Ainda que tenhamos retomado o termo “affidamento”, pois se trata de uma expressão que já circula na teoria feminista internacional, seria ingénuo pensar que essa prática nasce agora. Ao longo da história várias mulheres buscaram a mediação de outras figuras femininas para afirmar-se, defender-se e inspirar-se. Gabriela Cano recorda nosso exemplo histórico por excelência: a famosa resposta de Sor Juana Inés de la Cruz a Sor Filotea (pseudonimo do Obispo de Puebla) . Nela, Sor Juana defende frente ao Obispo seu direito_e das demais_ a pensar, estudar, e opinar publicamente: Constrói uma genealogia de referencia simbólica das mulheres que a antecedera, reconhecendo: “Enfim, toda a multidão das que mereceram nomes, das gregas, musas, bruxas;pois todas não foram mulheres dotadas, mantidas e celebrada, e também veneradas na antiguidade por suas semelhantes”¹
Talvez uma notável diferença entre nossas antecessoras e o grupo de feministas italianas que cunharam esse termo no discurso político atual seja o reconhecimento da disparidade entre mulheres. Esta cegueira tem sido especialmente notável entre as feministas, cuja política da identidade favorece um sentimento de que “todas somos iguais”. As italianas reconhecem que “uma mulher pode sentir de forma tão vil o desvalor como para não suportar, nem querer infligir a outra a situação de ser menos que uma de suas iguais”. ² Mas essa situação frequentemente gera que a mulher que “não perdeu o objetivo de contar para algo no mundo, encontra mais natural unir-se com indivíduos do sexo masculino para avançar. É uma escolha óbvia enquanto a ordem simbólica não mude e não se signifique a diferença de ser mulher como princípio de valor e como legitimação das aspirações femininas, com capacidade de oferecer-lhes uma medida em suas confrontações com o mundo
A falta de referência de figuras simbólicas, a dificuldade para reconhecer mulheres “não ocorre tanto por um excesso de rivalidade, inveja ou desconfiança, nem por razões premeditadamente mais profundas de natureza inconsciente. Com anterioridade a essas razões, intervém uma ordem simbólica que admite as relações de socorro mútuo entre mulheres(que de fato são as mais habitualmente praticadas: toda mulher em situação de necessidade busca a outra mulher com mais espontânea confiança) e na mudança não prevê relações de valorização entre elas. Se não se revoluciona essa ordem, a consciência do que há levado muitas de nos ao feminismo ou não é útil a mulher jovem dotada de ambições. É um saber valido em si, mas póstumo. Leva a marca de aspirações feridas, expectativas frustradas, impulsos perdidos no vazio, de descobrimentos duramente pagos. Quem se enfrenta com o mundo rejeita um saber tão amargo, porque é uma ameaça para seu bem, que é querer e esperar o melhor para si mesma. Se não há dialogo entre esta aspiração intacta e essa consciência, entre ma geração e outra de mulheres só existe uma sucessão de ingénua esperança e amargo conhecimento, sem troca e sem mudança. A ausência de trocas entre esses dois momentos da humanidade feminina, entre e mulher que sabe e a que quer, não é- repetimos- algo cujo a causa deva buscar-se na psicologia feminina. A causa está na ordem simbólica que sustenta o sistema das relações sociais. A união da mulher mais velha com a mais jovem assusta aos homens e muitas de nos seguramente recordamos haver sido cortejadas em nossa juventude cujo único objetivo era separa-nos de mulheres mais “velhas” – figurativa e literalmente de mulheres mais avisadas. A relação de affidamento é essa aliança, onde ser velha se entende como a o conhecimento que se adquire com a experiência e a execução e ser jovem, com a possessão de aspirações intactas, onde uma e outra entram em comunicação para se potencializar em seu confronto com o mundo”.
A diferença de idade é uma circunstancia favorável para o affidamento, pois faz mais facilmente aceitável a disparidade. Nossa cultura aceita como uma disparidade fecunda a que existe uma pessoa adulta e uma criança. Mas já depois, é outra coisa. Há uma grande “dificuldade de atribuir autoridade, de reconhecer uma superioridade, sem associá-las ao domínio, a sensação de poder, a forma da hierarquia”
Dai “ a proposta de trazer a tona os sentimentos despertados pela mulher admirada. Se não escondes a admiração por um grande homem, aprende também a expressar a admiração por uma grande mulher, se aceitas as hierarquias estabelecidas por homens, respeite também quando se encontre em posição superior uma mulher, etc”
A falta de relações valorizantes entre mulheres aparece como consequência de “ um desafortunado olhar ao espelho:… minhas semelhantes são meu espelho e o que não consigo ver em nenhuma delas me está negado. Mas, por qual motivo? Por qual razão a mulher quer encontrar em sua semelhante a segurança de não ser menos e não busca a mudança na possibilidade de ser mais? De onde vem a insegurança geradora de inseguranças?”
É evidente que entre as mulheres muitas disparidades existentes vêm determinadas por uma distribuição desigual dos bens e oportunidades sociais. Mas este fato costuma-se mencionar “para mascarar os efeitos de uma inveja paralisante”. Isso conduz as mais inquietas por seu próprio destino pessoal a buscar uma medida do próprio valor na sociedade masculina, enquanto deixa as demais na demanda de reparação. “Já vimos que a petição de reparação também pode converter-se em uma espécie de política feminina; nesta versão, as mulheres, que se supõem igualmente vítimas da sociedade masculina, se dirigem a está reparação. A reposta costuma ser positiva; a sociedade não tem maior dificuldade para reconhecer que as mulheres são vítimas de um dano, se bem se reserva logo o direito de dizer segundo seus próprios critérios o modo de reparação, com o qual o jogo pode prolongar-se ao infinito. Por nossas relações, sabemos muito bem que a petição é tão indeterminada, o sentimento de dano tão profundo, que não pode haver satisfação possível, a não ser que consista precisamente em ter direito a permanente recriminação.”
Além disso, frente a esse sentimento de vitimização, as mulheres desenvolveram “vínculos de uma cumplicidade aglutinadora que as defendem do ódio masculino e também evita que se odeiem entre si. A defesa funciona a condição de que nenhuma tente-se destingir-se das outras”
Por isso este grupo de Milão faz uma proposta que, além de um grande debate, gerou grande irritação: “Para a libertação do sexo feminino vale mais uma só mulher agradecida a suas iguais que lhe deram algo, que não um grupo ou todo o movimento feminista que esteja ausente a resposta do reconhecimento. Quando se reconhece o bem recebido, da vida e do sexo, do amor, da amizade, da solidariedade, do conforto, uma mulher se põe no caminho para a fonte feminina de seu valor. Ao disponibilizar-se as mulheres que lhe deram algo, põe-se fim a uma relação furtiva.”
¹ Volume IV, Comedias, sainetes y prosas, de sus Obras Completas, FCE, Mexico, 1957, pp.460-462
² Todas as citações provem do livro No te Creas Tener Derechos, Libreria de Mujeres de Milán, Editorial Horas y HORAS, Madri, 1991.
tradução por Saligia