Alguns pensamentos sobre feministas heterocentradas

fevereiro 24, 2010 por delirias

A participação dos homens dentro do feminismo é intrinsecamente danosa a todo o movimento, independente de qual seja o conteúdo do que dizem, as boas intenções ou a coerência de suas palavras. Sua participação já é em si mesmo uma mensagem: vocês mulheres não tem poder de transformar a sociedade com suas próprias mãos. Sua participação é intrinsecamente um argumento sobre nossa dependência.

Nunca se argumenta, em momento algum, que uma sociedade composta inteiramente por negros seria inviável. Todos compreendemos o quanto esta asserção é ofensiva: ‘dizer dos negros serem incapaz de gerenciar seu próprio mundo, livres dos brancos? Racismo! Concepção evolucionista’.

Mas já não é o mesmo que se afirma sobre nossa independência em relação aos homens. Mesmo quando imaginamos uma sociedade anarquista, uma sociedade comunista e/ou uma sociedade negra, poucas de nós conseguem imaginá-la livre do modelo familiar heterossexual: homens fodendo mulheres que dão luz a seus filhos. Diz-se “inviável” uma sociedade que não dependa desse modelo de reprodução – não soa “natural”

Ao não perceber esta possibilidade, feministas heterocentradas começaram a dar uma importância cada vez mais importante aos homens, valorizando cada vez mais sua presença em nossos espaços – a um ponto que chegam a priorizar suas palavras em detrimento das companheiras, por medo de “perdê-los”.

Pois de fato, não se vendo livres dos homens, como acabar com a misoginia sem que se transforme a posição dos opressores? Sensibilizar quem possui poder para que não exerça a violência, para muitas, parece mais eficaz do que fortalecer nossa própria classe oprimida – afinal, o foco em nos fortalecermos lança-nos diretamente na esfera do confronto

Feministas heterocentradas sobretudo acreditam nisso: em transformações sociais desprovidas de conflitos e confrontos. O que sobretudo ocorre nestas circunstâncias é que determinadas mulheres tornam-se reféns da participação masculina.

Uma das acusações mais freqüentemente dirigida a nós separatistas é que lidamos com Homens enquanto uma categoria abstrata, ao invés de focarmos em suas histórias “concretas e singulares”. Categoria que nos simboliza todo o medo que sentimos de termos nascido mulheres.

Ocorre que, entretanto, as feministas heterocentradas não são menos ‘simbólicas’ ou abstratas quando lidam com homens: é muito freqüente que o mesmo argumento defendido por um rapaz seja bastante mais incentivado e elogiado do que outro defendido por uma moça (situação muitas vezes não percebida pelas feministas). Então não se trata da concretude de modo algum.

A diferença é que, se para nós Homens simbolizam a violência que sofremos, as feministas heterocentradas os tomam como símbolo de algo pior: aprovação masculina.

Não são poucas as mulheres que enfrentam o medo da solidão e da loucura quando começam a erguer sua voz em torno do feminismo. Perceber que precisamos desafiar aqueles que até ontem eram nossos ‘heróis’, nossos ‘príncipes’, nos coloca em uma situação de enorme fragilidade emocional.

Nossas educações (familiares, escolares, midiáticas) nos ensinam que todo laço com outra mulher (irmã, amiga, mãe), por mais importantes que sejam, são sempre secundários em relação à profundidade de laços que devemos construir com um homem. O sofrimento que muitas de nós vivem ao longo de um divórcio costuma ser significativamente maior do que quando cortamos laços com uma amiga – a casa torna-se vazia, todo o mundo torna-se vazio, e inclusive nossas relações com outras mulheres são consideradas “vazias”. A descrença no peso dos vínculos que podem ser estabelecidos com outras mulheres torna nossa auto-estima e auto-confiança dependentes de um universo de imagens e opiniões predominantemente masculinas, dentro do qual não temos qualquer poder real de transformação – podemos performar “esta” ou “aquela” imagem de mulher, mas não temos autonomia para construí-las nós mesmas.

Diante de toda essa fragilidade, quando surge um homem à nossa frente dizendo-se feminista, defendendo argumentos que coincidem com os de nossa luta, concordando com palavras com as quais tanto temíamos ferir as pessoas que amávamos, isso gera uma enorme tranqüilidade em nossos corações. “Afinal, existem homens bons, não preciso tremer de medo com a possibilidade de separar-me deles”.

E é com base nessa mesma fragilidade e insegurança que homens “feministas” manipulam mulheres, tornando-as reféns dentro do movimento.

Certamente, homens “feministas” lêem textos feministas. Entendem nossa linguagem, nossos conceitos. Mas, sobretudo, diferenciam (com ou sem clareza de fazê-lo) aqueles argumentos que efetivamente lhes colocam em cheque, daqueles que comodamente mudam pouca coisa.

Seus discursos e textos são nossas palavras, as mesmas, no entanto recortadas e coladas na medida do que lhes parece conveniente.

Alguns exemplos: quando nós mulheres afirmamos que o problema não é “este ou aquele homem individualmente”, mas toda uma sociedade patriarcal, dificilmente dormimos tranqüilas – sabemos que o perigo está em qualquer canto, nas pessoas que mais amamos e nos momentos que menos esperamos.

