As Armas Anti-Lésbicas #1:

Abuso sexual e estupro corretivo na infância

Olá. Precisamos falar sobre abuso sexual contra meninas. Acredite, o silêncio não te protegerá e a vergonha por ter sido agredida é irracional. Eu não tenho medo nem vergonha de lhe dizer, cara leitora, que sou sobrevivente de abuso sexual na infância. Sim, eu fui estuprada com cerca de 7 anos e passei por isso mais de uma vez e até hoje estou no processo de enfrentamento e cura, buscando viver plenamente mesmo tendo que conviver com essa memória terrível. Eu demorei pra compreender que essa dor não é algo pessoal, não é meu segredo, é assunto PÚBLICO, e é responsabilidade dessa sociedade pútrida e estupradora em que vivemos. É algo com o que você sempre terá que conviver, porém você pode converter essa dor em algo de bom e de útil, em arte, em luta. É difícil, as pessoas não aceitam e nos machucam mais ainda, é doloroso falar sobre isso, mas é CRUCIAL, pois só assim as mulheres vão quebrar o silêncio, só assim a gente aprende a se amar, a cada sobrevivente que rompe esse silêncio, um gomo de uma verdadeira corrente do bem é nascido!

Estima-se, assim como no caso dos estupros de mulheres em geral, de todas as idades, que apenas 2% da violência sexual contra crianças do sexo feminino chegam a ser denunciadas. Em 12 anos foram registrados cerca de 20.000 casos de estupro no Brasil, dentre as vítimas 7 mil eram crianças. Hoje, estima-se que cerca de 50% das vítimas são crianças. Você pode chegar a argumentar que se trata de exceção, pois esse número corresponde a cerca de 1.000 estupros por ano no país inteiro (sim, tem gente que acha que isso é pouco, como se as pessoas fossem números). Acontece que esses são os casos REGISTRADOS pelas delegacias e poder judiciário, ou seja: no total estima-se que cerca de 1.000.000 de estupros ocorrem por ano no Brasil! Ainda acha que é exceção? Ainda acha pouco? A cada 15 segundos alguma mulher sofre algum tipo de agressão no nosso país. 90% da violência sexual é cometida contra mulheres e meninas e a mesma porcentagem corresponde ao fato de que a maioria dos agressores é constituída por homens, na grande maioria das vezes pessoas próxima à vítima, são os pais, os irmãos, os primos, os tios, os avós, os “amigos”, namorados e ex-namorados, entre outros. As denúncias são ainda menores quando se trata dum caso de “incesto”¹. Das crianças que são vítimas, cerca de 35% tem entre dois a cinco anos de idade e o maior número de vítimas está entre 8 e 14 anos de idade.

Você sabia que cerca de 20.000 partos POR DIA são realizados por meninas menores de 18 anos? Pois é. E cerca de 250.000 crianças estão prostituídas no Brasil. No mundo todo, cerca de 8.000 sofrem mutilação genital feminina todos os dias. O abuso sexual infantil atinge todas as classes, raças e comunidade no país, porém a maior incidência (bem como a maior intensidade da brutalidade) é cometida contra meninas negras e da periferia, sendo a incidência da prostituição infantil muito maior nas regiões marginalizadas.

Entre tantos outros dados possíveis para inserir nesse debate, acredito que as leitoras já podem captar a gravidade da situação de violência a que estamos expostas. Após analisar um pouco das estatísticas é importante desconstruir algumas falácias relacionadas à realidade da violência sexual vigente em nossa sociedade.

