Lesbianismo e Diferença Sexual – Andrea Franulic (2018)

“Para que a mulher possa se amar sem passar necessariamente pelo desejo do homem, ela necessita da reconstrução de uma genealogia feminina, especialmente da valorização da relação vertical mãe/filha, que dê forma e permita uma abertura à transcendência dentro da horizontalidade das relações entre mulheres que, senão, correm o risco de se colapsarem em uma fusão informe ou de cair na selvagem competição, quase animal que, na ausência de regras, inevitavelmente seria destrutiva” (Wanda Tomasi)

Não basta ser feminista

Quando me atrevi aventurar no lesbianismo, o fiz motivada por idéias feministas que relevavam a experiência lésbica com toda sua potencialidade transformadora do mundo. Nos curar da misoginia internalizada, ao amar outra mulher, era parte do que a tomada de consciência feminista prometia. Neste horizonte de reflexões, se devia a frase “não basta ser lésbica para mudar a ordem das coisas, é necessário somar-lhe feminismo”. Mas, apesar do feminismo, as vivências de sensualidade e amor com outra mulher nem sempre acarretavam felicidade, senão também, sofrimentos. Assim foi comigo, e acredito que também com muitas outras mulheres feministas e lésbicas. Para além do que cada uma aporta desde sua individualidade e fatos biográficos, que incluem carências, inseguranças, traumas, etc., e me situando políticamente, embora sabemos que o pessoal é político, poderia dizer que tampouco basta ser feminista. Me refiro, inclusive, ao feminismo radical. O que acredito, e isso é o que me interessa propôr neste texto, é que ao lesbofeminismo lhe falta maior consciência da diferença sexual feminina. Uso o concepto de feminilidade, não como um estereótipo codificado pelo patriarcado, senão como ao fato irredutível de ter um corpo sexuado mulher e que este fato é significante. Ou seja, é capaz de criar significados culturais, portanto, não é um fato neutro, nem reduzido à biologia.

Para mim, segue sendo fundamental o descolonizar-nos da misoginia, mas a profundidade que este ato requer está estreitamente conectado comigo mesma e não o atribuo à relação lésbica; a esta, isso sim, reconheço uma potencialidade política encarnada no reconhecer-nos mulheres 2. Porém, o lesbianismo foi sendo separado, paulatinamente, da experiência feminina. Isso se deve, em parte, a que historicamente, embora tenhamos quebrado as codificações da feminilidade patriarcal, e justamente a isso se deva em parte nosso encanto, viemos sendo situadas, como reação do patriarcado – a qual, sem dúvida, afeta nossas vidas –, no masculino, somente pelo fato de expressar-nos, criar, falar, alçar a voz, ter amantes, não parir, e também pela vestimenta ou corte de cabelo. Toda essa gama de desqualificações que a sociedade do Homem dirige à mulher lésbica dá conta deste imaginário infeliz: machona, mulher viril, caminhoneira, Maria Sapatão (embora estes termos tenham sido ressignificado pelo ativismo lésbico), etc. Estas expressões representam a discriminação e a invisibilização as quais foi submetida a lesbiandade, extremamente marginalizada na cultura, devido ao pensamento inclusivo e dicotômico do patriarcado, para o qual, se você não é feminina, é masculina, e ambas construções vêm informadas por um corpo sexuado masculino que, pra terminar, se auto-concede o caráter de universal.

Também se deve a que a tradição de pensamento patriarcal, desde seus três estandartes: a filosofia, a religião e a ciência, se esforçou para apagar e negar o sexo feminino. Esta operação, repetida cíclicamente na História, conta com um último golpe, do qual ainda sofremos seus espasmos, o da modernidade, dado que é aí (desde o século XVII em diante) que se se consolida uma renovada forma de androcentrismo de sempre: a ideia de um sujeito universal, que se presume neutro, confinado no conhecimento com poder, levando implícito o viés masculino, em torno do qual, se desenrolam as lutas pelos direitos de cidadania e os ideários da igualdade. Na atualidade, podemos observar, em termos gerais, uma real homologação, mais além da estética, das mulheres e mulheres lésbicas com homens, nas distintas esferas da vida, porque se soma a todo o anterior o efeito das teorias pós-modernas, que vem reforçar, agora no século XXI, e de forma um tanto sofisticada, o mesmo androcentrismo instalado pela cosmovisão moderna. As teorias pós-modernas, embora questionam as próprias ideias de universalidade e igualdade, seguem negando o sexo como categoria significante; por isso, pendem igualmente do fio férreo da tradição, só que agora definirão o sexo, não como um dado empírico ao costume moderno, senão como uma construção discursiva possível de ser desconstruída. Sem ir tão longe, a teórica francesa Monique Wittig afirma que “as lésbicas não somos mulheres”, porque define o sexo como uma construção da dominação patriarcal, projetada na dicotomía homem/mulher. As lésbicas, ao não entregar as suas energias produtivas, emocionais e sexuais a um homem, romperíamos tal dicotomia e com isso abandonaríamos o lugar das "mulheres”, ao mesmo tempo que contribuiríamos à deconstrução da categoria mesma de mulher no discurso.