Mas quando homens “feministas” lêem e afirmam isso, certamente estão dormindo tranqüilos – vêem que o problema não está “neles”, mas no sistema, e logo que se afirmam ‘feministas’ inocentam-se de tudo o que fazem ou venham a fazer (nos limites evidentes daquilo que chamam “exercício auto-crítico”, é claro, todo homem ‘feminista’ lava as louças de vez em quando).

A sexualidade é um outro campo em que a cumplicidade deles é nitidamente seletiva: todos conhecem, de cor e salteado, maneiras diversas de criticar “o culto à menina santa e a execração das putas”, ou “o fato de que homens tem liberdade para transar com 5 numa noite, mas uma mulher que transa com um único homem na primeira noite é discriminada” – um tipo de discussão cujos exemplos sempre pressupõem um erotismo heterossexual.

Mas quando se trata de resistir ao sexo, resistir à obrigação das fodas heterossexuais, ou qualquer incentivo às práticas lesbianas, dificilmente há apoio por parte dos mesmos.

Freqüentemente existem diferenças e discordâncias dentro do feminismo, e é nesses momentos cruciais que os homens fazem um jogo perverso, utilizando a fragilidade emocional das mulheres heterocentradas: a cada conflito, elogiam e apóiam as mulheres que sustentam os argumentos mais convenientes, e subsumem seus próprios interesses como sendo de interesse delas.

Vendo-se atacadas por outras mulheres (no que muitas vezes não passa de uma discordância banal), as mulheres elogiadas vinculam-se à aliança construída, e passam a defender os argumentos masculinos mesmo quando eles não se encontrem diretamente presentes. Dessa forma, defendem do temor que implica uma separação efetiva do mundo masculino – ao mesmo tempo em que inviabilizam possibilidades reais de fortalecer-se, bem como seus laços com outras mulheres.

Por muito tempo, a impossibilidade dos homens participarem dentro do feminismo se pautou no argumento de que nunca conseguiriam entender muito bem nossas experiências enquanto mulheres. Mas essa crítica é inexata: homens letrados no feminismo percebem, e perfeitamente bem, a fragilidade na qual as mulheres se encontram – e fazem uso disso a seu próprio favor.

O problema não está em “sensibilidade” ou “percepção”, mas na posição de poder que uma sociedade lhe confere: a vida dos homens não depende do feminismo. Pra eles, basta que sua mulher receba um salário mais alto (com o qual muito ‘conscientemente’ aprenderam a não se intimidar), seja liberada sexualmente, tenha a possibilidade de abortar quando lhe for conveniente.

Com isso, não quero dizer que não existam homens genuinamente interessados na destruição do patriarcado. Esse interesse tampouco se trata de “sensibilidade” ou “percepção”, mas de implicação afetiva ao se deparar com uma realidade social que ceifa a vida de muitas pessoas que lhes são queridas – constatação que certamente não lhes garante um sono mais tranqüilo. Mas o entendimento geral dos homens que efetivamente respeitam o feminismo é de não sobreporem suas próprias questões às questões das mulheres, e respeitarem a autonomia dos espaços que servem ao fortalecimento das mesmas: suas falas nunca são dirigidas contra as “feministas radicais demais” que pedem para que se retire, criando circunstâncias que dividem o movimento, mas atuam FORA do feminismo em outras batalhas que concernem o demantelamento do patriarcado (anti-racismo, libertação animal, anti-colonialismo, etc).

Para que nós mulheres possamos construir uma autonomia efetiva, precisamos nos livrar efetivamente de todo e qualquer movimento direcionado à aprovação masculina. Não há nada que dê aos homens o direito de opinar sobre o que pensamos, como nos vestimos, do que falamos e que mundo pretendemos construir. Para que possamos viver isso efetivamente, é necessário que nossos relacionamentos entre mulheres sejam consolidados como fonte real de nossa auto-estima.

Nisso consiste sermos Lesbianas. Não se trata simplesmente de “dormirmos com outras mulheres” – algumas o fazem, outras não, mas se existe algo no que nossa identidade NÃO está centrada é sobre algum tipo de exercício da sexualidade. Trata-se do exercício cotidiano de aprofundarmos o peso de nossos relacionamentos com outras mulheres, para que a construção de nossas referências e auto-estimas esteja em nossas próprias mãos.

Todas referências que norteiam, pautam e educam o erotismo heterossexual (pornografia e prostituição) são zonas construídas e dominadas por homens. Mulheres que trabalham nestes espaços podem alcançar alguns “privilégios” individualmente, mas a construção de referências permanece submissa àqueles que possuem o poder político/econômico em jogo (no caso da pornografia e da prostituição, o cliente – homem).

Quem somos nós? Que dores e sofrimentos vivenciamos todos os dias em nome da manutenção das normas instituídas? O que desejamos com nossos próprios corpos? Por quais espelhos, por quais referenciais, desejamos nos ver e ser vistas?

Aqueles que distorcem todo tipo de imagem sobre nós mesmas para que caibamos dentro de ideais que nos fazem sofrer não são dignos de nosso amor. Lesbianas, somos mulheres que fizemos da dignidade nosso amor por outras mulheres, com quem temos poder real para construir quem desejamos ser e o mundo em que desejamos viver.