucionários. Nesse enredado, não fica claro onde se encaixa a vulgar e verdadeira opressão das mulheres. Se um homem cruel maltrata a mulher com a qual vive, é porque ela adotou o gênero feminino em sua aparência externa? Ela solucionaria sua situação se durante um dia adotasse o gênero masculino, se aparecesse vestida com uma camisa social e sapatos de couro? Quando o gênero se converte em ideia ou em aparência, a opressão das mulheres efetivamente desaparece. Algumas teóricas feministas radicais ressaltaram que a ideia de gênero tende a ocultar as relações de poder do sistema de supremacia masculina. O conceito de gênero sempre foi bem aceito pelas feministas liberais e socialistas e, mais recentemente, também pelas pós-modernas. No passado, quando as teóricas feministas de qualquer ideologia política se referiam ao gênero, sempre o entendiam como algo que pode ser superado ou subtraído. Tanto as feministas heterossexuais como as lésbicas se sentiam insultadas quando eram chamadas de femininas ou masculinas. Consideravam-se – e muitas seguem se considerando – conscientemente contrárias ao gênero e não queriam nenhum trato com este, resistindo a representas qualquer um deles. Algumas escolheram a via da androginia; entretanto, as teóricas feministas radicais apontaram as limitações dessa aproximação. A ideia da androginia se apoia na perpetuação dos conceitos de masculino e feminino: é uma suposta combinação das características de ambos e, por consequência, os reifica antes de abandoná-los. Durante mais de vinte anos as feministas e feministas lésbicas trataram de rebater o gênero, se negando a atuar de acordo com suas regras; na atualidade, algumas pós-modernas tem qualificado esse projeto não apenas de malsucedido, como também inalcançável. Dentro da teoria feminista, Butler chama de movimento “pró-sexualidade” aquele que sustenta que a sexualidade “se constrói sempre em termos de discurso e poder, entendendo parcialmente o poder como certas convenções culturais heterossexuais e fálicas”. Corrobora com essa definição e afirma que é impossível construir uma sexualidade que esteja à margem dessas convenções: se a sexualidade é uma construção cultural dentro das relações de poder existentes, o postulado de uma sexualidade normativa “antes”, “às margens” ou “à revelia” do poder representa uma impossibilidade cultural e um sonho politicamente inviável, que atrasa a missão concreta e atual de repensar todas as possibilidades subversivas, para a sexualidade e para a identidade, dentro dos próprios termos do poder. O feminismo, na sua acepção habitual, tem sido considerado impossível. A teoria pós-moderna é utilizada para apoiar o projeto libertário sexual e, mais concretamente, o sadomasoquista. A maioria das feministas dos 70 e dos 80 lutou a favor da eliminação do gênero e da sexualidade falocentrica. Tratamos de criar algo novo e distinto. E agora descobrimos que perseguíamos algo impossível. Minhas jovens alunas lésbicas me dizem “não há dúvida de que o gênero está presente nas relações”. Não são conscientes de que com esse comentário ofensivo invalidam vinte anos de luta das feministas lésbicas contra essa situação. É quase tão frustrante como quando, recém iniciada no feminismo, os homens tentavam me ensinar sobre o caráter “natural” da feminilidade e da masculinidade. Os homens já não falam assim, agora o fazem as pós-modernas e os pós-modernos. Essas alunas assumem, em consequência de seu consumo de leituras teóricas pós-modernas, a impossibilidade de evadir do gênero. Segundo Derrida, não se pode escapar a uma oposição binária, somente dar maior peso à parte mais débil, provocando pressões e tensões. Quem pretende evitar o binário é tachada de essencialista. O termo “essencialista” adquiriu um significado totalmente distinto e é empregado para denotar as que conservam certa convicção na possibilidade de uma ação social para conseguir uma mudança social. Tempos atrás talvez soubéssemos o que era o essencialismo, uma vez que sinalava a convicção de que homens e mulheres eram separados por uma diferença natural e biológica. As feministas radicais, eternas missioneiras do construcionismo social, discrepavam dessa convicção, ainda que certas teóricas feministas de outras tendências finjam o contrario. A feminista pós-moderna Chris Weesdon insiste, nos seus escritos, na desconcertante afirmação de que as feministas radicais empenhadas em transformar a sexualidade masculina em interesse da liberação das mulheres são, na realidade, deterministas biológicas convencidas da impossibilidade de qualquer tipo de mudança. O que agora se denomina “essencialismo” é a convicção das lésbicas de poderem evitar o estereótipo de gênero, ou da possibilidade de praticar uma sexualidade que não se organiza em torno ao penis ou algum desequilíbrio de poder. O pós-modernismo chama essa convicção de essencialista por confiar na existência de uma essência incognoscível do lesbianismo. Todo o conhecido, o pensado, está baseado no gênero e no falocentrismo e o sistema só pode ser modificado através do desempenho de caminhos alternativos, mas dentro de seus próprios termos. Também puderam, talvez com mais razão, inverter o jogo, acusando de essencialistas aquelas que asseguram que as lésbicas não podem escapar do gênero ou do falocentrismo. Entretanto, queria evitar a invenção e o lançamento de novas versões essencialistas. Basta dizer que a ideia do caráter inevitável do gênero e do falocentrismo me parece uma visão brutalmente determinista e pessimista, que consegue eliminar o projeto feminista dos últimos vinte anos. Concorda com a tendência geral do pós-modernismo de considerar a m

ilitância política e a convicção na viabilidade de uma mudança política como uma atitude suspeitável, ridícula ou até mesmo vulgar.

