Aborto sob uma perspectiva crítica lésbica radical – Amor entre mulheres é o melhor contraceptivo

“A invenção e imposição do orgasmo vaginal é a manobra mais perversa e literalmente, a mais desalmada, da política sexual sustentada pela medicina científica ou alopática, a psiquiatria e a psicanálise machista dos séculos XVIII, XIX e XX. É uma manobra que segue inquestionada ainda hoje. A manobra consiste por todos meios a seu alcance que nós mulheres nos enganemos de orgasmo e possivelmente o percamos, condenando ao esquecimento o prazer feminino próprio e livre, o prazer clitórico. (…) Como pode ser que tantas mulheres tenhamos nos deixado despojar do nosso prazer, adotando como orgasmo feminino o orgasmo do homem?”
Maria Milagros Rivera, O Prazer Feminino é Clitórico


“Onde quer que nós como lesbianas nos encontremos ao longo deste contínuo político/social, temos que saber que a instituição da heterossexualidade é um costume que dificilmente morre, essas as instituições de homens supremacistas asseguram sua própria perpetuação e controle sobre nós. As mulheres são mantidas e contidas por intermédio do terror, da violência e da jorrada de sêmem. É proveitoso para nossos colonizadores confinarem nossos corpos e nos alienar de nossos próprios processos vitais, assim como foi proveitoso para os europeus escravizar o africano e destruir toda memória de liberdade e autodeterminação prévias.”
Cheryl Clarke, Lesbianismo: Um Ato de Resistência

A legalização do aborto volta ao centro do debate todos os anos no mês de setembro. São anos de militância feminista e o horizonte ainda não acena muitas mudanças no Brasil a este respeito. Na Latinoamerica, no entanto, vimos, este ano, o aborto ser legalizado na Argentina e a sua descriminalização no México no mês passado. Damos boas vindas a estas reformas, muito embora saibamos que não são suficientes para resolver a questão da liberdade feminina, se é que não nos prendem ainda mais na dependência de um Estado Patriarcal que segue legislando as vidas femininas.

Assim, se faz necessário o analisar por uma perspectiva radical para que o procedimento abortivo não seja pautado a partir dos interesses dos homens. Enquanto não aprofundarmos a consciência feminina acerca do que é autonomia sexual real para nós, nossas liberdades e direitos apenas serão manipulados e utilizados contra nós. E, sendo um “direito” uma concessão por meio de um contrato com o Estado, ou seja, com os homens, já que eles controlam o Estado, então continuamos passíveis de seu controle e dominação. O aborto legal é uma concessão da classe política dominante arrancada por nossas lutas, mas é preciso que não nos contentemos com migalhas e que não peçamos pelo mínimo, que sejamos ousadas o suficiente para rompermos radicalmente com nossa escravização sexual.

Ao se falar de aborto, infelizmente ainda á omitida a real causa deste problema: os homens e sua sexualidade falocêntrica e predatória. Homens engravidam mulheres, e não “nós engravidamos”, devido a nossa natureza reprodutiva uterina. No entanto, quem tem que correr atrás de resolver isso somos nós. Dentro do movimento feminista, muitas vezes nossa energia é direcionada a resolver problemas causados por homens, sem questionar a sua miséria simbólica e sexual, a qual homens impõem coletivamente ao sexo feminino. Neste artigo, em específico, desejamos lançar luz sobre a violência masculina mais generalizada e naturalizada nas nossas sociedades hoje que é o dispositivo político do heterosexo, realizado por meio do coito compulsivo.

O aborto é criminalizado porque isso é parte da sanção legal que mantém a maternidade enquanto compulsória, por esta ser necessária enquanto exploração de trabalhos reprodutivos da classe feminina em situação que, uma vez que mães não são remuneradas por esta longa carreira na vida destas, se poderia dizer de escravização doméstica, à exceção das mulheres ricas que aí exploram outras mulheres – geralmente pobres e negras – para isso. “A opressão das mulheres precede a escravidão e a torna possível” (LERNER, 2019, p. 112).

Logo, o aborto ilegal e indisponível na saúde pública feminina é em parte também um pilar que mantém o regime da heterossexualidade compulsória. A gravidez das mulheres é um cativeiro heterossexual e doméstico para a maioria destas, colocando elas ainda em maior vulnerabilidade perante o seu agressor, então genitor de sua cria, vínculo que as faz aliançadas legalmente ao pai da criança, que se encontra em desenvolvimento até a idade adulta na qual será emancipada, quando enfim irá emancipar a mulher da maternidade.

