Hot Hypothalami
por Pinko Lesbo (fonte: feministreprise)

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Revista Rain and Thunder (Solstício de verão de 2000)

Outro dia no trabalho, uma colega heterossexual estava falando sobre seu sobrinho gay, provavelmente para me impressionar com o quão liberal ela é. Dizia: “O pai e o avô dele estão tendo muita dificuldade. Mas a mãe dele lhes disse: ‘O que há de errado com vocês dois? Você não sabe que uma pessoa não escolhe esse tipo de coisa? É assim que ele é, e eu não o amo menos.’” Ela sorriu para mim, orgulhosa por ter conseguido emular a fala oficial gay/lésbica/bi/trans.

Mais alguém está cansada desse tipo de conversa? Eu poderia escrever um roteiro de tão previsíveis que são…

- Feminista Radical: "Bem, eu não acha que seja genética. Eu acredito que a preferência sexual pode ser escolhidae abandonada. De fato, eu penso que toda resposta sexual pode ser aprendida e desaprendida.
- Mulheres Heterossexuais (após uma longa pausa): “Eu pensei que você era lésbica.” OU
- Mulher Queer: “De forma alguma. Eu era uma tomboy. Eu desejei mulheres desde os quatro anos de idade. Eu sempre fui sapatona – nunca tive escolha. Eu nunca confiaria em uma mulher que diz ter sido escolha.” (olhar suspeito)

Mas ah, você não pode realmente culpa-las. Elas estão apenas repetindo o que ouviram. A mídia LGBT visível não mostra a sua tão preciosa diversidade quando é sobre política. Biologia é o lema. Cada um de nós dentro das muitas cores do Arcoíris Feliz dos Pervertidos “nasceu assim”, não que importa o que esse “assim” seja. Lésbicas jovens aprendem isso nas faculdade, em grupos de saída do armário, na terapia. Pessoas heterossexuais lêem isso nas revistas, vêem na televisão, aprendem isso em grupos de conscientização. E é um alívio para elas. A jovem (ou velha) lésbica por não ser obrigada a mudar quem ela é e as pessoas heterossexuais por pensar que realmente não é transmissível (apesar de continuarem nervosas, pois apesar de que ser um Pervertido do Arcoíris seja algo inato, alguém ainda pode descobrir sua verdadeira inclinação, e como alguém pode ter total certeza de que é hétero com todos esses queers saindo do armário em todas as idades e até mesmo depois de ter tido filhos, pelo amor de deus, e por que eles não tem uma ferramenta de rastreio genético ainda pra que você possa ter total certeza sobre si mesmo, heim?).

Vamos encarar a realidade. A ideia de que você pode escolher ser lésbica por razões feministas não teve nenhuma divulgação por muitos anos, se é que já teve. Não vamos nos culpar acerca desse fato. Nós nunca paramos de tentar disseminar essa ideia; o que aconteceu é que falaram mais alto e em uma voz mais poderosa do que a nossa. Além disso, ninguém quer escutar o que temos a dizer. E por que não? Por conta do hipotálamo, bobinha.

Você ouviu falar sobre a pesquisa do Cérebro Gay? Um cientista homem gay dissecou cérebros de um número de cadáveres e os comparou os cérebros de homens gays e homens heteros. Ele encontrou, em uma descoberta muito aplaudida pela mídia, que o hipotálamo de homens gays eram estatisticamente muito menores que os de homens heterossexuais. O hipotálamo é uma parte do cérebro e sua função é pouco compreendida. Ele, então, hipotetizou um Cérebro Gay, no qual o hipotálmo menor faria os homens gays. Todo mundo falou sobre o Cérebro Gay, prova cabal de que a homossexualidade é biológica. Os cientistas discursaram sobre como esperavam que essa pesquisa influenciasse no aumento da tolerância a nós pessoas gays de hipotálamo pequenininho (aliás, nenhuma diferença foi encontrar entre os hipotálamos de lésbicas e mulheres hetero, mas nós temos que nos unir na nossa grande e diversa Comunidade dos Pervertidos do Arcoíris, não temos? Não seja divisiva!) ao redor do globo. Pessoas começaram a ficar ansiosas acerca do rastreio fetal do hipotálamo. Será que uma onda de abortos de crianças gays aconteceria? Recentemente li sobre um grupo de gays e lésbicas de Springfield fazendo campanha contra o aborto, com medo de que se um Gene Gay fosse descoberto fetos começariam a ser eliminados.