Agora, atentemo-nos no que Butler entende como o potencial revolucionário do travestismo. A construção social do gênero é um velho principio fundamental do feminismo. Não obstante, da mesma maneira que outras descobertas feministas tradicionais e tremendamente manuseadas, parece novo e fascinante aos olhos das seguidoras do pós-modernismo. E, efetivamente, é possível que o seja para toda uma nova geração de mulheres jovens que não tiveram e não tem acesso à literatura feminista dos sessenta e dos setenta, uma vez que essa não aparece nas referencias bibliográficas dos seus cursos. Butler afirma que o potencial revolucionário do travestismo e dos jogos de papéis consiste na capacidade dessas práticas de ilustrarem a construção social do gênero, “descobrindo” que o gênero não possui nenhuma essência ou forma ideal, mas apenas um disfarce (drag) utilizado tanto por mulheres heterossexuais quanto por homens heterossexuais, tanto por lésbicas que “desempenham papéis” como por travestis gays sobre palcos.

O travestismo é uma forma trivial de se apropriar, teatralizar, usar e praticar os gêneros; toda divisão genérica supõe uma imitação e uma aproximação. Se isso está correto – e parece estar -, não existe nenhum gênero original ou primário que o travestismo imite, e sim o gênero é uma imitação para a qual não há original algum.

O gênero, entendido como gestos, ação e aparecencia, pode, efetivamente, ser considerado um disfarce, travestismo ou, nas palavras da Butler, “representação” (performance). Ao seu modo de ver, a “representação” demonstra a ausência de um “sexo interno ou essência ou centro psíquico de gênero”. Como essa suposta estratégia revolucionaria pode traduzir-se em mudanças? Não fica totalmente claro.

Como, pois…, utilizar o gênero, em si mesmo uma invenção inevitável, para inventar o gênero em termos que denunciem toda pretensão de origem, de verdade ou real como nada mais que efeitos do disfarce, cujo potencial subversivo deve ser praticado uma e outra vez, para que assim possam converter o “sexo” do gênero no lugar de um jogo político pertinaz?

O público que assiste à função do travestismo de gênero deve se dar conta de que o gênero não é nem “real” e nem “verdadeiro”. Mas, depois de dar-se conta, o que mais devem fazer? Ao acabar a função do travestismo, as mulheres e os homens heterossexuais voltarão para casa correndo para desfazer-se do gênero e dizer aos seus cônjuges que não existem tais coisas como a masculinidade e a feminilidade? Não parece muito provável. Se o gênero fosse de fato apenas uma ideia, se a supremacia masculina se perpetuasse somente porque as luzinhas nas cabeças dos homens e das mulheres sobre o erro que é o gênero ainda não foram de todo acendidas, então a estratégia de Butler poderia ter algum tipo de êxito. No entanto, sua concepção da opressão das mulheres é liberal e idealista. A supremacia máscula não se perpetua somente pelo fato de que as pessoas não percebem a construção social do gênero ou por uma desgraçada equivocação que devemos de alguma maneira corrigir. Se perpetua porque serve aos interesses dos homens. Não há razão para que os homens tenham que abrir mao de todas as vantagens econômicas, sexuais e emocionais que lhes oferece o sistema de supremacia masculina, só para que possam vestir-se com saias. Do outro lado, a opressão das mulheres não só é constituída pela obrigação em maquiar-nos. A imagem de um homem com saia ou de uma mulher de gravata não basta para liberar uma mulher de sua relação heterossexual, enquanto o abandono da opressão pode causar-lhe sofrimento social, econômico e provavelmente até mesmo físico, e em algumas ocasiões a perda de sua vida.

Segundo as defensoras dos jogos de gênero, o potencial revolucionário reside não apenas na adoção de um gênero de aparência inadequado, a saber, a feminilidade por parte de um homem ou a masculinidade por parte de uma mulher. Parece ser que também a representação do gênero previsto pode ser revolucionaria. Faz tempo que essa ideia tem estado presente na teoria gay masculina. Os gays que tem descrito o fenômeno do homem clónico vestido de coro dos 70 não fecharam acordo sobre o papel revolucionário desse fenômeno. Muitos teóricos gays mostraram seu incomodo, coisa bastante compreensível. Ao seu entender, o modelo viril dos gays traía os princípios da liberação gay, que tratava de destruir os estereótipos de gênero, considerando a masculinidade como um conceito opressivo para as mulheres. Outros autores ressaltaram o caráter revolucionário do tipo masculino gay pelo seu questionamento do estereotipo gay afeminado. Por outra parte, também sinalizaram que o potencial revolucionário do gay masculinizado pode permanecer invisível, uma vez que o espectador desatento não o reconhece como gay, mas o toma simplesmente por masculino. De que maneira deveria saber-lo? O argumento do caráter politicamente progressista da masculinidade utilizado pelos homens gays parece, por último, uma simples maneira de justificar algo que certos gays desejam ou que os atrai. A aprovação se inventa depois do fato, talvez porque alguns gays se deram conta do caráter retrogrado da pose masculina que adotavam para “se camuflarem”, se sentirem poderosos ou sexualmente atrativos. Necessitavam justificar-se.