Para engravidar mulheres, é necessário o coito. A universalização do coito como paradigma da sexualidade humana ocorreu sob forças diversas, instauradas pelos discursos sexológicos e anatomistas médicos, biológicos e de vários outros campos do saber patriarcal. Estes conferiram um estatuto de verdade e natureza inquestionáveis à tal prática que, como exporemos mais adiante, nada têm de “natural”, na sua exigência de tecnologias anticonceptivas diversas e que sequer são biodegradáveis para o meio ambiente (camisinhas, medicamentos, aparatos intra-uterinos e malabarismos cirúrgicos), em artifícios preventivos de gravidez geralmente operados de forma invasiva no corpo das mulheres. Além do coito em si já consistir em uma prática que coloca a saúde e a vida de meninas e mulheres em risco. Se o pênis não fosse nocivo para nossas corpas, não haveriam tantas campanhas governamentais para que este ficasse hermeticamente isolado em um preservativo, assim minimizando seu contato potencialmente nocivo com nossas intimidades. Contato este que contamina mulheres por meio de muitas ISTs todos anos – HIV, HPV, Sífilis, entre outras – que se não tratadas, podem ser até mesmo fatais, mas que já se tornam algumas delas muitas vezes uma condição crônica de saúde. Ou senão, pela própria gravidez, que é uma das maiores causas de mortalidade feminina ainda hoje.

Sobre a mortalidade materna, alguns dados. Como alertou a OMS, todos os dias morrem aproximadamente 830 mulheres por causas relacionadas à gestação e ao parto no mundo. Além disso, 99% de todas as mortes maternas ocorrem em países em desenvolvimento. Também um aspecto que evidencia o aspecto pedofílico da sexualidade masculina (cultura de pedofilia), é de que são as jovens adolescentes quem enfrentam um maior risco de complicações e morte como resultado da gravidez. Também a mortalidade materna é maior entre mulheres que vivem em áreas rurais e comunidades mais pobres. Ademais, estima-se que, em 2015, cerca de 303 mil mulheres morreram durante e após a gravidez e o parto.

Primeiro queremos declarar que este escrito está bem longe de ser anti-abortista. Tampouco entendam que somos contrárias ao uso de métodos contraceptivos, extremamente necessários numa sociedade ainda regulada sob o contrato sexual. Nem de que estamos sugerindo o celibato obrigatório como fazem conservadores, ou que estamos inconscientes de que nossa proposta aqui é improvável de ser sustentável para a grande maioria das mulheres na situação de opressão presente (vamos desenvolver mais adiante). O convite aqui é apenas a uma reflexão, não temos o intuito nem somos parte da classe estrutural com poder para impor nada. Nós lésbicas radicais lutamos no passado e lutaremos no presente pelo acesso ao aborto sob demanda, nem que custe nossas vidas. Muitas lesbofeministas vem há anos se colocando em risco de serem presas para que suas companheiras abortem, por meio da obtenção de citotecs, acompanhando aborto de amigas e compas desconhecidas, por meio das linhas telefônicas de aborto seguro pela Abya Yala que estão sob organização de lesbofeministas, e perseguidas pela justiça ao fazer ativismo aborteiro. Também, nós lésbicas geralmente somos rede de apoio para mulheres que necessitam um aborto, em acompanhamento do procedimento em si ou obtenção dos meios. Também lésbicas podem necessitar de um aborto, seja devido ao estupro corretivo, seja porque muitas lésbicas resvalam na heterossexualidade compulsória por contextos e forças (ad)diversas.

Se o aborto foi legalizado na Argentina foi graças, principalmente, à luta de lésbicas-feministas: a frente do movimento abortista no país. Talvez a afinidade entre movimentos ocorra porque há uma parecença política entre a mulher que aborta e a lésbica. Como diz Osa Flaca na entrevista que realizamos no começo deste ano, disponível em nosso medium:

“Por outro lado penso que há uma resistência e um desacato muito parecido entre o que praticamos as lésbicas, que não queremos ser heterossexuais, e o que praticam as mulheres que abortam, que não querem ser mães — porque, finalmente, o sistema nos quer heterossexuais e mães. Então as lésbicas desacatamos a heterossexualidade e uma mulher que aborta sabota essa maternidade compulsória, então nisso nos parecemos, porque estamos fugindo das obrigatoriedades da heterossexualidade, e creio que isso faz a gente se encontrar”

Além disso, Osa Flaca também fala sobre a orientação lesbofeminista do trabalho de ação-direta aborteira que realizam no Chile:

“…explicitamos que nosso acompanhamento é feito desde uma ótica lesbofeminista e isso quer dizer que é um acompanhamento entre mulheres, sem homens e onde falamos sobre porque estarmos grávidas, porque um homem ejaculou dentro de nós sem nossa vontade, sem que isso tenha a ver com nosso prazer (…) além de entregar informação sobre como usar a medicação, falamos sobre porque estamos nessa situação, pelo prazer de quem estamos nessa situação de querer abortar e o que vamos fazer com nosso corpo, com nosso prazer daqui pra frente. Falamos de sexo lésbico, falamos da fuga lésbica, que é a possibilidade de fugirmos da heterossexualidade. E bom, não apontamos também o anticonceptivo como a única solução para não continuar engravidando, seguindo a disposição basicamente do homem.”

