“O aborto representa uma traição à vida, mas acima tudo,
a traição da mãe, a menos diga do perdão; a que,
tendo o mandato divino e cultural de parir, nega a
potencialidade do nascimento de um sujeito. Essas leituras
simplistas e demagógicas sobre o aborto legitimam as exigências
de vida de uma cultura de morte, repleta de transgressões
básicas à vida, gestora de guerras, fome, cárcere de menores,
abrigos infantis sub-humanos, perseguidora de raças inteiras.
Essa cultura que não resolve os problemas da humanidade, que jamais
conseguiu alcançar a paz nem a igualdade social, mas apenas construiu
desigualdades, se ortoga o direito de nos sancionar e nos retirar a
responsabilidade sobre nossos corpos, privando-nos de toda a potencialidade
do que constitui um ser humano: a liberdade.
...
Obrigar à vida é um ato onipotênte, devastador e autoritário,
inscrito nas falhas de uma sociedade frágil em seus
valores e crenças. Em uma estrutura social, política e
econômica que está concretamente concebida para poucos, a proposta
de respeito aos seres humanos é intrinsecamente falsa. Estamos permeados
do exercício da mentira e, por isso, criminalizar o aborto e
mantê-lo na ilegalidade é fundamental, assim como se criminaliza o
suicídio, a eutanásia e todo o direito de decidir
sobre nosso corpo e vida.
Existe um gosto pela dor do outro, pela prolongação dessa dor,
pois a dor não pensa; se compadece dela mesma. Esta é uma sociedade construída
em um sistema antiguíssimo de vigilância e proibições, que entende
a vida como um trânsito doloroso, culposo, alheio, como se
a concepção de nossas vidas pertencesse a outrem, a uma inteligência
não identificável. Estamos cada vez mais prisioneiros do senso comum
enraizado e controlador, que filtra e permeia até o mais íntimo e sagrado
de nossas vidas. Por isso a liberdade está a cada dia mais longínqua
e temida.”