AINDA RACHANDO

“A irmandade é poderosa. Ela mata. Majoritariamente irmãs.”
– Ti-Grace Atkinson

Fui lembrada desse ensaio hoje, publicado pela primeira vez em 1976. A autora, escrevendo do meio da Segunda Onda do ativismo feminista, descreve em detalhes desoladores o dano psicológico a longo prazo infligido nas mulheres no coração daquele movimento, pelas relações que deveriam justamente nutri-las, ampará-las e libertá-las. Na primeira vez que encontrei esse ensaio, enquanto estudante da graduação com um vago interesse na história da Segunda Onda mas sem nenhuma experiência direta própria em ativismo feminista, li-o com uma certa fascinação perplexa e desconectada, incapaz de compreender como mulheres podiam fazer isso umas com as outras, ou o que poderia explicar essas dinâmicas devastadoras. Hoje, tendo testemunhado a última rodada brutal e implacável de racha direcionado a uma amada amiga minha, e tendo sido alvo disso ontem mesmo, a familiaridade disso tudo torna esse texto quase doloroso demais para ser lido de novo.

Há um certo pequeno conforto a se tirar da percepção de que nada disso é novo: que minha geração não é unicamente não-saudável ou disfuncional, que não somos incomumente incapazes de demonstrar solidariedade e irmandade umas pelas outras, que essas feministas fenomenais, intrépidas e destemidas cujos escritos e ativismo eu admiro tanto sofreram muito das mesmas tristezas que eu sofro, e iriam empatizar com minha dor. Mas isso é acompanhado da tristeza real de que quase quarenta anos depois que o artigo de Joreen foi publicado, fizemos tão pouco progresso. Estamos repetindo os mesmos erros de nossas ancestrais. Outra geração de mulheres brilhantes, comprometidas e apaixonadas está se desgastando. Sendo morta pelo poder da irmandade.

Todas as tendências que Joreen descreve ainda existem. Ainda rachamos mulheres pela frente, e também pelas costas. Ainda ostracizamos. Ainda denunciamos. Ainda damos falsos relatórios sobre as coisas horríveis que outras mulheres disseram ou fizeram. Ainda interpretamos umas às outras impiedosamente. Ainda temos expectativas ridículas e não-razoáveis umas das outras e usamos isso para justificar a raiva e o abuso onde eles não se justificam. Ainda julgamos umas às outras como culpadas por associação, e vemos amizades e relacionamentos como origem de mácula. Ainda nos juntamos para rachar mulheres como nós, usando-as como escudos para desviar a atenção de nós mesmas. Ainda sussurramos nosso apoio ao alvo da vez via canais fechados, mas não falamos nada publicamente, por medo de ser a próxima da fila. Ainda mascaramos a brutalidade disso tudo atrás do véu da “crítica legítima”.

Claro que agora temos todo um conjunto de novas vias através das quais expressamos essas tendências. Nós blogamos. Reblogamos. Twittamos. Subtweetamos. Storifycamos. Printamos. Chamamos atenção. Nós nos aglomeramos. Mobilizamos nossos seguidores. Parodiamos. Fazemos doxxing. Essa coisa de racha se tornou algo muito mais em tempo real, e muito mais inescapável. Se você está envolvida no feminismo online nos últimos dois anos, você quase que certamente já experienciou essa onda de pânico, o pavor doentio e o pulso acelerado, quando seu telefone explode e suas notificações se exaurem, mensagem atrás de mensagem aparecendo para te dizer que ser humano abominável você é. (Desenvolvemos um novo verbo irregular para descrever o que tipicamente acontece no fim dessas aglomerações: eu dou um tempo do Twitter; você desativa a conta por auto-cuidado; ela esperneia.)

Como Joreen, fico preocupada de lavar nossa roupa suja em público — me deixa triste pensar nos homens rindo de nós enquanto assistem a nós nos despedaçando. Somos todas bem versadas nesses estereótipos sexistas de brigas de mulher e mulheres barraqueiras e “vocês não acham que as mulheres são seus piores inimigos?”, e nós sabemos que cada um desses rachas públicos age de acordo com, e reforça esses estereótipos. Mas quero reiterar o ponto que Joreen apontou em 1976 — nada disso é peculiar ao feminismo. Nada disso é específico das políticas ou das relações das mulheres, e ainda que as pessoas pensem que é, é porque aceitaram esses estereótipos sexistas, e aprenderam a desconsiderar os conflitos entre mulheres como sendo brigas histéricas, enquanto tomam os conflitos entre os homens como sendo indicativos de discordâncias políticas substanciosas sérias. Muitas dessas tendências são exacerbadas pelo fato de que somos mulheres — nossa socialização feminina geralmente não nos prepara para passar pelos conflitos e discordâncias de forma leve, e nossa marginalização política significa que podemos ser inexperientes em organização política comparadas aos homens. (Por outro lado, quando brigamos umas com as outras, nações não entram em guerra). Mas as questões psicológicas e estruturais que causam essas fraturas políticas estão presentes não apenas na política feminista, mas nas políticas de esquerda e progressista em geral.

