Prefácio do coletivo de tradução

Traduzimos esse texto pela ânsia de trazermos para o português e difundirmos pontos de vista não-brancos sobre o veganismo. O texto em questão apresenta uma visão de povos originários da América do Norte e ainda por cima sob uma ótica feminista. Como o veganismo muitas vezes é desclassificado por seus críticos como um privilégio das pessoas brancas de classe média, aqui temos um contraponto.

Da etnia Mi’kmaq, a autora Margaret Robinson é uma pesquisadora e ativista bissexual e vegana. Robinson possui PhD pela Universidade de St. Michael’s College e é apaixonada pela teoria pós-colonial e autogoverno aborígene. Ela já foi editora do Journal of Postcolonial Networks e atualmente é membro da direção da Postcolonial Network.

No site de Margaret Robinson, há um breve resumo do texto a seguir:

Este artigo se propõe uma leitura pós-colonial e ecofeminista das lendas Mi’kmaq como uma base para uma dieta vegana ou vegetariana enraizada na cultura indígena. As lendas Mi’kmaq retratam os animais como irmãos do Lnu’k (o povo). Ao invés de domínio sobre os animais, a vida humana e animal são apresentadas como parte de um contínuo espiritual e físico. Estas lendas oferecem uma alternativa ao difundido modelo de dominação/controle das relações entre humanos e animais encontradas na história que o primeiro livro da Bíblia, Gênesis, conta. O desenvolvimento de leituras ecofeministas das histórias tradicionais é complicado pela natureza que vincula gênero e produção e consumo de comida na cultura Mi’kmaq. Uma análise crítica ecofeminista das lendas Mi’kmaq nos fornece um fundamento indígena para a prática vegetariana ou vegana enquanto nos oferece um ponto de vista crítico sobre assuntos como a indústria da pesca indígena.

Veganismo e Lendas Mi’kmaq: Nativas Feministas Comem Tofu

Este artigo propõe uma leitura ecofeminista pós-colonial das lendas Mi’kmaq como base para uma dieta vegana enraizada na cultura indígena.1 Tal projeto se depara com duas barreiras significativas. A primeira é a associação entre veganismo e branquitude.

Drew Hayden Taylor descreveu se abster de carne como uma prática de pessoas brancas (Taylor 2000a, 2000b). Em uma piada no começo de seu documentário, Redskins, Tricksters and Puppy Stew, ele faz a pergunta: “Como você chama um Nativo vegetariano? Um caçador muito ruim.” O ecologista Robert Hunter (1999) descreve as pessoas veganas como “eco-jesuítas” e “fundamentalistas vegetarianas”, que “forçam indígenas a fazer coisas do modo do homem branco” (p. 100-113). Ao projetar o imperialismo branco nas pessoas veganas Hunter legitima as onívoras brancas a se conectarem com as Nativas através do hábito de comer carne. Em Stuff White People Like, o autor satírico Christian Lander (2008) retrata o veganismo como uma tática para manter a supremacia branca. Ele escreve: “Como com muitas atividades das pessoas brancas, ser vegana/vegetariana permite com que elas sintam como se estivessem ajudando o meio ambiente e lhes dá uma forma meiga de sentirem superiores às outras” (p. 38).

Quando o veganismo é construído como uma coisa das pessoas brancas, aquelas pessoas das Primeiras Nações que escolhem uma dieta sem carne são retratadas como se estivessem sacrificando sua autenticidade cultural. Isso apresenta um desafio para aquelas de nós que vêem nossas dietas veganas como compatíveis cultural, espiritual e eticamente com nossas tradições indígenas.

Uma segunda barreira ao veganismo indígena é a forma como ele é retratado como um produto do privilégio de classe. Oponentes alegam que uma dieta vegana é uma indulgência uma vez que as pessoas mais pobres devem comer qualquer coisa que estiver disponível, e não podem ser tão exigentes. Por uma lógica similar, as pessoas pobres não podem abster-se de comer caviar ou trufas. Os argumentos baseados em classes assumem que especialidades altamente processadas ou frutas e vegetais importados compõem a maior parte de uma dieta vegana. Eles também ignoram o custo da carne, e assumem que as indústrias subsidiadas de carne e laticínios da América do Norte são representativas do mundo.