Penso que Wittig, com seu ranço materialista e pós-moderno, promove, com essa proposição, a emancipação, por um lado, e a identidade lésbica, por outro. Com a emancipação, preserva o espírito moderno, e recomenda às mulheres que deixem de ser mulheres, no sentido de abandonar o papel material e simbólico imposto pelos homens. Estou de acordo com o último, mas com nada mais, porque a ideologia emancipadora considera o sexo um estorvo e, como dizia, com esta visão, a autora se mantém aferrada ao fio da tradição de pensamento androcêntrico: o sexo feminino entendido como uma cadeia de cujo peso é necessário se emancipar, se libertar. Em contrapartida, a autora propõe a experiência lésbica que demonstra, em sua viva expressão, que o sexo é uma construção. As lésbicas não somos mulheres. Este fio da filosofía androcêntrica, que cruza o discurso de Wittig, me enforca, e também a ela, porque é a razão que não quer ver, aquela que explicaria por que as lésbicas, embora abandonamos os homens, não abandonamos necessariamente o amor romântico como “o ópio das mulheres”. Este é o resultado de negar o sexo como fonte de significados.

Propostas como a de Wittig promovem ademais, a identidade lésbica, e a identidade é o oposto da diferença. A autora nos tira de uma identidade, a de mulheres, para nos envasar em outra, a de lésbicas, pois nos separa, as lésbicas, das mulheres, como o faz o patriarcado e seus postulados progressistas, que se impõem sobre nossa experiência comun, como se a temessem, condicionando-as, por exemplo, à divisão de classes sociais, raças ou idades, e declarando inimigas a burguesa e a proletaria, a negra e a branca, a velha e a jovem, e agora, a lésbica e a mulher. À cultura patriarcal, no entanto, lhe são funcionais as identidades, porque lhe permite submeter as diferenças a um processo de uniformização e, desta maneira, administrá-las. Por exemplo, a feminilidade patriarcal é uma das identidades chave para controlar as mulheres. Neste sentido, Celia Amorós, a teórica da Igualdade, coloca que as mulheres somos “as idênticas”, dado que somos intercambiáveis umas por outras em tanto cumprimos as mesmas funções sociais e de serviço na cultura masculina, portanto, uma mulher pode ser descartada e substituída por outra. Consequentemente, não se perdoa à aquelas que escapem do grupo das idênticas (e passamos nos escapando), e se destaque na busca de um est próprio; a castigam, tanto homens como mulheres. Outro exemplo, desde outro lugar, é o da “diversidade neoliberal e inclusiva”, que agrupa um conjunto de identidades sexuais, que se envasam com o selo LGTBI+. Em consequência, se Wittig reconhece a história lésbica, sua genealogia, na materialidade plena de romper com a heterossexualidade instituída, mas ao mesmo tempo nega a diferença sexual feminina, nos deixa com uma memória truncada.