Outro estudo científico, seguindo o primeiro, não recebeu muita atenção. Um grupo de cientistas estudaram o cérebro de ratos (e não, eu não aprovo isso, mas é necessário para o ponto). Eles dividiram ratos machos idênticos em dois grupos. O primeiro grupo foi colocado em gaiolas com uma sucessão infinita de ratas fêmeas no cio e o segundo grupo com uma sucessão de ratas fêmeas desinteressadas. Depois de algumas semanas eles compararam o tamanho do hipotálamo dos dois grupos. O ratos sexualmente ativos possuiam hipotálamos menores do que os dos ratos celibatários.

Então, aleatoriamente, todos os ratos hipotalamicamente substimados foram escolhidos para fazer sexo? Ainda mais, sexo heterossexual? Claro que não. Sexo contínuo causou a diminuição do hipotálamo. Pense nisso. O que homens gays fazem constantemente? Uma atividade pode influenciar estruturas cerebrais, não são apenas estruturas cerebrais influenciam a ação. Nossos cérebros são maravilhosamente plásticos. Após sobreviver um derrame, muitas vezes o cérebro desenvolverá novos caminhos neuronais e irá retomar funções. Se sofremos uma lesão na cabeça, o cérebro pode se remodelar com o estímulo. Nossos cérebros não são computadores, apesar da analogia comum; eles estão constantemente mudando de acordo com o estímulo recebido.

O argumento de que “meu cérebro me faz agir de tal maneira” existe há muito tempo. Desde Darwin a biologia tem sido destino no pensamento popular. A noção da “invertida congênita” de Havelock Ellis foi abraçada por gays e lésbicas no ínicio do século XX como uma maneira de obter a simpatia e o apoio de heterossexuais. Radclyffe Hall influenciou uma geração inteira a se entender como uma-pessoa-que-deve-ser-tolerada-por que-deus-me-fez-essa-criatura-doente-e-bizarra-da-natureza assim como sua personagem Stephen Gordon do seu livro O Poço da Solidão. O livro Stone Butch Blues de Leslie Feinberg é o seu descendente na década de 90. (Provando que a biologia talvez não seja destino, mas a literatura pode muito bem ser.) A biologia comportamental, especialmente a de comportamento sexual, está no auge novamente, depois do breve resplandecer da segunda onda feminista. Eu li a respeito de um estudo sobre homens casados infiéis – a ressonância magnética de seus cérebro era diferente das de homens casados fiéis. Os pesquisadores expressaram esperança de que o estudo fosse promever a compreensão do “problema biológico” de homens infiéis, especialmente por suas esposas (!). São os ratos tarados novamente.

Parece que cada variação sexual no Arco-ìris Pervertido da Família Feliz da Diversidade pode ser justificado pela biologia. Já vi fetiche por pés, pedofilia, transexualismo e sadomasoquismo serem explicados desta maneira. Nos finais dos ’80 me passaram uma petição no acampamento de trabalhadoras no Festival Musical de Mulheres de Michigan 1 que dizia “Eu sou uma trabalhadora assim como você” e seguia: “Eu vim trabalhando duro e por muito tempo para fazer esse festival acontecer. Eu sou diferentemente aprazida…”. Era uma petição em apoio às lésbicas sadomasoquistas, cruelmente oprimidas por feministas radicais por expressarem suas sexualidades dadas pelas deusas. E a petição seguia, fazendo comparações entre as opressões de sadomasoquistas com aquelas vividas por mulheres racializadas2 e discapacitadas. A petição não conseguiu muitas assinaturas naquele ano, mas estou segura que seria bem recebida nos dias de hoje, mesmo em Michigan.