A minha proposta não é de substituir uma cultura alimentar tradicional e vibrante com uma outra associada com a cultura das pessoas brancas privilegiadas. O modelo de alimentação da maioria dos Mi’kmaq já é branco, e é complicado pela pobreza. Como uma participante do estudo de Bonita Lawrence sobre a identidade indígena urbana de sangue mestiço explicou: “As pessoas se habituaram a pensar que a pobreza é indígena – e então a sua sopa de macarrão e a sua dieta pobre são indígenas” (2004, p.235). A falta de acesso a comidas nutritivas é um problemas que indígenas têm em comum com outros grupos racializados oprimidos economicamente. Como argumenta Konju Briggs Jr. (2010), do Instituto Africana na Faculdade Distrital de Essex: “Nos E.U.A., as comunidades pobres de cor são frequentemente privadas de acessos a comidas frescas e saudáveis, e são desproporcionalmente atingidas com as doenças das dietas e estilos de vida ocidentais.” Ele identifica isso como uma tática da guerra de classes, com o objetivo de “evitar que as pessoas cronicamente mais pobres sejam capazes de serem saudáveis, tenham longa expectativa de vida, sejam altamente funcionais e se destaquem como seres humanos” (parágrafo 28).

Diversas pesquisadoras (Johnson 1977; Travers 1995; Mi’kmaq Health Research Group 2007) notaram que o sistema de reservas produziu uma dieta que é alta em açúcares e carboidratos e baixa em proteína e fibra. Como resultado, o povo Mi’kmaq viu um grande crescimento na obesidade, diabetes e pedras nos rins. A professora de ecologia humana, Kim Travers (1995), citou três causas de dietas pobres em nutrientes entre Mi’kmaqs: baixa renda, falta de acesso a transporte e reservas que não são apropriadas para a agricultura, a pesca e a caça. Travers percebeu que as habitantes das reservas são freqüentemente limitadas a comer proteínas altamente processadas como manteiga de amendoim, salsicha e molho bolonhesa.

Tradicionalmente, a dieta Mi’kmaq continha muita carne, consistindo de castor, peixe, enguia, pássaros, porco-espinho e, às vezes, animais maiores como baleias, alces ou caribus, suplementada com vegetais, raízes, nozes e frutas silvestres. No idioma Mi’kmaq a palavra para comida é a mesma que para castor, estabelecendo a carne como modelo do que é comestível. O uso de animais como comida também tem um papel proeminente nas lendas Mi’kmaq.

A produção e consumo de comida é associada ao gênero na cultura Mi’kmaq. Caçar era uma atividade masculina conectada com a manutenção da virilidade. O primeiro animal que um menino matava em uma caçada servia como um símbolo do seu ingresso no mundo dos homens. Rejeitar a caça é também rejeitar um método tradicional da construção da identidade masculina. Mas o contexto no qual esta identidade é construída mudou significantemente desde a chegada dos colonizadores europeus. Carne, como um símbolo do patriarcado compartilhado com as forças colonizadoras, é comprovadamente mais assimilador do que práticas como o vegetarianismo.

A teóloga veganafeminista Carol J. Adams (1990) argumenta que a criação da carne como um conceito exige a remoção da nossa consciência do animal cujo corpo nós estamos redefinindo como comida. Adam escreve:

“A função do referente ausente é manter a nossa “carne” separada de ideia de que ela ou ele já foi um animal, manter o “muu” ou o “cocó” ou “béé” longe da carne, evitar que o algo seja visto como alguém. Uma vez que a existência da carne está desconectada da existência de um animal que foi morto para se tornar essa “carne”, a carne se desassocia de seu referente original (o animal) se tornando ao invés disso uma imagem independente, usada freqüentemente para refletir o status das mulheres tanto quanto o dos animais" (pág. 14-15).