Essa é a reflexão que queremos trazer aqui. Pois, nós lesbofeministas propomos a lesbianização como possibilidade emancipatória e ação direta de autonomia sexual e reprodutiva na vida de cada mulher. Como dizem em stencils na Abya Yala: “Lesbianismo para não abortar, Aborto Legal para não Parir”. Nós enxergamos que no atual estado de atrocidade masculinista, o aborto será um paliativo enquanto não questionarmos as verdadeiras raízes da nossa subjugação histórica.

Nós lutamos pelo aborto autônomo ou no sistema público de saúde, porque a privação perversa deste, segunda violência da classe masculina após a exploração sexual realizada sobre os corpos femininos que resulta na gravidez, atinge sobretudo mulheres pobres e racializadas, indígenas, em situação de prostituição, mães solos e com muitos filhos, assim como crianças e adolescentes. A terceira violência é a situação estressante do aborto em si em condições de clandestinidade: não são homens que tem que ir a um hospital depois de um procedimento mal sucedido, fazer uma raspagem uterina, e ter que mentir e se colocar em risco de ser presa ou passar por violência e julgamento no atendimento em saúde. E por último, o ginocídio que o aborto ilegal é hoje. Homens matam mulheres e o aborto ilegal é um estado de femicídio. Isso mostra o caráter sórdido da moral sexual patriarcal: homens utilizam os corpos das mulheres, e no fim as julgadas são as mulheres, que devem até mesmo pagar com suas vidas, numa punição exemplar daquelas que atentem contra a propriedade estatal masculina sobre nossos corpos.

Como evidenciou a pesquisa feita pela Fundação Oswald Cruz, “foi possível traçar um perfil de mulheres em maior risco de óbito por aborto: as de cor preta e as indígenas, de baixa escolaridade, com menos de 14 e mais de 40 anos, vivendo nas regiões Norte, Nordeste e Centro-oeste, e sem companheiro”. Além da Pesquisa Nacional de Aborto de 2016 que alertou que quase uma em cada cinco mulheres já realizou pelo menos um aborto até os 40 anos no Brasil. O presente risco no procedimento abortivo é devido a clandestinidade porque quando o aborto é feito de forma segura não apresenta risco para a vida da mulher, como a OMS (Organização Mundial da Saúde) já se posicionou que considera o aborto um procedimento seguro, desde que realizado dentro dos protocolos estabelecidos e por pessoas capacitadas.

Também defendemos o ativismo aborteiro autônomo, que somente no Chile realizou 5 mil abortos seguros em 2017, contra 600 abortos legais realizados pelo Estado. A descriminalização do aborto no México por exemplo, favorecerá a ação dessas acompanhantes de aborto. Diferente do que dizem, portanto, o aborto autônomo não é menos acessível que aquele realizado em hospitais. Além dele retirar nossas corpas das mãos da medicalização e do ambiente hospitalar e de doença. As acompanhantes em aborto espalhadas pela latino-américa livram mulheres de ter de pedir que homens as auxiliem, pagando a médicos em clínicas privadas, que enriquecem às custas de um problema causado pelos seus irmãos de classe. Precisamos também sair da imagem masoquista da mulher morrendo na sarjeta ao realizar um aborto autogestivo, pelo contrário, estas grupas de aborteiras vêm realizando um trabalho há anos de acompanhamento amoroso, acolhedor e centrado nos saber das mulheres que movimento feminista recuperou muito, focado na saúde autonoma.

Mas mesmo assim, precisamos ir para além da militância abortista, e começar a refletir sobre a gravidez de mulheres como fruto da violência masculina normalizada por meio da cultura sexual masculina em que vivemos, que no fim acaba culpabilizando as mulheres e meninas, sob suposta “agência” destas em se engajarem na predação sexual compulsória da heterossexualidade. É essencial nisso a reflexão sobre a organização social da sexualidade pela classe masculina, instaurando a coito-normatividade às expensas da segurança das mulheres.