Por que “Eu sou um peão indefeso dos meus impulsos sexuais inatos” se tornou um pensamento tão popular? Em primeiro lugar, pois não se pode questionar as escolhas sexuais de alguém se elas são resultado de um hipotálamo minúsculo e de outros pedaços do cérebro. Apesar das demandas da Direita Conservadora é impossível mudar. Todas as pessoas devem aceitar que temos o direito de existir se a natureza nos fez assim. Em segundo lugar, esse pensamento elimina qualquer ameaça à Heterossexualidade Institucional. Nenhuma mulher poderá escolher ser lésbica. (Apesar de que teoricamente isso não impende o papel da mulher que “descobre” seu lesbianismo inato e reescreve sua história. Eu conheço uma mulher que explica sua atração adolescente por David Cassidy enfatizando a feminilidade dele, assim preservando sua adorada identidade de Lésbica Butch. Apesar de eu certamente conseguir entender a necessidade de racionalizar uma atração por David Cassidy – que vergonha! – o argumento do determinismo biológico força a barra, especialmente quando discute-se os supostos sentimentos sexuais de crianças.) O argumento do cérebro-como-ditador-sexual também não impende que mulheres que se identificam como lésbicas “descubram” sua atração por homens e, portanto, sua bissexualidade. É certo, lésbicas políticas podem se tornar heteras, mas também podem as queers. Logo, homens e mulheres do Arcoíris estão livres para buscar vidas diferentes mas igualmente (mais ou menos) felizes como trabalhadores-consumidores zumbis, assim como os heterossexuais. Não se preocupe mãe, minha amante é por acaso uma mulher; alguns dos meus melhores amigos são homens. Nós não vamos seduzir suas filhas biologicamente heterossexuais. (A não ser que nós realmente queiramos, nesse caso ela será uma lésbica inata, ela só precisou de uma ajudinha pra descobrir.) Em terceiro lugar, ele elimina o argumento sobre a – respire fundo- moral.

Sim, eu usei a palavra que começa com M. Moral. Não as morais da Direita Cristã Conservadora, valores morais da família, mas a moral como a simples dignidade e respeito humanos. O Feminismo Radical demanda que nós examinemos criticamente todos os aspectos da nossa vida, incluindo nossa prática sexual. Questionar o mercado livre capitalista que nos forence bens de consumo baratos que inudam esse país não é legal. Não nos faz sentir bem. Questionar a pornografia, os jogos de papéis e o sadomasoquismo também não é legal. Não é sexy. E nada, nada é mais importante nessa cultura do que o que é legal e sexy. Se meu cérebro pede pra que eu chicotei minha amante com uma cinta de borracha produzida pelo trabalho de pessoas encarceradas na China, bom, foi assim que a deusa determinou. Eu apenas estou seguindo as ordens da minha biologia.

Heteros: Eu curto Coca-Cola.
Gays e Lésbicas Mainstream3: Estou naturalmente inclinada a gostar de Pepsi.
Sadomasoquistas, Fetichistas, Transexuais, etc.: Estou biologicamente compelido a querer Guaraná.4
Feministas Radicais: Vamos destruir as fábricas de refrigerante e tomar água. É melhor para o planeta e para seus dentes.

O forte apelo da teoria do hipotálamo quente e excitante é a completa remoção da responsabilidade sexual pessoal. O que deixa você excitada? Faça isso. Faça isso denovo e denovo, cada vez recompensando a si mesma com orgasmo, portanto fortalecendo o circuito no seu cérebro em um looping retro-alimentador eterno. Isso é gostoso. Faça isso. É natural. Você pode confiar nos seus instintos. Podemos vender a você coisas para aumentar seu prazer. Qualquer pessoa que questione você é uma puritana sexual e está te oprimindo.