O retorno ao gênero produzido na comunidade dos homens gays a partir de finais dos 70, em termos de um renovado entusiasmo pelos espetáculos de travestismo e por um novo estilo viril, aparece na comunidade lésbica muito mais tarde. Somente nos anos 80 começamos a observar um retorno ao gênero entre as lésbicas, com a reabilitação dos jogos de papéis e a aparição das lésbicas “de carmim”. As ideias das obras dos Mestres pós-modernos se mostraram sumamente convenientes porque constituíam uma justificativa intelectual e permitiam anular e ridicularizar, desde a academia, qualquer objeção feminista. Em Gender Trouble, Judith Butler demonstrou que a psicanálise de “antigamente”, representada por um trabalho de Joan Riviere de 1929, somado a algumas declarações de Lacan sobre a feminilidade como mascarada e paródia, podem ser utilizadas pelas novas teóricas lésbicas e gays procedentes dos estudos culturais em defesa da representação da feminilidade pelas lesbianas como uma estratégia política. Em outro lugar essa representação é chamada “mimetismo”, ainda que essa palavra não se adeque à análise de Butler, dado que sugere a existência de um original que é mimetizado e, de fato, ela não o utiliza. Carol-Anne Tyler explica a ideia do mimetismo da seguinte maneira, recorrendo a Luce Irigaray:

Segundo Irigaray, mimetizar significa “assumir o papel feminino de propósito (…) para fazer visível, através de um jogo de repetições, algo que deve permanecer invisível”. Representar o feminino significa “dizer-lo” com ironia, entre aspas… como hipérbole… ou como paródia (…). No mimetismo e também no campo, a ideologia se “faz” com a finalidade de se desfazer, e assim agregar novos conhecimentos: que o gênero e a orientação heterossexual que deve assegurar-lo são antinaturais e inclusive opressivos.

Entretanto, Tyler critica essa ideia. Afirma que se todo gênero é uma mascara, é impossível distinguir a paródia do “real”. O real não existe. Dessa maneira, o potencial revolucionário se perde.

A ideia do mimetismo esta presente no elogio que algumas criticas culturais fazem de Madonna. Afirmam que Madonna acaba com a ideia de rigidez e autenticidade do gênero, ao assumir a feminilidade como representação. O mimetismo requer a exageração do papel feminino assumido. Ao que parece, é assim que as espectadoras inexpertas devem reconhecer que estão diante de uma estratégia revolucionaria. O excesso de maquiagem ou da altura dos saltos indicaria que o gênero é entendido como representação. Cherry Smyth, nome conhecido da política queer, aponta em uma resenha sobre a obra da fotografa lésbica Della Grace que a indumentária feminina tradicional pode ter um efeito revolucionário:

Na realidade, parte da iconografia foi inspirada nas e na moda pós-punk, o que confere uma autonomia violenta à elegância femme, e converte o fato de levar mini-saia e de exibir o corpo em um gesto conscientemente antiestético e intimidatório, antes que vulnerável e submisso.