Para nós, lésbicas feministas, muitas vezes é com assombro que ouvimos os relatos “sexuais” de nossas irmãs heteros, que deixam nossos corações apertados com as situações de risco e abuso em que são colocadas em suas relações com homens. Ainda assim, nossa lucidez é considerada muitas vezes, senão fanatismo, apenas fruto de nossa “orientação sexual” ou “aversão inata a homens”. Mas a verdade é que a perspectiva epistêmica lésbica é um lugar privilegiado para enxergar o absurdo ético-afetivo que vivem mulheres héteros, expostas à perversidade e à predação masculinas normalizadas.

O acesso aos meios abortivos e sua despenalização sequer seriam um problema tão grande se não fosse a invenção masculinista perversa da vaginalidade e do coito, sinalizados por María-Milagros Rivera como uma construção da anatomia médica e da sexologia misóginas:

“A vagina é uma invenção da anatomia patriarcal, anatomia que, quando se refere às mulheres, é sempre política. Seu primeiro uso médico é da Época Moderna, do século XVII, 1641, época álgida da caça às bruxas (…) Em latim clássico, a inocente palavra significava vagem ou estojo, mais tarde serviu por analogia, para se referir à bainha da espada dos guerreiros da baixa idade média, e daí inspirou aos anatomistas fálicos modernos (…) Foi esta declaração fundacional da vagina na medicina patriarcal moderna como enclave colonial masculino ao serviço do coito e da sexualidade da penetração e ejaculação. Seu propósito foi deslocar a sede originária do prazer feminino da vulva, o clitóris e as ninfas, a matriz, à, agora chamada, vagina, em um intento de subsumir o orgasmo clitórico no orgasmo masculino e, também, de cortar a expansão do prazer feminino livre por toda a matriz.”

María-Milagros diz que mulheres sofrem, nessa cultura, uma clitorectomia simbólica, que nos deixou inconscientes do nosso prazer livre. “Ninfas” seria a palavra antiga para os lábios da vulva. Matriz se refere à antiga palavra para o útero, que incluía as “entranhas” desta que depois seria renomeada “vagina”, palavra que precisamos urgentemente erradicar dos vocabulários proferidos por mulheres e lésbicas. María-Milagros, durante a fascinante aventura deste livro, nos leva a conhecer o processo histórico que instaurou a vaginalidade como discurso. Assim, temos que a vagina em si é uma construção deliberada desde o discurso médico heterossexista, que concebeu e criou esse corpo hetero complementário aos desígnios patriarcais reprodutivos e, de quebra, funcional ao prazer masculino. Um constructo do qual a corpa lésbica escapa rebeldemente. Pois a corpa lésbica é a instauração de uma nova forma de habitar a diferença sexual feminina, ao mesmo tempo que apenas parte de uma recuperação das nossas origens: a fundação clitoriana do nosso prazer, a lealdade ao primeiro amor, a mulher da qual cada uma de nós nascemos porque somos todas “nascidas de mulher” como diz Adrienne Rich (1986).

Nós, lésbicas-feministas, queremos convidar mulheres para ir mais além do aborto e outras agendas de direitos implorados ao Estado masculino. Quando o feminismo heterossexual deixará de limitar-se a apagar os incêndios causados pela miséria masculina, ou de fazer o trabalho doméstico de limpar e consertar os estragos que homens fazem em nossas vidas?
Quando vamos, como mulheres, parar de correr para resolver problemas que não precisavam existir, de termos nossa energia parasitada por homens, e passar a imaginar e criar o mundo que queremos? E para além disso, quando iremos viver a existência feminina não mais desde a opressão e o terror, e sim a partir do prazer, desfrutando o que nossa diferença sexual nos brinda, como o clitóris, nosso órgão sexual verdadeiro e que desmente nosso suposto destino reprodutivo? Diz Jessica Gamboa, feminista da diferença lésbica da coletiva chilena “Feministas Lúcidas”

“Enquanto se apele somente ao direito de decisão das mulheres no discurso do aborto, sem dizer quem (te) engravida e por que (te) engravida se pode evitá-lo – cuidado que aqui não se trata de pílulas, camisinhas ou responsabilidade afetiva – se trata de contrato sexual e heterossexualidade obrigatória, se trata de COITO, prática sexual penetrativa/reprodutiva com os homens, fundamento de sua política sexual, seguirá existindo o problema, por isso me/nos incomoda.”

Sem o coito não haveria aborto. Homens precisam impôr sua prática sexual preferida, realizada pela penetração de seu pênis no corpo da mulher, uma situação de desigualdade sexual nas suas implicações diferenciais, por meio da força (estupro) ou pela ideologia que nos aliena da nossa sexualidade. Grande parte das mulheres não engravidam devido a um voluntarismo de sexo vaginal, mas foram prenhadas contra sua vontade, por estupro, por parceiros egoístas no “dever conjugal” de oferecer sexo ao marido, ou por circunstâncias como prostituição, pela manipulação do consentimento de mulheres jovens e adolescentes, onde a agência é questionável. Ganhar consciência sobre a violência masculina é uma auto-defesa possível para prevenir situações de risco, mas nem todas dependem de nós.