Perfil dos agressores: muita gente acredita que o agressor sexual é sempre uma pessoa desconhecida que surge na rua, que possui algum tipo de distúrbio ou dependência química, ou que se trata de alguém de uma classe que sofre carência de instrução, ou que é sempre alguém com atitudes detestáveis e antissociais ou coisas do gênero. Além de se tratar de um imaginário extremamente burguês, capacitista e racista, trata-se também de um gigantesco equívoco! Afinal qualquer homem pode ser um agressor. Como já desmentem as estatísticas, geralmente são pessoas próximas à vítima e, além disso, muitas vezes são homens “acima de quaisquer suspeitas” aos olhos das pessoas, vistos pela vizinhança como “um exemplo de pai de família”, ou um cidadão exímio, influente na sociedade e, muitas vezes, nascidos em famílias que proveram tudo do bom e do melhor. Se fosse violência, não haveria orgasmo, nem “prazer”, nem resposta sexual da vítima: isso é um ponto tabu nessa discussão, que as pessoas, inclusive as vítimas, tem medo de falar a respeito, mas que geralmente as pessoas condenam e culpabilizam a pessoa agredida. Sim, é muito comum uma vítima de uma agressão sexual chegar ao orgasmo ou responder sexualmente porque esta é uma forma de defesa que nossa própria corpa arquiteta para proteger a saúde física da vagina e psicológica da pessoa. E outra: é um órgão extremamente sensível, o clitóris, quando tocado, se estimula e isso é normal, a pessoa não tem culpa alguma nesse processo! A violência não se reduz por conta disso de forma alguma! Você sabia que existe uma pesquisa mostrando que há uma enorme possibilidade de a lubrificação ser um processo evolutivo da biologia feminina como ação defensiva por conta de toda a cultura tão recorrente na história do patriarcado do estupro como arma de guerra e como veículo de manipulação e submissão das mulheres e femicídio? Pois é! Nossa corpa faz de tudo pra nos proteger! A culpa é dela, ela provocou: sério, tem gente que consegue usar esse argumento até pra criança. Tem louco pra tudo nesse mundo! Eu não vou nem discorrer muito sobre essa ideia furada porque é um argumento simplesmente ignorante e sem fundamento nenhum. A culpa é do agressor, TODA dele e sempre será dele, a vítima é V-Í-T-I-M-A independente das roupas que veste, das atitudes que toma, das substâncias que consome ou de qualquer outra coisa. Até mesmo quando uma menina intencionalmente demonstra desejo sexual ou qualquer coisa do gênero, é simplesmente ABSURDO dizer que isso justifica um adulto violentar uma criança ou adolescente sexualmente! Complexo de Édipo: muita gente realmente pretende duvidar e desmerecer a denúncia das mulheres em relação ao abuso sexual na infância com o argumento de que ela fantasiou. Deve-se compreender de uma vez por todas que a memória de um trauma sempre se manifesta como memória. A dor de uma violência real é trazida junto com a memória, aparece nos sonhos ou como um lapso de flashback. A sobrevivente sabe qual é a sensação de lembrar, de revivenciar a dor. Se houver fantasia, ela vem em formas simbólicas para mostrar à sobrevivente que algo de errado ocorreu em sua infância. Não confundam as coisas! Praticamente 90% das mulheres já foi agredida sexualmente na infância e/ou adolescência, então chega de viajar e vamos começar a acreditar na palavra das mulheres! Se for da mesma idade, não é abuso: essa é uma questão confusa para a maioria das pessoas, e muita gente endossa o discurso de que se for o irmão ou primo, o garoto com idade próxima à da vítima, a gravidade da situação diminui e não se trata do mesmo nível de agressão, muita gente até argumenta que a pessoa “estava se descobrindo sexualmente!”. É sério, gente, um de meus agressores se encaixa nessa descrição (é, eu tive mais de um algoz na infância), e quando eu quebrei o silêncio dentro da família eu tive que ouvir essa merda de argumento furado. Os meninos já estão bem ligados desde cedo de seus privilégios e muitos homens tornam-se agressores BEM CEDO. Um garoto estuprar uma menina da mesma idade não faz dele menos estuprador não, apesar de ser criança ele está sim exercendo poder e privilégio, e a dor de um trauma assim não diminui por conta disso.

Enfim, deve haver muitos outros mitos que não listei aqui a respeito do abuso sexual na infância. Vocês devem estar se perguntando “qual a associação disso com o tema ‘Armas Anti-Lésbicas’?”. Chegaremos lá esse assunto é uma polêmica, por algum motivo heteronormativo isso é difícil de engolir para a maioria das pessoas, porém as meninas, durante a infância, são GINOAFETIVAS. Pasmem. Existe uma vasta quantidade de mulheres que relatam experiências, fantasias e vivências ginoafetivas na infância e adolescência. Partindo desse ponto, vamos desconstruir aqui mais um mito, o grande mito que embasa toda a hierarquia estrutural do patriarcado, na qual as mulheres são submetidas à supremacia masculina: o de que a heterossexualidade é natural.

Ninguém nasce heterossexual, torna-se. Essa paráfrase da célebre Simone de Beauvoir não é gratuita, pois isso tem tudo a ver com o “tornar-se mulher”. A palavra mulher diz respeito a uma categoria e a uma série de rituais necessários para que seja reconhecida numa fêmea da espécie humana. Esses rituais trazem outro conceito que os nomeia: a feminilidade. Para tornar-se mulher é necessário exercer a feminilidade. “A feminilidade é um conjunto de comportamentos que são em essência a submissão ritualizada”, como bem pontuada por Lierre Keith. Portanto, para tornar-se mulher é preciso exercitar diversos rituais de submissão aos homens.