A diferença

A diferença, em troca, é o princípio básico da vida que na civilização vigente não se deixou fluir. E é o ponto de vista que é importante retornar à existência lésbica. As mulheres historicamente viemos sendo portadoras de tal princípio, posto que a diferença, originalmente enterrada, é a do sentido livre de sermos mulheres. E quando este sentido foi expressado politicamente em algum momento da história, se deveu ao fato de que as mulheres estiveram saindo das estruturas patriarcais mais ancoradas à heterossexualidade compulsória: o modelo sexual, o matrimônio, a maternidade, a família. Signos concretos deste fato encontrou a historiadora María Milagros Rivera Garretas, na Baixa Idade Média e antes. São rastros imprescindíveis que sobreviveram a grande queima de registros que implicou o genocídio das Bruxas. Mulheres como as Beguinas, as Místicas, as Bruxas, as Muradas, as Viajeiras, as Vagabundas, entre outras, fizeram de sua marginalidade o lugar de sua potência e pensamento livre, inventando novos estilos de vida entre elas e com o resto do mundo, e formas distintas de espiritualidade. Fundaram ordens religiosas, e também fizeram ciência. Deixaram escritos onde retrataram a misoginia do mundo patriarcal e o prazer de estar em relação entre mulheres. A fuga do regime heterossexual foi literal, porque coincidem as experiências com o ímpeto e a ação de sair física e geograficamente do sistema, e se refugia, ou a viver em ilhas, bosques, monastérios, entre muros, ou na cidade das damas.

Essas e outras mulheres recuperaram sua diferença sexual para si mesmas. Em alguns casos, tiveram que clausurar seus corpos ou deformar seus rostos. A clausura se devia a ser a única maneira de sobrevivência em um patriarcado tremendamente violador. Outras mulheres experimentaram a sensualidade lésbica e o amor entre mulheres, apesar das perseguições e castigos. As Bruxas são um exemplo sublime de como a consciência da diferença sexual feminina permite experimentar outras formas de sensualidade e de conhecimento do próprio corpo, com total sabedoria dos seus ciclos, prazeres e afecções. Somente a consciência da diferença sexual permite a expressão da diferença existencial das mulheres. Com isso quero dizer que começamos a criar e a descobrir um sentido livre de ser mulheres quando afinal, nos atrevemos a ser nós mesmas. Para isso, é necessário abandonar o jogo com o poder, tanto na esfera pessoal como na esfera política. As mulheres que mencionei conseguem ser, porque soltam as amarras da heterossexualidade obrigatória e cada uma dessas mulheres é contextualizada no patriarcado que elas tiveram que viver. Logo esse ato de não pertencer ao sistema nem desejá-lo, ou seja, de “não vender a mente”, o transforma em um lugar de potência criativa, em outra ordem simbólica, ou seja, na criação de outros significados que orientam seus passos pelo mundo e suas relações, sempre de acordo com seus desejos.

Para mim, as expoentes do impulso epistemológico da diferença sexual são Virginia Woolf, quem experimentou a existência lésbica, e Carla Lonzi, que rompeu sua relação heterossexual com Pietro Consagra. A primeira disse que é melhor estar excluída de museus e bibliotecas, que somente servem para encher livros e arte de poeira – metáfora do conservadorismo masculino – também nos convida que observemos a civilização que nos fazem viver, como se fosse um objeto de estudo, e que concluamos que nós não temos nada a ver com as guerras dos “homens com educação”, nem com o fascismo inerente à cultura patriarcal. A segunda, Lonzi, nos desafia a tirar proveito de termos sido excluídas durante milênios da História; e nos incita, veemente como ela é, a “aproveitar-nos dessa diferença!”. Ambas desprezam a ordem simbólica patriarcal e a civilização que emana dela. Essa ação política representa um desdém pelo que foi estabelecido, pelo que se abandona, e que tampouco respeita ou tem qualquer apego com o sentido de vida sangrento e empobrecedor que detém. Em definitivo, é sair de uma relação de poder, de algo que não foi inventado por nós, embora exista, isso não podemos esquecer, a custa de nossas energias. É também uma maneira de dizer que não somos responsáveis da barbárie dos homens. A diferença existencial das mulheres, quando se expressa, nos leva a não querer repetir uma cultura patriarcal, tanto no pessoal quanto no político. E por tudo isso, nos informa e impulsiona a consciência sobre a própria diferença sexual.