Assim, frente a violência sexual sutil e disfarçada de normalidade sexual, pensamos que para além de leis de aborto, a solução da liberdade feminina muitas vezes já se encontra em nossas corpas mesmas. Por isso afirmamos, como se exibem em faixas em marchas de lesbofeministas aborteiras no Chile e outros lados da Abya-Yala: “A lesbiandade é o melhor contraceptivo”, afinal somos todas clitorianas.

Por que a lesbiandade é o melhor contraceptivo? O que nos permite nos apropriar dessa frase e afirmar isso com tal certeza? Seria elitista conversar com todas mulheres, incluindo mulheres do povo, periféricas, trabalhadoras precarizadas, em abrigos para vítimas de violência, quilombolas, riberinhas, indígenas, em situação de prostituição… sobre a possibilidade existencial lésbica?

De fato, a lesbiandade poderia ser dita ser menos acessível, obviamente, que os contraceptivos no SUS ou em qualquer farmácia. Portanto, já podemos questionar a palavra usada por conservadores, “opção sexual”. Embora não nos opomos à idéia da lesbiandade poder ser uma opção (nós utilizamos “escolha” no lugar de opção, pois é uma decisão ativa e não uma mercadoria numa estante, e não vemos homens e submissão como opção, tampouco como se possuíssem tal igualdade ou falsa equivalência), de fato ela não é. Quando heterossexistas se referem ao nosso amor por mulheres como uma “opção sexual”, trata-se de uma mentira proposital deles, na busca de omitir a heterossexualidade compulsória: a lesbiandade não é colocada, nesse mundo, como uma opção disponível para mulheres, fuga viável frente ao estado de terrorismo masculino no qual vivemos. Na verdade ela é escondida ao máximo.

A Lesbiandade é o não-falado, é cercada por tabu e mistério, é o ininteligível. E, se tornada manifesta, é alvo de violência, escárnio, exclusão, que culminam, então, no lesbocídio, e mais além, no apagamento histórico dos rastros de nossa existência no passado. Portanto, a lesbiandade não é uma possibilidade ofertada às mulheres. Nem mesmo nós lésbicas e feministas podemos falar sobre isso impunemente, sem censuras ou protestos até mesmo de outras feministas e, pasmem, de lésbicas. Então, afinal, parece que Monique Wittig tinha razão ao dizer que maior tabu das sociedades seria a homossexualidade, e não o incesto como alega Levi-Strauss, uma vez que nós que trabalhamos com abuso sexual de meninas sabemos que este é estrutural ao heteropatriarcado. Sendo compulsória a heterossexualidade, não passa de cinismo e falsidade dizer que lesbiandade e heterossexualidade são opções sexuais: a primeira é desobediência, a segunda é forçada.

Afirmar que lesbiandade é melhor contraceptivo é sim nossa escolha política aqui, sabem por que? Porque é sobre prazer. Não sobre é medicar seu corpo, nem colocar ele em risco em hormonizações nocivas de anticoncepcionais que desregulam o funcionamento corporal intrínseco, nem em procedimentos de aborto clandestino ou que, mesmo legal e seguro, necessariamente são estressantes para o corpo e mente, e que passam apenas no corpo das mulheres, e não daqueles homens que se aproveitaram deste.

Mulheres heterossexualizadas geralmente transam com medo de engravidar. A verdade é que a presença de homens de esquerda em marchas pela legalização do aborto se deve ao fato de que homens apoiam aborto porque é cômodo pra eles.

Sobre homens de esquerda e seu apoio ao aborto, escreveu Andrea Dworkin sobre a revolução sexual dos 70:

“No jardim das delicias terrestres, conhecido como a contracultura dos anos 60, a gravidez irrompeu, quase sempre de forma agressiva, e mesmo assim foi um dos verdadeiros obstáculos para que as mulheres escapassem da demanda masculina. Isso tornava as mulheres ambivalentes, relutantes, preocupadas, chateadas, até mesmo as encorajava a dizer “não” (…) Foi o freio que a gravidez colocou nas “delícias” que tornou o aborto uma questão política de alta prioridade para os homens na década de 1960 – não apenas para homens jovens, mas também para esquerdistas mais velhos que estavam flertando com algum sexo da contracultura e até homens mais tradicionais que ocasionalmente mergulhavam os pés na piscina de garotas hippies. A descriminalização do aborto – porque esse era o objetivo político, era visto como o estímulo final: tornaria as mulheres absolutamente acessíveis, absolutamente “livres”. A revolução sexual, para funcionar, exigia que o aborto estivesse disponível sob demanda para as mulheres. Caso contrário, o coito não estaria disponível sob demanda para os homens. O sexo estava em jogo. Não apenas transar, mas transar do jeito que uma grande quantidade de garotos e homens queriam flertar – com muitas garotas que quisessem isso o tempo todo, fora do casamento, de graça. A esquerda dominada por homens agitou e lutou e argumentou e até mesmo organizou e apoiou econômica e politicamente os direitos ao aborto para as mulheres. A esquerda militou pela questão. E então, no final dos anos 1960, mulheres que haviam sido radicais em termos contraculturais, mulheres que haviam sido política e sexualmente ativas, tornaram-se radicais em novos termos: tornaram-se feministas.”

Dworkin ainda diz que homens definiram feminismo em termos de sua própria “depravação” sexual. De fato, hoje muito do que vemos em termos de feminismo não passa de liberalismo sexual masculino aplicado ao movimento de mulheres: o feminismo liberal, o “puta-ativismo”, o queer, o trans/generismo e algumas expressões do anarcofeminismo. É cômodo para homens definirem liberdade sexual feminina como liberdade de acessarem corpos sexuados, assim como outros corpos. É a partir disso que homens e a esquerda se colocam em relação ao aborto, transformando a questão em uma luta por “liberdade sexual”, quando para muitas de nós, a experiência de atravessar o aborto é o começo de uma consciência lésbica e da defesa da nossa dignidade e integridade física. Narram ativistas aborteiras que são muitas as mulheres que após um aborto, se tornam lésbicas. Acredita-se que isso se deva à compreensão de que centrar nossas vidas em mulheres é mais seguro, além de prazeroso e, especialmente, afetivo ao invés de coisificador.

Para nós, a Lesbiandade é sobre a autonomia sexual radical que mulheres podem alcançar, sem renunciar ao prazer de ser mulher. A verdadeira afirmação “o corpo é meu”, passaria pela desintoxicação das impurezas das vozes e olhares internalizados dos homens. Senão, não passa de feminismo liberal, e tal “liberdade com o corpo”, que no fim atende a eles. Como disse Carla Lonzi: “Que o aborto livre não sirva para codificar a expressão do sexo feminino dentro da voluptuosidade da passividade e sua utilização física pelo homem”.

Nos enganam quando dizem o aborto se trata de uma conquista das mulheres, que coloca a liberdade em termos de ‘maternidade escolhida” (a não-decisão seria num contexto de compulsoriedade da reprodução humana por meio do corpo feminino, a maior representação de uma possível liberdade aqui), quando, na verdade, o patriarcado apenas está se modernizando e terminando de consolidar sua ação no mundo, por meio dos próprios movimentos de emancipação das mulheres. Ti Grace Atkinson já disse décadas atrás “Não há em todo o mundo nenhuma atividade legalizada, à exceção da guerra, que tenha um índice de mortalidade tão elevado quanto a maternidade”. Segundo esta autora, o sexo vaginal apenas pode levar à reprodução, e, por isso, foi construído o discurso do orgasmo vaginal, numa substituição moderna ao antigo mito do instinto materno. Seu objetivo é a manutenção do heterocapitalismo e de um fluxo de contingentes humanos a serem explorados laboralmente. Além de, é claro, assegurar a continuidade da domesticação da mulher.

Enquanto as mulheres estiverem colonizadas por homens, enquanto tiverem internalizada a Masculinidade cultural, “não poderemos estar seguras de que a liberdade que se encontra é nossa, e não do homem que se realiza por meio de nós”, como disse Carla Lonzi.

Também como exemplifica Ti-Grace Atkinson, forças sociais constróem o consentimento das mulheres no coito heterossexual assim como seu “desejo”:

“O ambiente vaginal é necessário ao intercurso. Ou se força a mulher a fornecer este ambiente, ou é de seu interesse fazê-lo. É ilegal forçá-la: isso se chama estupro. (…) Ela tem, portanto, interesse em fornecer este ambiente. Então, supõe-se que ela tenha a mesma experiência que o homem ao praticar a mesma atividade. Vamos chamá-la de “orgasmo vaginal” para distinguí-la da significação principal de “orgasmo”, a saber, o orgasmo masculino. E isso não tem como não ser agradável à mulher. Se a experiência é idêntica àquela do orgasmo masculino, não deveria haver diferenças de intensidade nem de condições de obtenção. (…) O instinto materno constitui evidentemente um interesse muito indireto para justificar as relações sexuais de uma mulher livre. Convém encontrar uma associação mais direta entre o ato e os interesses da mulher. À medida que a coerção exterior diminui, é preciso que esta coerção seja interiorizada pela vítima.”

