No dia 1° de novembro de 1968, na Argentina, durante a ditadura militar
anterior (1966-1973), em uma casa de imigrantes do subúrbio de Buenos
Aires, um grupo de homossexuais trabalhadores e de classe média baixa,
em sua maioria oriundos do movimento sindical , liderados por um
comunista expulso do partido por ser homossexual, formam Nuestro Mundo, o
primeiro grupo homossexual sexopolítico da América Latina, que trabalha na
clandestinidade. Em agosto de 1971, Nuestro Mundo aproxima-se de
intelectuais de classe média e, mantendo a sua autonomia, é fundada a Frente
de Liberación homosexual (FLH).

Em 1972, é derrubada a ditadura na Argentina e é o momento do apogeu e
esplendor da FLH, que edita o seu primeiro boletim. Participam da
Frente 10 grupos autônomos, incluindo vários de cidades do interior da
Argentina. São eles: Nuestro Mundo (sindicalistas), Safo (lésbicas), Eros
(universitários), Bandera Negra (anarquistas), Emanuelle, bem como
profissionais liberais e católicos (QUÊ???) homossexuais argentinos.

Em 1973, com o retorno da democracia na Argentina, é publicado e
difundido o texto Sexo y Revolución, provocando um grande debate nos grupos
homossexuais e na esquerda. Também é publicado Somos, publicação oficial
da FLH, e primeira revista homossexual da América Latina. Dela chegam a
ser produzidas oito edições,a última publicada em janeiro de 1976, dois
meses antes do golpe de Estado e da nova ditadura militar (1976-1983).
A partir de então, a ditadura seqüestra, desaparece e assassina
milhares de argentinos, entre eles os militantes homossexuais; aniquilando
toda possibilidade de continuidade do movimento.
Devemos começar perguntando quais fatores inerentes ao ser humano -
como espécie – criam, mantém e perpetuam a origem da dominação. Porque, se
não tivermos claros esses fatores, nos seria impossível explicar porque
os seres humanos aceitam e, muitas vezes, defendem a opressão a que são
submetidos, que os priva da saúde física e até da sua liberdade.

Sendo característica do sistema de produção capitalista a produção para
o benefício de uma classe dominante, é interesse desta classe o
estabelecimento lapidar da dominação sobre o resto dos seres humanos. Deste
modo, os indivíduos são moldados para serem dominados e/ou para dominar,
e isto se realiza através de mecanismos psicológicos específicos
poderosos; mecanismos que por fim, acabam sustentando e perpetuando essa
ordem de dominação. O importante é então, discernir os vínculos existentes
entre a estrutura da exploração (extração de mais-valia) e a ideologia
cotidiana que envolve cada um desses atos individuais, por mínimos que
sejam. O propósito, o sentido e o eixo do sistema de exploração é
assegurar a exploração da força de trabalho em benefício de uma classe.
Todos os atos de todos os indivíduos estão dirigidos rumo a esse fim
supremo. Nenhuma área de comportamento individual pode escapar a esta
supradeterminação, caso contrário, o indivíduo seria livre para questionar o
sistema de dominação. É por isso que todos os atos privados e todos os
ator coletivos acabam por serem ator que cumprem uma função política.
Todo ser humano enfrenta, a partir de seu nascimento, um primeiro
grupo: a família. O que significa família? Para um ser como o humano, cujo
período de aprendizagem é o mais longo na escala biológica, faz-se
necessária uma agência social especificamente encarregada de orientá-lo,
ajudá-lo e mantê-lo nesse processo. Isto significa que a família é uma
fábrica de seres humanos sociais. Ora bem, na medida em que um grupo
social alicerçado na exploração necessita de pessoas pré-adaptadas para
entrar no processo de produção alienada, a família, mantenedora, deve
converter-se em uma agência deformadora. Trata-se de uma micro-sociedade que
reproduz em amálgama o sistema que a nutre.

A velha afirmação de que “A
família é a base da sociedade” adquire plena validade, uma vez que
reproduz todas as suas características, visto que é agência de produção
detses seres humanos condicionados ao sistema.

