Estar expresadas

Para Jeka

Don’t let me be, don’t let me be misunderstood…
(Por favor não me deixe ser mal-compreendida…)
(Nina Simone)

A misoginia é um dispositivo patriarcal que está na base do constructo da feminilidade. Não apenas funciona para perpetuar a violência simbólica e material dos homens contra as mulheres, senão que também para manter as mulheres divididas entre elas. A misoginia cultiva o desprezo por nós mesmas e boicota permanentemente a construção de nosso amor próprio. Desta maneira, projetamos este desprezo contra as outras mulheres, instalando a desconfiança entre nós e impedindo a construção da cumplicidade profunda que necessitamos para nos curar.

Como pano de fundo, figura a traição da mãe. A maternidade é uma instituição patriarcal. A mãe é a primeira mulher que nos trai (M. Pisano), porque sua função é transmitir a palavra e a lei do pai, seus valores e seu jogo de crenças. Foram séculos de repetitivas doutrinações e violências para que isto seja assim. Ela nos ensina a misoginia, tal como outra mulher ensinou anteriormente à ela. Assim, a história dos machos permaneceu incólume.

Adrienne Rich escreve sobre a “heterossexualidade obrigatória”. A heterossexualidade é outra instituição patriarcal, unida à anterior – também obrigatória – e a todas as existentes que, em conjunto, velam por manter o tecido ideológico do sistema. A “heterossexualidade obrigatória” funciona eficientemente com mecanismos e estratégias que operam em distintos níveis. O propósito de dito aparato não é apenas obrigar-nos a ser heterossexuais nesta cultura, como único modelo amatório e erótico, rançoso e sadomasoquista. Também o objetivo é manter-nos, as mulheres, divididas em uma constante desconfiança entre nós e na reiteração da traição materna em nossas práticas cotidianas.

Tanta obrigatoriedade violenta, não sempre explícita, muitas vezes solapada, se deve a que ter que nos inscrever a um único modelo sexual e amatório é algo anti-natural, ainda mais se este modelo está sustentado na dominação e na erotização do poder sobre outro corpo, na erotização do sadomasoquismo. E viver não nos gostando a nós mesmas e entre nós é contra-vida. Me refiro a nos gostarmos fora do romântico-amoroso e mais além do lesbianismo, que se enrosca nas mesmas estruturas de poder patriarcal, pois os referentes de relações entre mulheres que são diferentes aos estabelecidos pelos machos, foram sepultados sistematicamente na cultura.

Por isso, o feminismo radical aos finais dos sessenta declarou: “o pessoal é político”, o disse Kate Millet. Margarita Pisano, referente de mulher pensante mais próximo, fala do “íntimo, privado e público”. Ou seja, nossas práticas políticas transcendem o público, pois implicam desvelar o poder que opera em nossos corpos, nossa sexualidade e nossas relações humanas cotidianas e afetivas. E isso, o feminismo radical o expressou antes e melhor que Foucault, e de maneira mais profunda que outras ideologias emancipatórias, por exemplo o anarquismo. Este é o pensamento que provém da experiência das mulheres, que reconhecem, em suas vivências históricas e corporais, a pedra angular de toda expressão de domínio.

Então, propôr como relacionar-nos de outra maneira e ensaiar outros modos de relação mais humanos, em especial entre nós mulheres, é uma prática política chave. Pisano aprofunda sobre isso e propôe o “estar expressadas” como um ensaio para modificar-nos na interação concreta, que envolve o fazer política. Isto é, “estar expressadas” no íntimo, privado e público/político. Eu entendo o “estar expressadas” como uma ação política de rebeldia, porque seu exercício (não sempre fácil de realizar) rompe com o silêncio histórico feminino.

O “estar expressadas” implica entregar à outra pessoa os dados da realidade. Estes podem abarcar informações cotidianas, práticas, domésticas, ou melhor, os desejos, as intenções, as emoções e sentimentos, as idéias e pontos de vista ou opiniões de cada um. Requerem honestidade, especialmente com uma mesma. Logo, declarar a outra pessoa em horizontalidade, na capacidade de entender, pensar e decidir, sem ajudismo, ‘buenismo’ 1, protecionismo nem cristianismo. Deixar fora estes ismos hipócritas. Os dados da realidade se expressam em primeira pessoa do singular, porque são assumidos; uma se faz cargo e responsável do que sente e pensa. Também se necessita valentia, pois, ao “estar expressadas”, nos expomos e nos arriscamos a não sermos compreendidas nem queridas. O intercâmbio dialógico pode ser ou não agradável; o que não deve é machucar.2 Nestas condições, tanto o encontro como a ruptura são conseqüências válidas.

E sempre gera movimento, jamais estancamento. O “estar expressadas” é uma recusa à prática da acumulação: de coisas não ditas, de frustrações, de contas pendentes. Intervêm nas relações, por isso é uma ação política, e inspira um movimento sempre vital; a interação se agiliza, se modifica. Ao falar, não apenas sacudimos a letargia, também os preconceitos. A sensação é a liberdade. Este programa ético possui raíz existencialista, beauvoiriana, isto é, confia na capacidade humana de construir cultura, na vontade humana de transcendência a partir do ato criativo e da palavra. Rompe, portanto, com as idéias pré-concebidas, com o dado, com as crenças, com a idéia de deus, com tudo aquilo que nos desresponsabiliza como seres humanas completas em nós mesmas.