Assim Carla Lonzi, com o grupo Rivolta Femminile, lançou nos anos 70 na Itália, a clássica indagação ao movimento de mulheres: “Para o Prazer de quem aborta?’. Para ela, a sexualidade verdadeiramente livre das mulheres só poderá ser encontrada no aprofundamento da consciência feminina. Logo, o aborto não será suficiente para responder essa questão mais radical e existencial para nós.

Aborto não é sobre sexualidade no sentido de sensualidade feminina, “liberdade sexual” da mulher ou prazer feminino, e sim sobre prazer e necessidade dos homens como classe. É sobre abuso masculino. O aborto e a gravidez não desejada são frutos da violência sexual masculina impostas pelo coito obrigatório, uma sexualidade de risco para mulheres. Em vista disso, Carla Lonzi afirma: “A gravidez é fruto da violência cultural sexual masculina sobre as mulheres”. Assim, a gravidez das mulheres dentro do patriarcado, diferente do que nos fizeram acreditar, não é fruto da nossa biologia ou da natureza das relações entre os sexos, mas sim da cultura de dominação masculina, símbolo da colonização dos homens realizada sobre nossas corpas e da invasão destes territórios vitais e íntimos, ritualizada na sexualidade do coito pelos homens.

O aborto como necessidade emergencial em meio ao contrato sexual sob o qual vivemos é uma situação que evidencia a violência machista hoje, não apenas no uso da força explícita do estupro criminal pela legislação, mas, também, aquela violação sutil e da aquiescência feminina persuadida expressa nas formas de relações sexo-afetivas marcadas pelo maltrato emocional, que filósofos preferem chamar pelo nome pomposo de “modernidade líquida”, relações de uso típicas das éticas afetivas masculinas. Ele é o símbolo do descaso dos homens pelas mulheres. Aqueles que desfrutam e requisitam o sexo sem camisinha são os homens. Nisto não está apenas um argumento de “sensibilidade” física maior, mas da erotização do sadismo e crueldade dos homens.

Como pode alguém ter prazer sexual sabendo que aquela outra pessoa está renunciando ao seu, estará com medo e preocupada e tensa? Nossa mente lésbica não consegue sequer imaginar como poderiamos nos excitar numa situação de desigualdade, onde o prazer não é mútuo. Ou, simplesmente, sabendo que você está descuidando e agindo sem empatia com aquela outra pessoa. A fantasia sexual masculina aqui é a do estupro. E mostra como homens dificilmente terão empatia com mulheres enquanto o gênero não for abolido de fato, porque a empatia requer identificação, ou seja: que vejam mulheres como iguais. Que se identifiquem com as mulheres, coisa que causa horror em qualquer homem, sendo a feminização simbólica (daí o heterossexismo com homens ou vulgo homofobia). E o fundamento da identidade masculina é justamente que eles não são mulheres, onde depositam tudo de negativo e que repudiam para construir seu narcisismo cultural de gênero.

Mulheres não desfrutam como imaginamos do sexo vaginal. Desde o relatório Hite dos anos 1970, segue alta a porcentagem de mulheres que não alcançam o orgasmo por meio do sexo penetrativo, que se naquela época beirava os 70%. Segundo pesquisa publicada na pubmed em 2018, apenas 30% das mulheres não chegam ao orgasmo apenas com o intercurso sexual. Também, 67% das mulheres admitem ter fingido orgasmo ao menos uma vez com seus parceiros, dados da revista Cosmopolitan. Na primeira vez que transam com um homem, apenas 7% das mulheres chegam ao orgasmo, enquanto que se essa primeira vez se dá com uma mulher, este número salta para 64%, em pesquisa realizada pela doutora sexóloga Laurie Mintz. A vagina é um órgão reprodutivo, não possui enervações que levam à excitação. Senão um bebê não poderia passar por ali no trabalho de parto, sem grande incômodo à mulher. A evolução é sábia.