A encarnação por excelência desse estilo é, segundo Smyth, “a própria Madonna, provavelmente um dos exemplos mais famosos da transgressão queer”. As teóricas feministas que não são nem queer e nem pós-modernas tem grandes dificuldades para apreciar a transgressão da Madonna contra outra coisa que não seja o feminismo, o antirracismo e política progressista em geral. A teórica feminista estadunidense negra bell hooks aponta que Madonna não denuncia as regras da supremacia masculina branca, mas as acata e explora. Segundo hooks, as mulheres negras não podem interpretar o loiro dos cabelos de Madonna como uma “simples escolha estética”, mas que para elas isso nasce da supremacia branca e do racismo. A autora entende que Madonna utiliza sua “condição de marginal” em Truth or Dare: In Bed With Madonna com o propósito de “colonizar e apropriar-se da experiência negra para seus próprios fins oportunistas, ainda que trate de disfarçar de afirmativas suas agressões racistas”. Aponta que, quando Madonna utiliza o tema da garota inocente que se atreve a ser má, “se apoia no mito sexual racista/sexista incessantemente reproduzido, segundo o qual as mulheres negras não são inocentes e nem chegariam a sê-lo, jamais”. Hooks começa seu artigo com uma citação de Susan Bordo que sinala que o “potencial desestabilizador” de um texto só pode ser medido em relação à “prática social real”. Se acatamos o “potencial desestabilizador” do mimetismo segundo essa perspectiva, descobrimos numerosos exemplos em nosso entorno – nos meios de transporte publico, nas festas do escritório, nos restaurantes – nos quais as mulheres adotam uma feminilidade exagerada. É difícil distinguir entre a feminilidade irreflexiva e corrente, e a sofisticada feminilidade como mascarada. Aqui também encontramos certo esnobismo. Mulheres que levam vestimentas muito parecidas são julgadas com critérios distintos, sendo elas antiquadas e ignorantes ou tendo cursado estudos culturais, lido Lacan e tomado a decisão deliberada e revolucionaria de colocar um body. Por que tanta agitação sobre esse tema? É difícil acreditar que as teóricas lésbicas pós-modernas realmente entendam o mimetismo e os jogos de papeis como uma estratégia revolucionaria. No entanto, a teoria permite que as mulheres que queiram usar o fetichismo do gênero para seus próprios fins, sejam eles de índole erótica ou simplesmente tradicional, o façam com um petulante sentido de superioridade política. Parece divertido jogar com o gênero e com toda a parafernália tradicional de domínio e submissão, poder e impotência, que o sistema de supremacia política cria. Se a maquiagem e os sapatos de salto agulha representavam dor, gastos, vulnerabilidade e falta de auto-estima para a geração de mulheres que se criaram na década dos 60, a nova geração de jovens nos informa que essas coisas são maravilhosas, uma vez que se tratam de escolhas. Essa nova geração se pergunta incrédula como podemos nos divertir sem depilarmos as sobrancelhas ou as pernas. Enquanto isso, a construção de gênero parece incontestada. Estamos diante do fenômeno da participação de certas lésbicas na tarefa de reforó da fachada da feminilidade. Houve um tempo em que as feministas lésbicas apareciam em público ou na televisão vestidas de uma maneira que escapava deliberadamente do modelo feminino, como uma estratégia de conscientização. Acreditávamos que, dessa forma, mostrávamos às mulheres uma possível alternativa ao modelo feminino. Atualmente, todas as parodistas, mimetistas e artistas de performance nos dizem que o sistema da supremacia masculina sofrerá uma maior desestabilização se uma lésbica se vestir da mesma maneira que uma mulher heterossexual extremamente feminina. É difícil saber por que. As mais desestabilizadas são, muito provavelmente, as feministas e as lésbicas, que se sentem totalmente desarmadas e inclusive humilhadas por uma lésbica que demonstra e proclama que também quer ser feminina. Além do retorno ao gênero, há outro aspecto do enfoque pós-moderno dos estudos lésbicos-e-gays que não parece constituir uma estratégia revolucionaria realmente útil. Trata-se da incerteza radical em respeito às identidades lésbica e gay. Tanto os teóricos como as teóricas adotam uma postura de incerteza radical. Para os incipientes movimentos lésbico e gay dos 70, nomear e criar uma identidade eram princípios políticos fundamentais. Nomear tinha uma importância especial para as feministas lésbicas conscientes de como as mulheres desapareciam normalmente da historia, da academia e dos arquivos, ao perder seu nome quando se casavam. Éramos conscientes da importância de fazermo-nos visíveis e de lutar por permanecer visíveis. A adoção e a promoção da palavra “lésbica” eram fundamentais, uma vez que estabeleciam uma identidade lésbica independente dos homens gays. Por conta disso, s feministas lésbicas do mundo ocidental intentavam preencher essa identidade de sentido. Estávamos construindo uma identidade política consciente. As feministas lésbicas sempre defenderam um enfoque construcionista social radical para o lesbianismo. Por meio de poemas, trabalhos teóricos, conferencias, coletivos próprios, bem como o trabalho político de cada uma, íamos construindo uma identidade lésbica que se propunha a vencer os estereótipos preconceituosos e predominantes e que devia formar a base para nosso trabalho político. Tratava-se de uma identidade historicamente especifica. A identidade lésbica que constroem as atuais libertarias sexuais e as teóricas da nação queer é radicalmente diferente. A identidade escolhida e construída deve ser correspondente às estratégias políticas que se querem empreender. A teóricas e os teóricos do pós-modernismo lésbico-e-gay também refutam o conceito de uma identidade temporalmente estável. Por trás desse empenho existem três questões políticas. A primeira é o medo do essencialismo. Não parece ser uma questão especialmente relevante para as feministas lésbicas, que são conscientes de que sua identidade lésbica é uma construção social deliberada e claramente intencional. Gera preocupação, entretanto, sobretudo aos teóricos gays, involucrados numa cultura gay muito mais arraigada na ideia de uma identidade essencial que a lésbica. A preocupação dos homens gays em relação ao essencialismo é derivada de uma especial atenção da teoria lésbica-e-gay a este tema. Segundo as palavras de Richard Dyer em Inside/Out, a “noção de homossexual”:

(…) parecia se aproximar demasiadamente às etiologias biológicas da homossexualidade que haviam sido utilizadas contra as relações entre pessoas do mesmo sexo e, ao exibir o modelo inexorável do nosso ser, nos privavam da prática política de decidir o que queríamos ser.

A outra questão política que se esconde por trás do empenho da incerteza radical, é a de evitar o etnocentrismo. Um conceito estável sobre a identidade de uma lésbica ou de um homem gay seria necessariamente o reflexo das ideias do grupo racial ou étnico dominante, e não prestaria atenção às consideráveis diferenças vivenciais e práticas das demais culturas.
Dyer aponta:

Os estudos que tratavam de estabelecer uma continuidade da identidade lésbica/gay, através de distintas épocas e culturas, impunham o conceito que temos atualmente na “nossa” sexualidade à diversidade e às diferenças radicais que existem, tanto em relação ao passado quanto em relação às “outras” culturas (não brancas, do terceiro mundo), ocultando as diferenças entre lésbicas e homens gays.