Em nível individual, o que se encontra na esquerda são pessoas que tendem a ser movidas pelos princípios e convicções, e que têm forte comprometimento moral sustentando suas posturas políticas. Então os tipos de mulheres que são levadas ao feminismo são os tipos de mulheres que têm princípios políticos firmes e fortes a que elas são apaixonadamente comprometidas, e que não raro fazem parte de sua identidade e auto-percepção. Por esse motivo, elas geralmente não estão dispostas a desviar desses princípios para se comprometerem com aqueles com quem elas discordam. Uma vez que princípios políticos são uma questão de convicção moral e identidade pessoal, muitas feministas, e esquerdistas em geral, preferem se afastar do movimento a se desfazerem de seus princípios mesmo que minimamente para cooperarem com pessoas cujos princípios são marginalmente diferentes dos seus. Essa convicção — junto com um bocado de narcisismo em pequenas diferenças — resulta em um deslize inevitável em direção a políticas puristas, onde os indivíduos se tornam mais preocupados em manter suas mãos limpas e suas almas livres de poluição a realmente efetuarem uma mudança real no mundo com que dizem se importar. E uma vez que sua doutrina se tornou mais uma questão de salvação pessoal que teoria política, se torna fácil ver aquelas com quem você discorda não apenas como equivocadas, mas como perversas, más, perigosas. Denúncias e ostracismo são justificados, porque as incrédulas são uma ameaça à pureza da doutrina e à própria identidade, e devem ser impedidas.

Isso combina mais com características estruturais de uma situação em que esquerdistas se encontram — ou seja, o fato de que o sistema é tão completamente injusto, os problemas são tão aparentemente intransponíveis e a mudança que se quer fazer no mundo parece tão profundamente impossível de se realizar que um tipo de desespero e desânimo se abate. A vitória é tão intangível e além do alcance dos esquerdistas, dado que a mudança desejada é nada mais que a completa transformação do panorama político e social. Como feministas, queremos acabar com a violência masculina contra as mulheres, eliminar a exploração do trabalho feminino, e abolir as normas opressivas de gênero. Esses objetivos estão muito longe do nosso alcance, e as vitórias em geral parecem poucas e distantes umas das outras, então não há muita oportunidade para comemorar, ou o sentimento de satisfação e gratidão de uma batalha ganha. Mas enquanto não podemos vencer a guerra contra o patriarcado, estamos a uma distância razoável de vencer a batalha contra nossas amigas. E independente de ganharmos ou não essas batalhas, nós certamente temos algum tipo de resposta; enquanto o patriarcado permanece imóvel diante da nossa fúria, brigar com uma irmã a respeito de alguma discordância pequena é garantia de se conseguir algum tipo de reação. Não surpreende então que desferir socos em nossa irmã seja uma opção mais gratificante e atraente que continuar a bater desesperada e desapercebidamente em nosso inimigo mútuo.

Então, o resultado é que aqueles à esquerda são frequentemente levados a brigar e se rachar, em vez de trabalhar juntos para tentar derrotar seu inimigo comum. E incorporada a essa política progressista está uma justificativa ostensiva de se selecionar um alvo, na forma de um profundo comprometimento com a igualdade e um inerente desprezo pelo poder e pela autoridade. Um dos aspectos mais característicos das ideologias políticas de esquerda é um comprometimento com a igual distribuição de poder e o desmantelamento de hierarquias estabelecidas, e o feminismo não é diferente nesse aspecto — desafiar o poder dos homens sobre as mulheres, assim como desafiar as dinâmicas de poder de raça e classe dentro do nosso próprio movimento, é essencial ao ativismo feminista. Mas uma implicação desse igualitarismo e rejeição de hierarquia é a suspeita insidiosa de qualquer pessoa que obtenha status ou sucesso fora do movimento. Qualquer pessoa na esquerda que consiga alcançar alguma influência política se torna instantaneamente um alvo válido para racha, pois sua influência (ou “plataforma”) é vista como um tipo de privilégio que o movimento se dedica a desmantelar. Para as mulheres, isso é exacerbado pelos estereótipos sexistas a respeito da mulher poderosa: ela é insolente, uma castradora, ela não é feminina nem fodível.