A proposta

Para mim, a lesbianidade está ligada a essa história. Portanto, também vai enlaçada à ordem simbólica feminina, que surge do sentido livre de ser mulher e ressignifica as relações entre mulheres, recuperando a força criativa que o patriarcado lhes usurpa e absorve, ao intervir as relações femininas com o regime heterossexual. Os significados deste simbólico se materializam em modos de relação não-instrumentais, equilibrando harmoniosamente a horizontalidade e a verticalidade nos vínculos entre mulheres. A verticalidade é dada pela relação mãe-filha (3). Os símbolos de liberdade feminina incluem representações sociais de tal relação, corporificadas na escrita, na pintura e na música, criadas pelas mulheres lésbicas medievais. No lugar da verticalidade, as pensadoras da diferença usam os conceitos de disparidade ou assimetria (4). A verdade é que a verticalidade, a disparidade e a assimetria constituem a parte mais confusa de experimentar os laços entre mulheres, justamente porque a relação da mãe com a filha e vice-versa é a ferida que sangra na civilização e em cada mulher.

Retornando à minha afirmação do início, e diante a pergunta do porquê do sofrimento, penso que não basta ser lésbica e feminista, se não criamos e descobrimos uma ordem simbólica feminina, onde não somente o desejo se instale em querer viver a horizontalidade, mas também a disparidade, como dois lados da mesma moeda. A horizontalidade deve ser pensada junto à disparidade. A horizontalidade, mais que necessária, se pensada sem a disparidade nos faz correr o risco de retornar ao mundo das idênticas, embora seja uma versão melhorada, onde rege a ordem simbólica patriarcal. Nesse sentido, algumas autoras argumentam que, às vezes, é impossível reparar o vínculo primário com a mãe de cada uma, mas que é possível atualizar sua potência na relação com as outras mulheres, reais e históricas. Re-atualizar a disparidade com a mãe significa recuperar esse ponto de vista da infância onde a mãe, no caso da que esteve presente, era a portadora do mais feminino, que dá a vida e a palavra, e a menina (também o menino), dependia dela com absoluta confiança. Se nas relações entre mulheres, sejam elas intelectuais, politicas, sensuais ou amorosas, essa assimetria não é acomodada como um eixo articulador do relacionamento, um eixo que é móvel, é muito provável que essas relações se tornem desformes e destrutivas na competição, como afirma Wanda Tomasi, e provavelmente seja uma competição não reconhecida.

Se em uma relação amorosa lésbica, por exemplo, suas integrantes odeiam suas respectivas mães, ou elas nem sequer tem consciência do peso vital e cultural que isso tem, portanto se identificam com o sujeito universal (de viés masculino), é muito provável que a relação incorpore elementos destrutivos, ao projetar em outra mulher essa falta de história e de sentido, gerando como eu disse no parágrafo anterior, uma competição informal, as vezes velada. Por isso, é importante ensaiar – não reconciliar-se com a mãe real como condição “sem a qual não..” – mas transferir a figura da disparidade ao reconhecimento mútuo do “a mais” da outra e confiar, para que a relação seja um espaço de verdadeira confiança, onde a vida e a palavra, de cada uma, se expressem livres e criativamente, que se note que há pelo menos, duas, porque no “um” esmagador repousa o domínio. Como fazer disso uma forma de vida, baseada na confiança mútua, que é básica para a comodidade e a liberdade? Os rastros genealógicos da liberdade das mulheres podem nos dar algumas respostas, porque nos permitem conhecer as práticas de vida das mulheres sábias do passado. Do contrário, os campos de significados patriarcais imporão, com a força costumaz, suas codificações seculares sobre a inveja entre mulheres. E sem ordem simbólica feminina que os contrarie, uma quererá aniquilar, arrebatar ou absorver vampiricamente a diferença da outra, porque a inveja é a deturpação patriarcal do desejo intenso por outra mulher, mas um desejo sem memória do mais feminino.

Notas:

(1) Escrevi este texto para apresentá-lo no II Encontro de Feminismo Radical e Lésbico: “O problema da heterossexualidade”, organizado pelas maravilhosas Feministas Radicais e Lésbicas de Chillán (29 de setembro de 2018).

(2) A relação entre mulheres, e a lésbica principalmente, é complexa, dada nossa história no patriarcado e também porque os vínculos entre nós são intensos e apaixonados. Por isso, penso que a potencialidade política do lesbianismo não é “per si”, senão, e isso me interessa propor, se deve justamente a sua complexidade, a qual nos corresponde compreender e descosturar.

(3) Para aprofundar sobre a relação com a mãe e sua ordem simbólica, revisar as colocações da filósofa italiana Luisa Muraro.

(4) O tema da disparidade e do mais feminino o trabalha, principalmente, a jurista da diferença Lia Cigarini.