Digamos que você realmente goste de queijo, mas quer se tornar vegana por razões políticas. Você abre mão do queijo e, aos poucos, passa a gostar de queijo de soja. Isso é mais fácil se você não pensar sobre queijo de leite animal enquanto come o queijo se soja. Logo apenas o queijo de soja será saboroso para você. O queijo de leite animal terá um sabor nojento caso você o ingira acidentalmente. Por que o sexo seria diferente? Você pode remodelar suas papilas gustativas e você pode remodelar suas respostas sexuais. Você pode decidir não torturar outros seres vivos para se alimentar e você pode decidir o mesmo quanto ao sexo. É como qualquer outro apetite.

No final, culpar sua biologia pelas suas respostas sexuais é uma racionalização de algo que parece impossível de ser alterado. Respostas sexuais podem ser reaprendidas. Eu já ouvi mulheres heterossexuais dizendo que “simplesmente não se atraem por mulheres.” Eu já ouvi sadomasoquistas (entre outros) dizerem que não conseguem ter orgasmos com sexo baunilha 5.Isso pode muito bem ser verdade, mas não precisa ser. Deixe-me dar um conselho: Não quer ser heterossexual? Quer eliminar qualquer excitação sexual a partir de imagens sadomasoquistas, de estupro ou incesto? Não reinforce a resposta em looping no seu cérebro. Compre um vibrador. Pratique ter orgasmos com novos pensamentos e imagens. As fantasias antigas invadem sua cabeça? Desligue o vibrador. Não reinforce padrões antigos com um orgasmo. Não consegue gozar? Você não vai morrer se deixar pra tentar de novo amanhã. Pratique novas e positivas fantasias, eventualmente você será premiada com uma nova resposta sexual. Todas nós fomos colonizadas, mas nós podemos expulsar o invasor.

Hoje em dia, nós não precisamos ser escravas da nossa endocrinologia condicionada. Nós podemos e devemos fazer escolhas sexuais baseadas na nossa visão de um mundo melhor. Jamais iremos mudar o patriarcado gozando com suas premissas. Podemos desejar umas às outras com a paixão por justiça, e não a despeito dela. Desejo sexual e ação podem ser abraçados ou descartados baseados em princípios, não em quão misteriosamente algo nos dá “tesão”. Diga a todo mundo o que uma revolução sexual realmente é. Treine seu cérebro.


NOTAS DA TRADUÇÃO:

1 “Michigan Womyn’s Music Festival”, festival separatista lésbico estadunidense que acontecia desde os anos 80 tendo sua última celebração em 2015, realizado em Michigan por conta de uma grande propriedade de terra em mãos de uma lésbica organizadora que tinha capacidade para abrigar milhares de mulheres naqueles dias. Traduzimos “Womyn” como “Mulheres”, Womyn é uma das grafias adotadas pelo movimento de mulheres da segunda onda de forma a ressignificar a palavra e retirar da palavra “woman” (mulher) a palavra “man” (homem), numa busca das mulheres buscarem uma definição autônoma de si mesmas.
2 No original estava “women of color”, podendo ser traduzido como “mulheres de cor”, que é como chamam nos EUA e engloba não apenas mulheres negras mas de outras etnias. Como em português este conceito “pessoas de cor” recorda a política de encobrimento da questão racial, mudamos para “mulheres racializadas” que seria o mais próximo do conceito aqui.
3 Mainstream: algo hegemônico ou senso comum, no caso o senso comum expressa opiniões liberais devido a ideologia hegemônica do liberalismo.
4 Mudamos para marcas de refrigerantes conhecidos para ficar mais compreensível pois o original citava uma marca estadunidense que não tem aqui no Brasil.
5 Sexo baunilha, ou como no original, “vanilla” é como praticantes de sadomasoquismo se referem a práticas sexuais que não incluem elementos de violência, dominação e submissão.