O desfecho disso tudo é que qualquer mulher que demonstre ter algum talento, ambição e determinação e que tenta conseguir algum poder e influência no que ainda é um mundo de homens pode estar desenhando em suas próprias costas um alvo. Ela é um objeto perfeito para se rachar, porque fez o que outras mulheres não conseguiram, e arrumou para si um lugarzinho nesse ambiente dominado por homens. Nada mais pode explicar porque tanta virulência feminista é direcionada ao punhado de mulheres de poder e influência na mídia e na academia, e não aos homens que detém a estrutura de poder e privilégio. Não importa que ela use seu poder para ajudar outras mulheres a avançarem. Não importa que ela tenha noção de que a sorte e o privilégio ajudaram-na a chegar ao sucesso. A mulher com poder e influência é perfeita para se rachar, e será acusada de atropelar os outros em seu caminho em direção ao topo, independente de isso ser ou não verdade. E ao fazer isso, estamos implicitamente dizendo às mulheres que não é feminista ser bem sucedida, ter poder e influência, mesmo que você possa usar esse poder e influência para avançar causas feministas. A coisa mais feminista que você pode fazer é sentar-se e calar a boca. Mas a consequência disso não é uma ruptura do poder estabelecido. A consequência disso é que homens continuam tendo esse poder.

Não tenho nenhuma solução para isso.Acho que esses aspectos explicam porque movimentos de esquerda em geral tendem a conflitos internos, fratura e dissolução, e são parte da razão do porquê a esquerda se despedaça em frangalhos, enquanto a direita apenas toca o barco e consolida seu poder. Também penso que enquanto feministas temos o direito de desafiar as relações de poder e hierarquias estabelecidas, e de manter nossas teorias e ativismo sob escrutínio e reflexão críticos. Mas quarenta anos depois de nossas ancestrais feministas escreverem pela primeira vez a respeito disso, estamos ainda nos despedaçando, e nosso inimigo comum se regozija enquanto isso. Mulheres inteligentes, gentis e compassivas estão se ferindo nessa guerra, e vamos perder nossas brilhantes e melhores vozes enquanto muito poucas mulheres têm estômago para esse infinito, implacável racha e assassinato de reputação daquelas do seu próprio lado.

Como Joreen, experienciei isso por tempo suficiente para que me prejudicasse psicologicamente, me ferisse enquanto pessoa e minasse minhas capacidades enquanto feminista. Independente de isso ser comum, eu não sei, mas fui alvo por vezes o suficiente no passado de modo que isso me dói menos quando é direcionado a mim pessoalmente; o que realmente me aflige agora, o que me faz verter lágrimas de raiva e frustração, é ver isso acontecendo com mulheres que amo. Não estou escrevendo isso para buscar simpatia e compaixão. Nem quero terminar esse texto com uma chamada banal e simplista por solidariedade e coesão em nosso movimento fraturado. Minha aposta é que ou você se atrai por esse tipo de idéia ou não se atrai; se não se atrai, nenhum montante de blogagem angustiada e desanimada vai te fazer mudar de idéia. Quero acreditar que apesar de nossas muitas diferenças e da multiplicidade de experiências que trazemos para a discussão, há comunalidade suficiente entre as mulheres para nos tornar um movimento de classe politicamente coeso capaz de trabalhar em conjunto e formar uma comunidade entre nós.

Se você não se sente assim a meu respeito, respeito seu direito de se organizar sem mim, e te desejo o melhor. De minha parte faço aqui as seguintes promessas:

Não participarei em rachas, não importa o quão pouco eu goste da mulher em questão, ou o quanto eu discorde de suas políticas
Assumirei que outras mulheres agem de boa fé e interpretarei suas posições de forma caridosa
Celebrarei quando uma mulher alcançar sucesso de qualquer tipo — e se eu realmente não conseguir comemorar, guardarei meu desapontamento para mim mesma
Colocarei o bem estar das mulheres e o progresso de nossos objetivos comuns acima da minha pureza pessoal
Imagino que esse post me tornará impopular. Que o meu racha comece!


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(Texto publicado originalmente no blog More Radical With Age. Traduzido com permissão da autora.)