E que rituais são esses? Falar baixo, sorrir quando falam com você, mesmo que seja um assédio, não importunar as pessoas com seus problemas, ser polida e nunca demonstrar qualquer sinal de agressão, estar de braços abertos e carregar o mundo nas costas, se dispor a cuidar de tudo e de todos menos de si mesma, andar de forma restrita, sentar-se com as pernas fechadas, usar salto para elevar a altura das nádegas mesmo que isso acabe com a saúde de sua coluna e de toda a musculatura dos pés e das pernas, usar maquiagem, arrancar os pelos do corpo, negando a puberdade e mantendo-se infantil aos desejosos olhares pedófilos do patriarcado, usar saias e vestidos e roupas apertadas e desconfortáveis, atribuir todo o valor pessoal à aparência e à estética. Exercer a feminilidade é se odiar, é buscar um padrão branco, magro, elitista e que passa pelo photoshop e nem diz respeito a pessoas de verdade. É negar o próprio sofrimento, fingir que está sempre tudo bem, porque você não importa. O que importa nesse mundo são os homens. E por falar nisso, o ponto mais importante para o exercício da feminilidade construída pelo patriarcado é amar os homens. Direcionar sua energia afetiva, intelectual, criativa e erótica toda para os homens. E mais crucial ainda: exercer a feminilidade é odiar as mulheres, começando por si própria. Ser feminina é, portanto, ser HETEROSSEXUAL.

Agora, para que as leitoras possam compreender porque estou colocando todo esse contexto aqui, vamos retomar, fazendo um paralelo da feminilidade com as consequências do abuso sexual. Comecemos pelos sintomas recorrentes em sobreviventes de estupro sofrido na infância:

Perda da memória do abuso: esta é a defesa psíquica mais comum e recorrente na história do estupro contra meninas. Isso acontece porque a criança não tem estrutura física e psicológica para compreender o grau de violência a que está sendo sujeitada e, muito menos, para se defender. Uma das formas de se perceber que uma pessoa passou por abuso sexual ou outro tipo de agressão severa na infância e reprimiu a memória do trauma é quando ela se esquece, também, de outros eventos importantes da infância, como as coisas que gostava de assistir, as brincadeiras, etc. Quando uma lembrança é jogada no esquecimento, outras que estão próximas também sofrem as consequências da repressão, pois podem vir a ser associações que levem a sobrevivente ao trauma. Nossa psique libera a memória quando compreende que estamos num estado suficiente de maturação para enfrentar e lidar com o trauma do abuso. Transtornos afetivos e ideação suicida: infelizmente essas são consequências que afetam muito as vidas das sobreviventes de abuso, muitas vezes de forma extremamente grave. As tendências suicidas são bastante comuns em sobreviventes, as quais também podem vir a ser encaixadas no universo da psiquiatria, em transtornos como o borderline, a bipolaridade, a depressão severa e a mitomania, por exemplo. A mitomania é bastante característica em sobreviventes de abuso e muitas pessoas podem não compreender e hostilizar uma vítima, julgando-a pela mania de mentir. Há vários tipos de mentira que a pessoa pode ter o costume de criar para se comunicar com as pessoas, mas isso é um recurso psíquico para preencher a dor e elevar a autoestima de alguma forma, que foi aniquilada no momento do estupro. Eu, por exemplo, quando era pré-adolescente, tinha como impulso (o qual eu tinha a sensação de que era incontrolável) de distorcer histórias de agressão na escola quando eu era criança, por exemplo, quando eu ia contar da vez que várias garotas da minha sala vieram me agredir e humilhar e eu chorei sem reação, eu dizia que na verdade eu havia reagido de forma mais agressiva, é como se eu suprisse minha vontade de ter agido diferente e me defendido de uma agressão e etc, o que está intimamente ligado ao abuso sexual e ao fato de eu não ter podido me defender quando estava sendo violentada. É claro que existem graus de mitomania e alguns chegam a ser mais graves, como quando a sobrevivente usa a mentira como forma de manipulação no presente, e é difícil para as pessoas ter empatia por quem chega a este nível, porém essa pode ser a única forma de a sobrevivente sentir que tem algum controle sobre sua vida, e é importante lembrar que, na maioria dos casos, quanto mais grave o grau do sintoma, mais violenta pode ter sido sua experiência traumática. Erotização da submissão/sadomasoquismo/heterossexualidade: chegamos ao ponto crucial da questão! É importante, antes de descrever essa questão, que as leitoras compreendam que PRAZER não está ligado ao conceito de bom ou ruim, de certo ou errado ou do que é ético ou não. O prazer, nesse contexto, é uma energia corporal e psíquica que pode ser introduzido via cultura e sociedade, portanto declarar que “se a pessoa sente prazer, é bom e deve ser aceito” ou que “o prazer não é uma questão política nem social, é algo pessoal e deve ser exercido livremente (no sentido neoliberal da coisa)” é pura ignorância e falta de responsabilidade, quando não se trata de oportunismo mesmo. Quando existe o status quo do masculino que gosta de violentar e do feminino que gosta de ser violentado, não se deve deixar por baixo dos panos! Afinal eis a hierarquia de gênero.