Enquanto é evidente no comércio de peles, na indústria pesqueira e nas fazendas industriais, essa desassociação que Adams descreve não faz parte dos fundamentos dos mitos Mi’kmaq. Nessas histórias a alienação da vida animal, que torna o ato de comer carne psicologicamente confortável, é substituída por um modelo de criação no qual os animais são retratados como nossas irmãs e irmãos. Nas lendas Mi’kmaq a vida humana e animal fazem parte de um contínuo, espiritual e fisicamente. Animais falam, são capazes de se transformar em humanos, e alguns humanos casam-se com essas criaturas metamorfas e criam crianças animais.² Magos humanos podem assumir a forma de um animal, alguma pessoas se transformam no seu animal de totem e outras ainda se transformam em animais contra a sua vontade³. Uma análise ecofeminista das lendas Mi’kmaq nos permite enquadrar o veganismo como uma prática espiritual que reconhece os humanos e outros animais como possuidores de uma pessoalidade compartilhada.

As lendas Mi’kmaq retratam os seres humanos como intimamente conectados com o mundo natural, não como entidades distintas dele. A História da Criação Micmac reconta a criação de Glooskap, sua avó e, freqüentemente, seu sobrinho e sua mãe. Glooskap é formado da argila vermelha do solo e inicialmente não tinha mobilidade, ficando deitado de costas na terra (Burke, 2005b;). Sua avó era originalmente uma rocha, seu sobrinho, espuma do mar e sua mãe, uma folha. Na história de Nukumi, a avó, o Criador faz uma mulher idosa, a partir de uma rocha coberta de orvalho. Glooskap a encontra e ela concorda em se tornar sua avó, fornecendo sabedoria em troca de alimento. Nukumi explica que, como uma senhora idosa, ela precisa de carne pois não pode viver somente de plantas e frutas silvestres. Glooskap chama Marta, e pergunta se ele doaria a sua vida para que a avó de Glooskap pudesse viver. Marta concorda por causa da sua amizade. Por este sacrifício, Glooskap faz de Marta seu irmão. Essa história representa, através dos personagens de Glooskap e Marta, a relação básica do povo Mi’kmaq com as criaturas ao seu redor. Os animais estão dispostos a fornecer alimento e vestimenta, abrigo e ferramentas, mas eles devem ser tratados com o respeito dado a um irmão e amigo.

A História da Criação Micmac conta do nascimento do sobrinho de Glooskap a partir da espuma do mar presa no capim. Para celebrar a chegada do sobrinho, Glooskap e sua família tem um banquete de peixes. Glooskap chamou o salmão dos rios e mares para virem à margem e doarem suas vidas. Embora não seja livre de problemas, esta dinâmica é aberta à possibilidade da recusa por parte do animal. A história também corrói a visão difundida de que humanos possuem o direito inato de usar a carne de animais como comida. Glosskap e sua família não querem matar todos os animais para sua sobrevivência, indicando moderação nas suas práticas de pescaria. O tema é a dependência, e não a dominação.

A sobrevivência humana é a justificativa para a morte dos amigos animais de Glooskap. Os animais possuem uma vida independente, o seu próprio propósito e as suas próprias relações com o criador. Eles não são feitos para servir de alimento, mas se tornam comida por sua própria vontade como um sacrifício para seus amigos. Isso é bem diferente da perspectiva do caçador branco, na qual os animais são retratados como algo que necessita de controle populacional, transformando a matança em um serviço prestado, ao invés de um serviço recebido.