Em uma família-pradão há um detentor do poder, o macho, na medida em
que manipula o poder econômico na família, o poder político na sociedade,
manipula por direito próprio o sistema de relações sociais. O objeto de
sua dominação é, em primeiro lugar, a mulher, e em segundo lugar, os
filhos, que são o produto-mercadoria da fábrica familiar. A finalidade da
família é produzir seres humanos que substituam os seus progenitores em
suas tarefas, inculcando-lhes antes os mecanismos de dominação para que
as realizem sem protesto. Desta maneira se verifica e assegura neste
nível, do mesmo modo que nas outras escalas da vida social, a dicotomia
opressores/oprimidos.

Esta dominação não é só uma questão teórica abstrata, mas que, como já
dissemos, orienta todos os atos cotidianos. Revela-se essencialmente no
poder sexual do macho sobre a fêmea no coito. O coito torna-se uma
instituição estruturada culturalmente para a satisfação do varão, que detém
toda a iniciativa, e que possui o direito legítimo de gozar. Esta
dominação no coito é em última instância, no terreno ideológico, a
manifestação objetiva da dominação da mulher pelo varão na vida cotidiana. Deste
modo a mulher torna-se um objeto de prazer e de reprodução. É
necessário destacar que o sistema lhe impõe a obrigação de realizar as tarefas
domésticas sem dar-lhe o direito a nenhuma remuneração, o que desmascara
a sua verdadeira condição: a escravidão doméstica. A inserção das
mulheres no aparato produtivo minou, relativamente, a autoridade do macho e
inspirou exigências às mulheres. Contudo, as conquistas alcançadas
pelas mulheres não conseguiram alterar – até o momento – a essência do
sistema de dominação machista.

De fato, os varões seguem manipulando as
engrenagens básicas do processo de produção, e continuam desempenhando o
papel de Protagonista no sexo. O núcleo de opressão da mulher, segue
assim intacto.
Esta dupla dominação, na qual a nova igualdade é um blefe, se reproduz,
tem filhos, e se forma para isto. Os filhos são os objetos da dominação
paternal. O pai que controla o dinheiro, possui concomitantemente o
poder de emitir ordens inapeláveis, abonado pela ideologia falaciosa de
que o filho é um incapaz crônico, sem poder, nem direito de escolher seus
atos. É um objeto de possessão de seus pais, situação sancionada pelo
conceito jurídico de pátrio poder. A sexualidade infantil é negada pela
ideologia do sistema; na medida em que, sem dúvida ela existe
objetivamente, esta negação funciona na prática como uma mutilação. Com é
realmente a sexualidade infantil? A sexualidade infantil mostra a variedade
de impulsos e diversidade de objetos que formam a libido humana, e neste
sentido, é a face mais autêntica da vida. A realidade é que na
sexualidade, na multiplicidade, na riqueza de suas potencialidades, está o
primeiro vislumbre de liberdade que encontramos na natureza. E é este
enorme caudal de energia potencial da libido que deve ser desviado em
direção a meta social do trabalho alienado. A castração da sexualidade tem
como objetivo introduzir a dominação característica do sistema na própria
mente, em sua intimidade, a fim de “amolecer” o ser humano em terreno
fértil para a ideologia do sistema. Um ser humano que permita que seus
impulsos sexuais sejam objeto de dominação está preparado para adotar,
sem estranheza, o papel de dominador e/ou dominado. No sistema de
castas, os varões são educados na dominação, e as mulheres na submissão.