Pois bem, o sintoma que aparece de forma generalizada em vítimas de abuso sexual é uma sexualidade confusa e distorcida, na qual a vítima associa a dor e a subordinação aos homens ao prazer sexual, na qual ela sente prazer em ser um objeto e em servir, sente que não tem valor e que deve ser maltratada sexualmente e isso lhe traz prazer. Sua sexualidade significa ser usada, ou no máximo representar a personagem da “malvada que come seu parceiro” num aspecto que chega, aos olhos dos homens, a ser cômico, afinal a mulher só pode exercer a agressão numa situação fetichizada e na qual quem sempre estará sobre o controle é ele, quem sempre estará penetrando será o homem. Essa, além de ser a base de uma sexualidade sadomasoquista (que hoje é largamente defendida pelo feminismo liberal/pós-moderno e que sinceramente não passa de um sinônimo de “feminismo engolido pelo patriarcado e pelo capitalismo”) e submissa, constitui a base da HETEROSSEXUALIDADE em si.

Compreendem o ponto em que pretendo chegar aqui? Afinal, é importante lembrar que esse imaginário da subordinação associada ao prazer não é transmitido apenas via abuso sexual (lembrando que praticamente 9 em cada 10 mulheres passam por isso já na infância e TODAS passam por ele, em algum grau, em algum momento de suas vidas), mas é também transmitido via mídia, via indústria dos brinquedos, via propaganda, via assédio e “cantadas”, via olhares objetificadores, via moral familiar que manda a garota fechar as pernas e vestir roupas desconfortáveis, via pornografia e erotização do corpo infantil, entre tantas outras armas patriarcais. Além de tudo com isso também surge o ódio das mulheres por si mesmas, a autoestima destruída, o que leva as mulheres a se odiarem e competirem umas contra as outras, criando a desarmonia causada por uma feminilidade distorcida.

Pois é gente, é importante nomearmos essas armas não apenas como patriarcais, mas enfatizar que essas são armas ANTI-LÉSBICAS, pois nós, sapatonas, somos a extrema afronta ao sistema de imposição da heterossexualidade, afinal, como argumentar que a bissexualidade e a heterossexualidade são tanto natureza quanto escolha dentro dum sistema que estupra as mulheres desde crianças e as educa às rédeas da supremacia masculina? Como argumentar a favor do conceito de “prazer heterossexual” tendo em mente os sintomas que a grande maioria das mulheres sofre pelas experiências traumáticas a que são submetidas desde o início de suas vidas?

A verdade dói, a verdade não é aceita pela maioria das pessoas, ela é negada, pois a verdade é que o patriarcado está estuprando as meninas para fazer crescer mulheres heterossexuais à força, assim está superpopulando a Terra de seres humanos e dos animais que domesticam e assassinam de forma brutal, causando um enorme desequilíbrio ecológico. Esse sistema violenta toda a existência da Vida e força as mulheres a servir aos homens até mesmo quando dizem que estão exercendo sua liberdade. E o ponto crucial que todas e todos odeiam admitir: o patriarcado está exercendo bem suas táticas para derrotar a maior ameaça que há à sua existência – a existência LÉSBICA. Mas nós continuaremos resistindo, sobrevivemos ao maior femicídio/lesbocídio da história, nossa força é ancestral, é colossal, indestrutível.

Por isso devemos quebrar o silêncio, o silêncio não nos protegerá de absolutamente nada! No próximo texto da série “As Armas Anti-lésbicas” construirei um debate a respeito do processo terapêutico e de cura dos traumas consequentes do abuso sexual na infância, da cura e do triunfo do que significa ser vítima e tornar-se sobrevivente para ser, enfim, autônoma!

Até a próxima sapatonas e mulheres! Fiquem ligadas no Palavra e Meia!

Notas

Coloquei a palavra incesto entre aspas pelo fato de que devemos problematizar o uso desse termo largamente empregado quando se fala de estupro intra familiar, pois chamar de incesto implica em eufemizar e até mesmo invisibilizar a culpa do agressor”

Sobre a autora:

“Raposa d’Oeste: bruxa, sapatão, rapper, malabarista, poeta, escritora, artista visual e performática. A Arte, em todas as suas formas, é o que me resgata nessa existência, é a força que me inspira e faz raciocinar, é o que me dá voz e instiga a não me jogar nas armadilhas do silêncio! Vim aqui para espalhar essa mensagem e acredito no aprendizado como metamorfose, na solidão como recarga da energia vital, na existência como revolução e na união como força”.