Uma exceção interessante a isso é a História de Glooskap e Seu Povo, que culpa os próprios animais pela agressão do homem contra eles. Neste conto, Malsum, uma contraparte malévola a Glooskap, volta os animais contra o herói. Glooskap anuncia: “Eu fiz os animais para serem amigos do homem, mas eles agiram com egoísmo e traição. Portanto, eles serão nossos servos e fornecerão vocês com alimento e roupas” (Hill, 1963, pág. 24). Aqui, Glooskap, não o Criador, é a origem da vida animal, e possui poder sobre eles. A visão harmônica original se perde e a desigualdade a substitui como punição por darem ouvidos a Malsum. Desta forma, a história é similar à expulsão de Adão e Eva do Jardim do Éden, com os animais assumindo o lugar de Eva. Glooskap mostra aos homens como fazer arcos, flechas e lanças. Ele também mostra às mulheres como extrair as peles e fazer roupas.

“Agora vocês possuem o poder até mesmo sobre as maiores criaturas selvagens”, ele disse. “Mas eu encarrego vocês de usarem este poder gentilmente. Se vocês caçarem mais do que precisam para comida e vestimenta, ou matarem pelo prazer de matar, então vocês serão visitados por uma gigante impiedosa chamada Fome.” Mesmo nessa história, que tenta justificar a dominação, a relação apropriada com os animais é somente para alimento e vestuário. Os animais mantêm o direito às suas vidas, e os seus direitos não podem ser levianamente descartados.4

Essas histórias caracterizam os animais como povos independentes com direitos, vontades e liberdade. Se é necessário o consentimento dos animais para justificar o seu consumo, então abre-se a possibilidade de este consentimento ser revogado. A pesca e a caça exageradas, e a destruição em massa de seu hábitat natural, podem certamente dar razões aos animais para repensarem o acordo.

Outra característica de algumas histórias Mi’kmaq é o arrependimento que vem com a morte do animal. Em A História do Carcaju e Seu Irmãozinho (Rand 1893/2005) os pássaros são convidados para uma tenda e instruídos a fechar seus olhos.5 O carcaju começa a matar os pássaros. Seu irmão, sentindo culpa por matarem mais do que precisavam para comer, alerta os pássaros e os ajuda a escapar.

Na história de Nukumi e Fogo (Burke, 2005), Nukumi quebra o pescoço de Marta e o coloca no chão, mas Glooskap imediatamente se arrepende de suas ações. Nukumi fala com o Criador e Marta é trazido de volta à vida e volta ao seu lar no rio. No chão agora jaz o corpo de uma outra marta. Este aspecto da história é um conto ambíguo sobre porque comemos animais. Marta está tanto morto quanto vivo — morto como uma marta disponível para o consumo pela avó, mas vivo como Marta, o amigo de Glooskap e seu povo. As Aventuras de Katoogwases (Rand, 1893; 2005, 200-211) conta como a avó de Glooskap usou magia para obter quantidades ilimitadas de carne de castor de um único osso, refletindo uma vontade de abundância desconectada da necessidade de caçar.6

Arrependimento e parentesco também aparecem na história de Muin, O Filho da Ursa (Burke, 2005 a). Em uma versão deste conto um jovem menino, Siko, é aprisionado em uma caverna por seu malvado padastro e deixado para morrer. Os animais o ouvem chorando e tentam resgatá-lo mas somente a mãe ursa, Muiniskw, pode movimentar as rochas que bloqueiam a entrada da caverna. Siko é criado como urso. Mais tarde a família urso de Siko é atacada por caçadores e sua mãe é morta. Ele se dirige aos caçadores: “Eu sou um humano, como vocês. Poupem a filhote ursa, minha irmã de adoção.” Os índios maravilhados abaixam suas armas e alegremente poupam a filhote urso. Eles sentem muito por terem matado a mãe urso, que havia sido tão boa com Siko. Aqui vemos que o arrependimento com a morte de animais é contextualizado pela relação de parentesco entre humanos e animais. No fim da história, Siko declara: “Eu me chamarei Muin, o filho da ursa, deste dia em diante. E quando eu estiver crescido e for um caçador, nunca matarei uma mãe ursa ou crianças urso!” Em outras versões da história Muin se revela antes dos ursos serem mortos, e mostram os Mi’kmaq poupando todas as mães e filhotes urso daí em diante em gratidão a Muiniskw pela sua proteção ao garoto.