O
indivíduo internaliza os mesmos papéis que encontra na família: será o
pai opressor se é macho, ou a mãe submissa se é fêmea. A figura
autoritária é reproduzida portanto na figura da polícia, do patrão, do Estado,
mantenedoras do sistema frente as quais os indivíduos se inclinarão como
frente ao pai. Sendo assim, o esquema de dominação é transmitido
fielmente ao indivíduo através da família.
A dominação da libido culmina com sua redução a determinadas partes do
corpo, os genitais. Na realidade, todo o corpo é capaz de aportar o
gozo sexual, mas a sociedade de dominação necessita da maior quantidade de
zonas do corpo possíveis para agregá-las ao trabalho. A genitalização
está destinada a tirar do corpo sua função de reprodutor de prazer para
convertê-lo em instrumento de produção alienada, deixando a sexualidade
só o indispensável para reprodução. É por isso que o sistema condena
com especial severidade todas as formas de atividade sexual que não sejam
a introdução do pênis na vagina, chamando-as “perversões”, desvios
patológicos etc. Para agrilhoar o ser humano ao trabalho alienado é
necessário mutilá-lo reduzindo sua sexualidade ao genitais. Devemos lembrar
que estes processos se dão dentro de um universo socioeconômico
específico caracterizado pela exploração. As classes dominantes realizam um
manejo muito particular de um processo universal inerente ao ser humano
como espécie: a livre disposição da energia sexual e seus fins.
Este esquema sexual perdeu sua rigidez característica do século 19, e
isto não é casual. Na medida em que o capitalismo se desgasta, à custa
de suas próprias contradições internas, revelam-se suas bases da miséria
econômica e sexual. Mas, na medida em que as necessidades de liberdade
não estão integradas a uma proposição revolucionárias explícita, é o
mesmo sistema único que lhes dá respostas, mantendo as mesmas bases da
opressão sexual mas oferecendo satisfações ilusórias ou substitutivas.

Assim, por exemplo, como resposta a estas exigências, o sistema produz e
encampa uma florescente indústria pornográfica, que transforma o
sujeito em espectador de suas próprias fantasias sexuais, em lugar de
converter-se em feliz ator das fantasias. A quem beneficia a preservação das
pautas morais tradicionais? As classes dominantes,as que asseguram assim
que os indivíduos submetidos a seu império sofrerão um processo de
socialização (“a educação”) destinado a proporcionar-lhes, de forma
contínua, empregados dóceis.
Mas esta não é totalidade do sistema de opressão machista. Aqueles
indivíduos que não cumprem o papel sexual estabelecido, os homossexuais,
são tidos como grande perigo por este sistema, na medida em que não só o
desafiam, mas que também desmentem suas pretensões de identificarem-se
com a ordem da Natureza. A dessexualização do corpo humano é obra da
cultura. No caso do varão, ela interdita o coito anal passivo, a
utilização do ânus como zona sexual, apesar do fato dele estar rodeado de
terminações nervosas eróticas. Também são um grande tabu os mamilos
masculinos, apesar de ser área herógena, apenas por sua semelhança com a
anatomia feminina. Para isso é necessário importar categorias teológicas à
sexualidade humana, e é neste intento que devemos ver a enfermidade da
cultura. Se o sexo tem alguma função, é a de unir os seres humanos em
formas constantemente renovadas e criativas. O contrário significa reduzir
o sexo em uma só de suas possibilidades: a reprodução. É por isso que a
cultura machista necessita qualificar os homossexuais de “degenerados”,
“doentes”, “anormais”, e “delinqüentes”. Na realidade, os homossexuais
reivindicam as possibilidades plásticas inerentes à libido humana, que
o sistema de dominação sexista insiste em mutilar. E o processo de
socialização alienada que introduz a separação entre o bom e o mal, a culpa
e a consciência.

Esta divisão desigual de poder sexual em favor dos
varões heterossexuais se reflete em uma poderosa ideologia: aqueles que
violam suas leis – algumas escritas, outras não, mas totalmente efetivas
e vigentes – recebem não só uma sanção moral que seria a culpa, como
também são penalizados pelo aparato do Estado.
Os homossexuais são emissários da repressão sexual, sobre os quais
recaem os castigos mais severos e imediatos. A Frente de Liberación
Homosexual considera que é chegado o momento de propor e começar a realizar
uma revolução que, simultaneamente com as bases econômicas e políticas do
sistema, liquide suas bases ideológicas sexistas, tendo em conta que,
do contrário, o sistema de opressão se reproduzirá automaticamente
depois de um processo revolucionário que só altere as esferas políticas e
econômicas. Nosso movimento surge como uma organização de homossexuais,
de ambos os sexos, que não estão dispostos a seguir suportando uma
situação de marginalização e perseguição pelo simples fato de exercer uma
das formas de sexualidade. Como temos pretendido demonstrar, esta
perseguição tem uma raiz claramente política. O sexo é uma questão política. E
nesta, medida,a liberação que postulamos não pode ter lugar dentro de
um sistema econômico de dominação, tal como é o capitalismo dependente
argentino. Mas, partindo de nossa própria marginalização, questionamos a
partir dela, a sociedade sexista, e chegamos a um questionamento global
da sociedade. Os homossexuais são um setor do povo que sofre uma forma
de repressão discriminada e específica, originada nos interesses mesmos
do sistema, e internalizada pela maioria da população, inclusive por
alguns setores que se pretendem revolucionários.