Do movimento de liberação das mulheres e do feminismo lésbico surgiu uma considerável quantidade de trabalhos realizados por mulheres negras e pertencentes a minorias étnicas, que afirmam suas próprias identidades sem, por meio disso, desestabilizar radicalmente a ideia da existência lésbica. Lésbicas negras, judias, chicanas, asiáticas e indígenas realizaram esses trabalhos afirmando sua identidade lésbica. Essa identidade comum nasce da cultura urbana do ocidente e provavelmente não pode ser trasladada fora desse cenário. As lésbicas indígenas australianas, por exemplo, questionaram o valor que pode ter uma palavra derivada de certa ilha grega para sua própria identidade, afirmando que no amor entre mulheres em uma cultura indígena tradicional não há espaço para uma identidade lésbica urbana. Entretanto, as lésbicas políticas de maneira geral tem fincado o pé na importância de uma identidade reconhecível para a organização das lésbicas na cultura urbana ocidental. O fato de que essa identidade necessite de significado para a maioria dos povos indígenas ou para as pessoas não urbanas não lhe retira sua importância, como instrumento organizador, dentro do seu próprio contexto. Outro motivo para suspeitar da identidade lésbica ou gay se apoiava nas noções foucoultianas sobre “o exercício mesmo do poder através da regulação do desejo ao qual a política e a teoria lésbica/gay supostamente de opunham”. Segundo Dyer, se as categorias da homossexualidade foram idealizadas como ferramentas de controle social, devemos observar de que forma a nossa utilização dessas categorias pode contribuir para essa regulação. É útil e proveitoso que recordemos nossa obrigaçao de expressar tanto nossa pratica política quanto nossos pressupostos políticos – por exemplo, o fato de nos chamarmos lésbicas -, com o fim de comprovar que o nosso procedimento não se torne politicamente inútil ou prejudicial. Não obstante, se nos atemos ao uso que se faz nos escritos lésbicos da incerteza radical, nos questionaremos se a limpeza geral não foi longe demais. As autoras pós-modernas anunciam, com fervor, a importância da sua postura subjetiva, afirmando que não poderiam aspirar à universalidade ou à objetividade. As feministas lésbicas desenvolvem sua própria versão – à margem da teoria pós-moderna – nos boletins informativos dos oitenta, onde se encontram descrições da seguinte ordem: “ex-hétero, classe media, obesa obsessa, feminina, libra”, etc; entretanto, habitualmente estavam seguras de todos esses aspectos de sua identidade. Elizabeth Meese nos brinca um exemplo da versão pós-moderna da incerteza radical: Como é que a lésbica parece uma sombra – uma sombra de/dentro a mulher, de dentro a escritura? Uma forma contrastada em um teatro de sombras, algo amorfa, com as bordas difusas devido à inclinação do campo visual, da tela sobre a qual se projeta o espetáculo. O sujeito lésbico não é tudo o que sou e está em tudo o que sou. Uma sombra de mim mesma que da fé da minha presença. Não estou nunca de/fora esta lésbica.E sempre dando voltas, assim e assado, aqui e ali. As sombras, para não falar no corpo, compõem uma complexa coreografia na nossa luta por um significado. Os textos pós-modernos sobre os temas lésbicos começam com varias paginas desse tipo de reflexões introspectivas sobre a identidade lésbica da autora. Assim mesmo, as acadêmicas pós-modernas tentam empregar os vinte primeiros minutos de suas conferencias questionando sua própria postura subjetiva e deixando pouco espaço para o verdadeiro conteúdo da fala que o público espera com paciência. Possivelmente muitas leitoras lésbicas nunca tenham se sentido como uma sombra, ou complicadas em uma busca formidável por seu significado; não obstante, os textos das feministas pós-modernas estão repletos de balbucios desesperados sobre a dificuldade de falar ou de escrever. Há certa angustia de artista atormentada à qual não nos podemos permitir na nossa luta política habitual, se nos propomos simplesmente a expressar-nos com a maior frequência possível. O texto de Judith Butler em Inside/Out começa com uma angustiada introspecção sobre quem é ela ante uma solicitação de que desse uma conferencia como lésbica:

De principio, pensei em escrever um ensaio distinto, em um tom filosófico: o “ser” de ser homossexual. As perspectivas de ser algo, sobretudo em troca de dinheiro, sempre me causaram certa angustia, uma vez que “ser” lésbica parece ser mais profundo que o simples mandato de converter-me em algo que já sou. E dizer que isso é “uma parte” de mim não aplaca minha angustia. Escrever ou falar como lésbica aparece como um aspecto paradóxico desse eu, nem verdadeiro e nem falso. Trata-se de um produto, a resposta à petição de sair ou escrever em nome de uma identidade que atua em muitas ocasiões como um fantasma politicamente eficaz. Não me sinto confortável com as “teorias lésbicas”, “teorias gays”, uma vez que (…) as categorias de identidade se propõem a ser instrumentos de um regime regulador (…). Não quero, com isso, dizer que em atos políticos não voltarei a me apresentar pelo signo da lesbiana, mas gostaria de conservar uma permanente duvida sobre o significado exato desse signo.