Este arrependimento também é expressado em rituais que cercam o ato de caçar. O ancião Mi’kmaq Murdena Marshall descreve um desses rituais: uma dança “para agradecer ao espírito do animal por dar a sua vida para servir de alimento. Na dança, mostram-se as habilidades de caça através de uma reencenação da caçada. As pessoas cantam e compartilham histórias enquanto a dança é realizada” (Confederacy of Mainland Mi’kmaq, 2001, 80).

Em contraste com a visão iluminista de humanos distintos dos animais pela fala e pelo pensamento, aqui os animais não apenas são capazes de pensar e falar, mas podem ser considerados iguais como pessoas. O valor do animal não está em sua utilidade para o homem, mas na sua própria essência como ser vivo.

Nem todas tradições alimentares Mi’kmaq são centradas na carne. A mãe de Glooskap era uma folha em uma árvore a quem o sol deu forma e vida humanas. O banquete celebrando o nascimento da mãe de Glooskap é completamente vegetariano, e o sobrinho, cujo papel é geralmente o de caçador, se torna coletor neste caso. Se nós reconhecermos que as atividades tradicionalmente executadas pelas mulheres Mi’kmaq, como a coleta de frutas, vegetais e nozes, são também, em sua integridade, tradições indígenas, então poderemos formar narrativas que contrariam a promoção da carne.

Os valores obtidos de uma análise ecofeminista das histórias Mi’kmaq podem servir como ponto de partida para um veganismo indígena. A personificação dos animais, sua autodeterminação e o nosso arrependimento com a sua morte, todos mostram que escolher não pedir o seu sacrifício é uma legítima opção Mi’kmaq. Já que a cultura vegana testemunha que o consumo de animais para alimento, vestuário e abrigo não é mais necessário, então a tradição Mi’kmaq sugere que a caça e morte de nossos irmãos e irmãs animais não é mais autorizada. Se foram as mulheres que iniciaram a caça, como na história da avó de Glooskap, então certamente nós estamos empoderadas para acabar com ela.

Porque as pessoas nativas são alvo de genocídio, as práticas culturais que nós adotamos ou rejeitamos são vitalmente importantes. Bonita Lawrence (2004) lembra que as práticas diárias têm sido historicamente usadas para avaliar as alegações de autenticidade de identidade indígena, e conceder o status de Indígena. Algumas pessoas podem argumentar que a incorporação dos valores Mi’kmaq em novas práticas, como veganismo, não é um desenvolvimento legítimo. Mas essas pessoas que valorizam apenas a preservação de uma tradição imutável se unem aos poderes coloniais ao não verem espaço para uma indigenidade contemporânea. Principalmente como mulheres, nossa cultura e nossa relação com a terra são mais, do que caçar e matar animais.

A pesca comercial moderna, freqüentemente promovida como possibilidade de segurança econômica para as comunidades nativas, é na verdade mais distante de nossos valores Mi’kmaq que as práticas modernas veganas. A primeira vê os peixes como objetos a serem coletados para a troca, com o poder econômico assumindo o lugar da subsistência, enquanto a segunda está fundamentada em uma relação com os animais baseada no respeito e na responsabilidade.

Também devemos estar cientes das mudanças nas circunstâncias e necessidades entre a população Mi’kmaq. Poucas de nós podem se sustentar através da coleta, caça ou pesca tradicionais. Como mostram pesquisas, aqueles Mi’kmaq em propriedades de reserva são geralmente dependentes de produtos alimentícios comprados em lojas. Soma-se a isto, o fato de metade da população indígena do Canadá morar em áreas urbanas (Siggner & Costa, 2005). Quando o indígena é definido exclusivamente como um estilo de vida primordial, isso reflete a nossa extinção intencional como povo.