Neste sentido, permanecem intactas muitas formas de preconceito
anti-homossexual (homofobia), disfarçados, por vezes de críticas políticas.
Por exemplo, se coloca o título de objeção que a homossexualidade é
produto do capitalismo decadente. Sem dúvida, sociedades que não eram
capitalistas nem decadentes, como a Inca o praticavam e o louvavam. Temos
visto além disso, que a libido humana original não despreza nenhuma das
suas possibilidades. Por detrás desta colocação se esconde a incapacidade
de formular uma ordem nova, uma cotidianidade verdadeiramente
revolucionária.
Outra objeção é que a FLH é um movimento sectário, na medida em que não
se integra aos movimentos de liberação política. A razão é muito
simples:a nós, como a todos os marginalizados, não iremos defender nada,
salvo a nós mesmos. Na verdade, o argumento é uma falácia: de fato aqueles
que nos marginalizam são eles. Algumas colocações tendem a considerar
como contraditório o fato de que, enquanto postulamos a liberação
sexual, nos organizemos como um grupo de homossexuais. Fazê-lo de outro modo
significa dissolver nossa opressão específica, esquecendo que sobre nós
pesa uma condenação explícita. Os oprimidos especificamente pelo
sexismo do seio da sociedade capitalista somos nós, os homossexuais e as
mulheres, e os varões heterossexuais adquirem objetivamente, socialmente
falando, o caráter de grupo opressor. Sendo assim, este caráter de
opressores não é eleito livremente por eles, mas lhe é culturalmente importo
pela sociedade de dominação. Existe uma evidente defasagem entre a
política como atividade externa, social, e a política como atividade
privada, individual, interna. A ideologia não é só uma superestrutura
intelectual montada sobre as bases afetivas do ser humano, estas bases estão
estruturadas em um sentido político, a partir do berço, pela sociedade
em que o indivíduo nasce.

A política é algo que se exerce em todos os
movimentos da vida cotidiana e que transparece em todas as escolhas, por
ínfimas que sejam.
Também por isso o questionamento revolucionário da sociedade de
dominação deve estender-se a todas a suas esferas de atividades. Um práxis
revolucionária que não coloque em juízo de valor a moral burguesa, está
aceitando-a objetivamente e perpetua por um lado o que pretende destruir
pelo outro.A desintegração da vida privada e a ação política
possibilita, além do mais, que muitas pessoas, depois de longos períodos de
militância, sejam recapturadas pela burguesia através da formação de uma
família, da construção de um “lar” e da criação dos filhos. A FLH é uma
organização não verticalista nem centralista de homossexuais – e na qual
também podem participar heterossexuais que renunciem seus privilégios -
que se empenha na tarefa de integrar as reivindicações específicas do
setor homossexual ao processo revolucionário global. É um movimento
anti-capitalista, anti-imperalista e anti-autoritário, cuja contribuição
pretende ser o resgate para a liberação de uma das áreas através das
quais são possibilitadas e sustentadas a dominação da mulher e do homem
pelo homem.

Estamos conscientes que o sistema maneja amplos setores do povo
valendo-se da moral, ou seja, de mentiras interessadas. Estamos conscientes de
que o povo abandonará seus preconceitos, que constituem uma trava
concreta para o desenvolvimento revolucionário, na medida que nós, os
homossexuais, tomemos parte ativa e militante de uma luta que também é nossa.
Chamamos aos homossexuais, às mulheres, aos verdadeiros revolucionários
a realizar o esforço que supões questionar as pautas originais do
sistema de exploração, a fim de que recuperemos a nós mesmos como atores
eficientes de uma revolução sem retrocesso.

Enrique Asis, participante da Frente de Liberación Homosexual (Argentina), foi escrito entre 1973 e 1974.