Um texto como esse parece preocupante, se analisado de uma perspectiva política. Na frase inicial, Butler emprega a palavra homossexual para referir-se a si mesma, algo que uma feminista lésbica não faria nunca. Para grande parte das lésbicas que se uniram à luta política nos 60, e que se negariam a ser incluídas junto aos homens gays em uma mesma categoria designada por uma única palavra, o vocábulo homossexual tem conotações especificamente masculinas ainda maiores que a palavra “gay”. O que indica que Butler pertence ao grupo das novas teóricas lésbicas-e-gays que optaram por abandonar uma política lésbica independente. Seu uso de certar palavras pode ajudar-nos a situá-la dentro do panorama político, ainda que sua angustia ao perguntar-se onde se situa constitua um problema para a política lésbica e para a política gay. Não é emocionante ou interessante enfrentar as mostras de incerteza radical, ainda que isso não baste como critica. O que temos que perguntar e o que muitas feministas heterossexuais, autoras negras e lésbicas tem se perguntado é o seguinte: é politicamente útil pleitear tantas duvidas sobre a palavra lésbica ou sobre outras categorias políticas, como mulher ou negra, quando os grupos oprimidos que utilizam essas categorias de identidade estão apenas começando a abrir seu espaço na historia, na cultura e na academia? Com o questionamento das posturas subjetivas, os teóricos pós-modernos pretendiam obrigar os membros dos grupos dominantes a reconhecer sua parcialidade, para que as leituras pudessem reconhecer que determinados textos formavam parte de um sistema regulador. Tudo isso está bem; entretanto, não são precisamente os membros dos grupos dominantes que aproveitaram a ocasião para demonstrar sua incerteza radical, e não temos motivos para pensar que o farao. Não são os vice-reitores das universidades tradicionais que começam suas conferencias com vinte minutos de titubeios sobre suas posturas subjetivas e seu direito a dizer o que vão dizer. Tampouco são os acadêmicos homens, heterossexuais e brancos, quem majoritariamente aproveitam tal contexto. Ao que tudo indica, são sobretudo as mulheres, as lésbicas e os gays, assim como as minorias étnicas em geral que se sentem obrigados a mostrar sua incerteza radical. Enquanto os regimes reguladores conservam suas certezas, talvez a melhor forma política de combatê-los seja mantendo, nós também, algo de certeza sobre quem somos e o que estamos fazendo. Talvez a obrigaçao de exibir uma atitude de incerteza radical coincida simplesmente com a dificuldade habitual dos grupos oprimidos de se reafirmarem perante a máquina dominante, produtora de mitos. Só faz com que nos sintamos impotentes. Diana Fuss dedica um capítulo inteiro do seu livro Essentially Speaking à questão da política de identidade das lésbicas e dos gays. Ao seu modo de ser, as teóricas lésbicas estão mais comprometidas com a ideia de uma identidade essencialista que os gays.

A teoria lésbica atual está geralmente menos disposta a questionar ou abandonar a ideia de uma “identidade lésbica” junto com a política de identidade que deriva dessa essência comum. Por outro lado, os teóricos homens gays referendaram rapidamente a hipótese construcionista social que proclama Foucault, e vêm desenvolvendo análises mais escrupulosos referentes à construção histórica das sexualidades.

Imagino que essa afirmação tenha gerado uma autentica surpresa para as leitoras feministas lésbicas, porque nossa experiência indica o contrário. Na minha trajetória enquanto docente, pude constatar que a ideia da homossexualidade masculina como uma construção social é mal aceita pela maior parte dos alunos. Por outro lado, não é esse o caso das lésbicas; no final das contas, muitas delas decidiram amar a outras mulheres por razoes políticas, mesmo tendo passado meia vida como esposas e mães e sem sequer imaginar a possibilidade de se sentirem atraídas por mulheres. Muitos poucos homens gays compartem essa experiência. Dificilmente dirão que sua preferência sexual tem motivos políticos e que é consequência de uma decisão consciente de renunciar às mulheres ou à heterossexualidade. Talvez Fuss queira dizer que as autoras lésbicas não promoveram a ideia da construção social, ainda que muitas lésbicas a tenham aceitado a nível vital. Mas essa afirmação tampouco parece razoável. Existe uma abundante bibliografia referente ao lesbianismo político e a ideia da heterossexualidade como instituição política sobre a qual se fundamente a opressão das mulheres. Entretanto, a exceção de algumas alusões a Adrienne Rich, Fuss se omite em relação a esses textos. Talvez não os conheça, ainda que grande parte ainda seja usada nos cursos de estudos das mulheres. Segundo Fuss, as lésbicas aderem ao essencialismo cm maior entusiasmo que os gays pelo fato das mulheres serem mais marginalizadas, pois assim criaríamos identidades que nos garantiriam maior seguridade. Quando, na realidade, deveria se questionar o contrário: por que os homens gays, com menos necessidade de uma identidade essencialista que lhes gerasse seguridade, aderem a essas ideias com maior tenacidade? De acordo com Fuss e outras teóricas lésbicas-e-gays pós-modernas, Foucault revelou para o mundo a construção social da sexualidade. E concretamente nos mostrou que as identidades sexuais se vivem de distintas maneiras em distintas épocas históricas. Fuss acredita que o fato de que existiram “escassos análises foucaultianos em torno da sexualidade lésbica, a diferença dos copiosos estudos sobre o sujeito gay masculino”, pode ser resultado de uma suposta maior necessidade das lésbicas de professar um essencialismo político. Uma afirmação verdadeiramente surpreendente. Além do equivoco de atribuir o essencialismo à teoria lésbica, há um problema mais: por que as lésbicas deveriam praticar análises foucaultianos? Por que, para descrever sua experiência, deveriam valer-se da obra de um gay que nunca teve em conta as mulheres, muito menos as lésbicas, e cujas “grandes descobertas” foram precedidas em anos pelo feminismo lésbico? Algumas feministas lésbicas – notavelmente Lillan Faderman – realizaram trabalhos magníficos sobre as formas cambiantes e a evolução do amor entre mulheres ao largo da historia. Não obstante, Fuss não menciona a Faderman. Como consegue ignorar o feminismo lésbico e pensar que as lésbicas não poderiam produzir um corpus teórico sem que se pugnem para que possam ajustar-se aos conceitos inapropriados de um homem gay? Deve ser porque Fuss não parte da teoria lésbica e nem do feminismo lésbico. Não compreende que a teoria gay masculina nunca poderá abarcar o lesbianismo por completo. Ao falar da importância das teorias construcionistas sociais sobre a identidade lésbica e gay, sugere que estas contribuiriam à teorização das diferenças existentes entre as lésbicas e os homens gays, se bem essas diferenças não lhe pareçam importantes:

(…) as teorias sociais nos permitem traçar uma importante distinção entre os homens gays e as lésbicas, dois grupos que as investigações sobre as minorias sexuais aglutinam ainda que, de fato, não se construam exatamente da mesma maneira.