A reinterpretação da tradição e da maleabilidade do ritual permitiu a nossos ancestrais sobreviverem ao genocídio, à fome, às doenças, aos deslocamentos forçados, ao isolamento nas reservas, à educação e uma horda de outras enfermidades coloniais. Similarmente, devemos encontrar maneiras de nos adaptarmos à crescente individualidade da vida urbana. Uma solução é incorporar nossos valores tradicionais em novos rituais. Com a adoção de dietas vegetarianas ou veganas o preparo e consumo de nossas refeições pode se tornar embebido de significados transcendentais, quando nos lembramos da nossa conexão com os outros animais, a nossa conexão compartilhada com o criador e prefigurarmos um momento onde podemos viver em harmonia com os animais, como Glooskap fazia antes da invenção da caça.

Práticas, valores e rituais cotidianos alimentares compartilhados podem criar laços entre os povos indígenas que ajudam a contrapor-se ao isolamento e individualismo da vida urbana. O veganismo nos oferece um sentimento de pertencimento a uma comunidade moral, cujos valores e visão de mundo são concretizados através de práticas diárias que estão de acordo com os valores de nossos ancestrais, mesmo que estejam em desacordo com a sua prática tradicional.

Está em jogo na criação de um veganismo indígena a autoridade dos povos indígenas, especialmente das mulheres indígenas, para determinar a autenticidade cultural por nós mesmas. O discurso branco dominante retrata a cultura indígena como focada na preservação do passado pré-colonial. Isso deve ser substituído pelo reconhecimento de que a cultura indígena é uma tradição viva, que responde a mudanças nas circunstâncias sociais e ambientais. Ao trazer interpretações ecofeministas e póscoloniais às nossas histórias, ao recontar histórias tradicionais, ou ao criar novas histórias, as mulheres indígenas afirmam autoridade sobre nossa cultura. Ao fazermos isso nós reconhecemos que nossas tradições orais não são fixadas no tempo e no espaço, mas são adaptáveis às necessidades de nossas irmãs e irmãos animais, e a própria terra.

Notas

1. Eu uso o termo veganismo ao longo deste texto pois não é simplesmente uma dieta, mas um estilo de vida que evita o uso de todos os produtos de origem animal por razões éticas. A questão não é sobre o uso de carnes, ovos e laticínios, mas sobre o uso de produtos de origem animal no dia-a-dia. Um vegetarianismo baseado na ética funcionaria de maneira similar para o propósito do meu argumento, então sinta-se livre para ler veganismo como veg*ismo onde for aplicável.
2. Veja, por exemplo, The Magical Coat, Shoes and Sword e The History of Usitebulajoo (Rand 1893/2005).
3. Para a transformação dos mágicos, veja Robbery and Murder Revenged, Glooscap and Megumoowesoo, The Small Baby and the Big Bird, The Adventures of Katoogwasees. The Adventures of Ababejit, an Indian Chief and Magician of the Micmac Tribe, e The Liver-Colored Giants And Magicians (Rand 1893/2005), Glooscap, Kuhkw, And Coolpujot (Rand 1893/2004). Para a transformação em animais de totem veja The Magical Dancing Doll, The History of Usitebulajoo, The Invisible Boy, The Adventures if Ababejit, an Indian Chief and Magician of the Micmac Tribe, The Two Weasels (Rand 1893/2005). Para transformações involuntárias, veja The Boy That Was Transformed Into A Horse e Two Weasels (Rand 1893/2005).
4. Exceções a isto aparecem em casos onde um mago humano maligno assume a forma de um animal. Nestes casos o protagonista geralmente mata os animais sem propósito além de derrotar o seu inimigo humano.
5. Rand errou a tradução dessa história como Texugo e Seu Irmãozinho.
6. Veja também Glooscap and the Megumwesoo e The Magical Food, Belt and Flute (Rand, 1893/2005).

Trabalhos Citados

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