O “estar expressadas” abre um diálogo que nos compromete em uma interação consistente e continua com a outra pessoa; não se trata de lançar um dardo e logo esconder a mão. Entregar os dados da realidade a quem está em uma interlocução com nós significa construir um chão firme para que essa pessoa possa caminhar junto a mim, segura e confiada. Não é um gesto de amor ao próximo, isso é lixo cristão, que semeia a culpa e o sacrifício. É um gesto de amor próprio. Eu estou expressada por mim, desde mim, e porque me interessam algumas pessoas – não todas, nem toda mulher por “ser” mulher – com quem posso construir mundo: político, amistoso eu/ou amoroso3. As mulheres estamos cansadas de caminhar pela corda bamba, pisar em ovos, por solos movediços e escorregadios. Nossa história no patriarcado veio sendo essa. Viemos tendo que sobreviver a base de estratégias e manipulações sentimentais. E de silêncios.

A ação de expressar-nos não é mágica. Como disse Pisano, é um ensaio. É necessário experimentar. Simultaneamente, devem ocorrer várias coisas. Por exemplo, recuperar nossos corpos expropriados, postos a servir o mundo dos machos. Começar a escutar nossos corpos, confiar em nossas percepções, dar-nos conta de sua incomodidade, colocar-lhe palavras a dita incomodidade, dar-lhe atenção. Neste sentido, para “estar expressadas”, temos que conhecermos, saber o que passa com nós mesmas, quais são nossos desejos, quando e como operam em nós os preconceitos, medos, fantasmas e demônios instalados por uma cultura fracassada. Por isso, a saída também é política e não apenas individual. Pois conhecer-nos implica ter uma análise crítica, um olhar holístico da cultura que habitamos. Mas, além disso, conhecer-nos históricamente, possuir um conhecimento profundo da história das mulheres, suas rebeldias e dores, que é o prisma que falta para compreender a história da humanidade, que até agora veio sendo uma tergiversação 4 escandalosa de nossas realidades. Necessitamos esse solo firme histórico, ademais.

2013

Referência bibliográfica:

Pisano, M. (2012). El recetario del buen amor. En M. Pisano, Julia, quiero que seas feliz. Santiago: Editorial Revolucionarias.

NOTAS DA TRADUÇÃO:

1 Buenismo é um termo em espanhol, geralmente de caráter pejorativo e satírico, que se refere criticamente às tendências políticas bem intencionadas porém ingênuas, baseadas na idéia de apaziguamento, tolerância à todos posicionamentos, conciliação, políticas de boa vizinhança e pacifismo um tanto quanto alienado que busca evitamento de conflitos. Talvez seu correspondente no Brasil seja a gíria criada na internet, o “Deboísmo”, a pessoa que “apenas quer ficar de boa”, evitar debates ou a ter um posicionamento.

2 A autora falou que o estar expressada ‘não deve machucar’. Porém, muitas vezes uma pessoa expressada (também conhecida como agressiva, ou firme) é sentida como agressiva, pois o que se espera das mulheres é justamente o ‘buenismo’, a gentileza e que sufoquem seus desejos e não coloquem limites. Neste sentido, acho importante que nos tornemos atenta a como muitas vezes, uma ativista pode ser vista como agressiva ou grossa pelo simples fato de ser expressada, ou como a expressão verdadeira e honesta de uma pessoa pode nos machucar porque a verdade costuma machucar, o ‘não’ costuma desagradar, e romper com a feminilidade é visto como ser agressiva, não gentil. Por isso é bom revisar-nos no sentido de ver o quanto nossa reação negativa ou a reação coletiva negativa à uma ativista, ou um imaginário construído acerca dela, se deve a uma reação negativa que a sociedade geralmente possui em torno à mulheres expressadas. Embora o ato de expressar-se não deva machucar, ele machuca porque não estamos preparadas para a comunicação sincera e para interações honestas, com tudo que isso implica no sentido de desencontros de desejos e expectativas que temos umas com as outras. Ainda acredito que é a aposta para rompermos com a misoginia.

3 Quando fala que nem todas as mulheres que escolhemos para sermos expressadas, e sim aquelas que temos afinidade, a Margarita Pisano (de quem Franulic extraiu o conceito de ‘ser/estar expressada’) chama de ‘interlocutoras válidas’, aquelas que consideramos dentro desse projeto de cambio/mudança civilizatória como companheiras e com quem se desenvolveria a chamada amizade política.

4 Tegiversação é um termo pouco usado em português, embora existente, seria uma ‘versão torta’, o torcer a realidade e a experiência e falseá-la por meio de um relato que não é fiel ou correspondente da realidade, senão que uma versão distorcida dos fatos. A autora escreveu um texto sobre rumor, também traduzido pela tradutora deste, sobre o rumor enquanto tegiversação realizada pelo Patriarcado e reproduzida pelas mulheres, a espalhar fatos distorcidos na intenção de destruir e conter mulheres rebeldes que na história, sempre foram difamadas/tegiversadas.