Poderíamos ir mais longe e dizer que as lésbicas e os gays se constroem, na realidade, de maneira radicalmente diferente; entretanto Fuss, com seu enfoque consequentemente lésbico-e-gay, opta por ser mais suave e cautelosa. Se levarmos em conta que as teóricas e os teóricos do pós-modernismo se consideram campeões da atenção à “diferença”, é interessante observar que em algumas ocasiões se mostram bastante tímidos na hora de constatar as diferenças politicamente construídas entre homens e mulheres. Fuss parte da teoria gay masculina e dos homens pós-modernos em geral. E, se por um lado não cita a Faderman, sua bibliografia lista dezenove títulos de Derrida. A obra desse filósofo parece ter comovido profundamente a algumas teóricas lésbicas e feministas no que se refere ao essencialismo. Fuss menciona seus “recentes esforços em reconstruir a essência”. Obviamente a palavra “essencialismo” não se emprega nesses escritos pós-modernos com um sentido tradicional. Muitas detratoras da teoria feminista radical a acusam – sem nem sequer possuírem provas – de ser essencialista no sentido tradicional do determinismo biológico. As ativistas anti-pornografia, por exemplo, são acusadas de sustentar que a sexualidade masculina e feminina não essencialmente diferentes. Mas Fuss não emprega a palavra no mesmo sentido. Igual que outras teóricas pós-modernas, tende a usá-la para denotar toda política que se apoie em algum conceito de identidade, construída ou não construída, assim como toda política que confia em certa afinidade entre as pessoas de uma determinada classe, sobre a qual é possível construir uma teoria ou uma ação política. Esse conceito de essencialismo se dirige contra qualquer sugestão ou tentativa de ação política, de maneira que algumas feministas e outras ativistas chegaram à conclusão de que a palavra é simplesmente uma maneira de vulgarizar a ação política. Possivelmente, os pós-modernos tenham cometido o verbicídio dessa palavra, que já não poderá ser utilizada de maneira produtiva. Os conflitos de teóricas como Butler e Fuss, com respeito aos conceitos de gênero e identidade, tem sua origem na obra de suas autoridades masculinas. Essas lésbicas não têm suas raízes teóricas dentro da política lésbica ou feminista, e se dedicam a construir uma política lésbica e gay unificada, apoiada na teoria gay masculina. Desaprovam a política feminista lésbica, se é que a mencionam – por não estar na altura de seus Mestres Pós-Modernos – e pugnam para encaixar a política lésbica nas teorias pós-modernas, sem solução de continuidade. Enquanto isso, as teóricas feministas lésbicas se vêm complicadas em uma estranha função de teatro de sombras, tratando de refutar a intrusão de uma teoria totalmente inapropriada ao cenário, sem conhecer suas origens. Poucas lemos os dezenove textos de Derrida e tampouco temos vontade de fazê-lo, ainda que sejamos obrigadas a responder às perguntas feitas por suas seguidoras. Por minha parte, afirmo que as teóricas pós-modernas, por atrevidas que se imaginam, simplesmente aplicam uma camada de verniz intelectual sobre as velhas teorias do liberalismo e do individualismo. O caso da pornografia é um bom exemplo das consequências que o contato com a teoria pós-moderna pode exercer sobre as análises políticas. Kobena Mercer formava parte do Grupo de Gays Negros de Londres e, atualmente, ministra aulas de história da arte na Universidade da California; durante sua vinculação ao Grupo de Gays Negros, utilizava as contribuições das militantes feministas anti-pornografia para criticar a obra do fotógrafo gay branco estadunidense Robert Mapplethorpe. Grande parte do travalho de Mapplethorpe gira em torno de nus de homens negros. Segundo a interpretação de Mercer, a fotografia “Homem com traje de poliéster”, que mostra o perfil de um homem negro com o pênis seccionado ou “decapitado”, por assim dizer, perpetua o “estereotipo racista, segundo o qual o homem negro não é essencialmente mais que seu pênis”. Na opinião de Mercer, as fotografias perpetuavam o “fetichismo racial”, uma “idealização estética da diferença racial que simplesmente inverte o eixo binário do discurso colonial”. Mais tarde, nos dice Mercer, e por conta de seu contato com a teoria pós-estruturalista, descobriu as interpretações contraditórias da obra de Mapplethorpe. Sua posição atual na academia fez com que deixasse de sustentar posturas que poderiam ser consideradas “toscamente políticas”, graças às ideias de estudos culturais pós-modernos, se deu conta de que:

A multiplicidade de interpretações contraditórias sobre o valor da obra de Mapplethorpe aponta para o fato de que o texto não tem um significado único, singular e inequívoco, mas se presta a um sem fim de interpretações.

Mercer decide que o argumento da “morte do autor” que esgrime a teoria pós-moderna converte em “incontestável” a pergunta de se os nus de homens negros de Mapplethorpe “reafirmam ou solapam os mitos racistas em torno à sexualidade dos negros”. Agora questiona sua própria postura subjetiva ao contemplar as fotografias, e se pergunta se sua “raiva se confundia com sentimentos de ciúme, rivalidade ou inveja”, sendo “a raiva e a inveja” consequência da sua “identificação tanto com o objeto quanto com o sujeito do olhar”. Esse tipo de crítica da cultura se apoia no indivíduo. Trata-se apenas de uma opinião, e as opiniões são muitas e variadas. “Uma grande parte depende do leitor e da leitora e da identidade social que eles aportam ao texto”. Mercer se converteu à incerteza radical e se desfaz em desculpas sobre sua postura anterior e claramente anti-racista, tal qual, como vimos nesse livro, fizeram muitas feministas com seu constrangedor feminismo do passado. Outro exemplo da perda do significado político que provoca o jargão pós-moderno é a sinopse de un ciclo de conferências chamado “As forças do desejo”, apresentado no prestigioso centro de Investigação de Humanidades da Universidade Nacional Australiana de Canberra em junho de 1993. Os principais temas foram a revisão da sexualidade sem a preponderância de um modelo maestro e a estruturação e reestruturação do desejo. Os conferencistas são convocados a abordar uma série de temas: as múltiplas sexualidades como práticas e estilos de vida, à margem dos modelos dominantes com sua ênfase na sexualidade – masoquismo, sadismo, perversões, heterossexualidades, sexualidades gays, a sexualidade como normativa e as possibilidades e os atos de resistência contra essas normas e sua transformação; o saber como parte integrante das práticas sexuais: a erótica de produção do saber, o desejo pelo saber; a interação entre sexualidade, saber, poder e violência. As leitoras lésbicas se perguntarão onde há espaço para sua própria análise. De fato, elas não são nem mencionadas. Parece que desapareceram dentro das “sexualidades gays”. Quantas dessas sexualidades existem? A lista das sexualidades múltiplas está encabeçada pelo masoquismo e o sadismo, e em nenhum lugar há referências a um modelo especificamente igualitário. A crítica feminista lésbica da heterossexualidade como instituição não parece ser bem recebida, já que nesse “modelo” só aparece como “heterossexualidades”, forma plural que desaconselha de alguma maneira uma análise dessa índole. Os “s” finais da forma plural aparecem em toda classe de contextos, coisa nada surpreendente em um enfoque pós-moderno, ansioso por abarcar todas as eventualidades com formas plurais, que acabam excluindo a lésbicas e feministas, junto com grande parte do que poderíamos chamar de uma análise política. Em nome da “diferença”, tudo foi homogeneizado. Sempre me pergunto como se decidem os singulares e plurais. Por exemplo: masoquismo, sadismo, desejo e poder aparecem em singular, mas todo o restante é plural. Não há dúvida de que aqui intervém uma determinada política, talvez até mesmo um “modelo maestro”. Desde meu lugar, suspeito que se trata da política sexual libertaria orientada às minorias sexuais a prática política dominante dos homens gays atuais. Talvez as “sexualidades gays” impliquem a inclusão da pedofilia, do transexualismo, etc., tudo isso equiparável ao lesbianismo – se é que este tem lugar. Não há nenhuma feminista radical ou revolucionária na lista de bolsistas ou conferencistas. No entanto, nela figura Gayle Rubin, defensora do sadomasoquismo lésbico e do transexualismo lésbico butch; Jeffrey Weeks, historiador gay foucaultiano; Carol Vance, uma destacada teórica libertária dos estudos lésbicos-e-gays; assim como Cindy Patton, que encontramos no capítulo 2 queixando-se do papel crucial que as feministas outorgam ao tema dos abusos sexuais. Deve ser difícil par

a as sadomasoquistas e habitantes das “margens sexuais”, como Rubin, manter sua imagem temerária quando recebem convites e ajudas econômicas procedentes dessas prestigiosas instituições.

A teoria lésbica-e-gay pós-moderna faz com que aqueles que não querem outra coisa senão utilizar as ferramentas e a parafernália do sexismo e do racismo, se sintam não somente em seu direito, mas revolucionários. Os jogos de papéis lésbicos, o sadomasoquismo, a masculinidade do homem gay, o travestismo (drag), o mimetismo da Madonna, a utilização dos homens negros e da iconografia negra, os estereótipos sexuais racistas de Mapplethorpe: de tudo isso podem extrair o prazer e o proveito do sistema da supremacia masculina, no qual o sexo é e não poderá ser nada mais que desigualdade de poder. Então, desfrutar do status quo se denomina “paródia”, para que os intelectuais alarmados pela sua própria excitação possam senti-la tranquilamente. Às teóricas lésbicas-e-gays pós-modernas que não queiram conseguir seu prazer dessa maneira, as ideias da incerteza radical, da natureza utópica ou essencialista de todo projeto de mudança social, lhes proporcionam o suporte teórico de um liberalismo e de um individualismo cavalheiresco.

Estão faltando as notas deste texto, portanto essa tradução se encontra ainda incompleta. As notas podem, porém, serem vistas no texto original da tradução que se encontra em: we.riseup.net/assets/138326/Sheila+Jeff...