Há mulheres que pedem o sexo sem camisinha e se colocam em risco, internalizando a construção imaginária masculina sobre intimidade, união ou mesmo a própria humilhação erotizada. Desejar a própria degradação sexual também foi empreendimento dos homens, que fazem mulheres internalizarem o prazer dos homens como sendo seu. Uma das formas de adoutrinamento e adestramento do tesão feminino para atender a própria subjugação e as perversidades masculinas é a pornografia, praticamente compulsória nas sociedades de hoje e que desde crianças somos bombardeadas senão pelo pornô em si, pela cultura pornografica banalizada nas mídias, instrumento da propaganda heterossexual:

“Nós não aprendemos a expressar-nos sexualmente em um mundo de relações igualitárias e amorosas. Mulheres e homens nascem dentro de um sistema heterossexual de dominação masculina e submissão feminina. Isso é verdade independente de sermos capazes de escapar o suficiente disso para amar mulheres. (…) Os modelos oferecidos a nós de sexualidade feminina são os de passividade e submissão. Somos ensinadas a responder sexualmente a investidas agressivas dos homens.(…) Vivemos sob opressão e onde não há virtualmente nenhuma forma de escapar, pelo menos até atingirmos uma idade avançada, em direção a relacionamentos igualitários nos quais tomamos iniciativas sexuais, temos pouca alternativa além de nos aprazer de nossa opressão. A resposta mais comum é a de erotizar nosso desempoderamento no masoquismo.”

Muito falamos sobre aspectos culturais, mas vamos nos deter brevemente na biologia. O pênis é utilizado em nossas sociedades e ao longo da história como uma arma biológica em sua guerra contra as mulheres e é parte fundamental do processo de colonização feminina. Uma prova disso é como a sífilis foi utilizada como método de extermínio indígena durante a colonização européia do nosso continente, por meio do estupro também como eugenia enbranquecedora.

Em seu livro “O contrato sexual”, Carole Pateman mostra como no cerne da organização política das sociedades ocidentais, modelo adotado no mundo todo atualmente, está a organização da dominação masculina, logo, os pactos sociais são na verdade pactos sexuais. Da mesma forma, Monique Wittig também aponta que as categorias do sexo são resultado de um contrato firmado entre os homens, dentro do qual as mulheres são heterossexualizadas. Feministas materialistas e marxistas também há muito apontam como o sistema capitalista depende da força laboral feminina primária, de que continuemos produzindo bebês a serem explorados em nome do deus capital. Daí a etimologia da palavra proletariado, vem de prole, daquela que produz a prole.

Mas, voltemos ao convite à biologia, às substâncias químicas ejaculadas por homens dentro dos corpos das mulheres, responsáveis pelo ataque mais direito à saúde feminina. Cada vez mais forte é o movimento de olhar ingredientes nos rótulos de produtos cosméticos e alimentícios para estar ciente do que passamos em nossa pele e inserimos em nossas corpas, pois muitos são os compostos e conservantes nocivos e cancerígenos. Por que mulheres não podem fazer o mesmo em relação à ejaculação realizada em seu corpo, e saber as substâncias que estão sendo ali depositadas? A pesquisadora anônima do blog “trustyourperceptions” por exemplo, realizou uma pesquisa pessoal sobre o esperma, e diz ter encontrado nele mais de 100 substâncias químicas.

Outra pesquisadora, a bióloga Margie Profet, em seu clássico artigo intitulado “Menstruação como defesa contra patógenos transportados pelo esperma” (1993), lança luz sobre o desinteresse da biologia em estudar o corpo feminino, em especial em se deter na menstruação. Sua hipótese é de que a regularidade anormal do coito na espécie humana, realizada nas demais espécies animais como um evento em toda vida daquele ser, que se mobiliza pelo planeta para acasalar muitas vezes, geralmente resistido pelas fêmeas das demais espécies, trouxe na anatomia feminina a necessidade da menstruação como também um recurso regulador da saúde feminina.

Não precisamos nem ir tão longe, quando vemos o que ginecologistas têm a dizer do impacto do esperma na vagina e na saúde feminina: a vagina possui PH ácido. O esperma contém líquidos seminais que possuem PH básico, para neutralizar aquele ambiente e permitir que os espermatozóides sobrevivam naquele ambiente. O esperma altera o PH da vagina, causando os quadros ginecológicos em mulheres de infecções urinárias, candidíases recorrentes, bactérias, e afins. De fato, ele aniquila a flora bacteriana da vagina, nosso sistema imunológico natural de prevenção de infecções ginecológicas. Se não fosse o heterosexo, a demanda da medicina ginecológica não seria tão compulsiva na vida das mulheres. Além disso, cabe lembrar que o pênis é um órgão exposto, e que homens dificilmente cuidam ou lavam direito. Mil homens amputam o pênis no Brasil por ano, e um fator importante é a falta de higiene na região.

O sexo lésbico, mesmo quando envolve penetração, não chega a ser profunda para chegar a levar alguma infecção ao cólo do útero por exemplo, e por ser geralmente tribadista, por meio do roçar das vulvas, contém muito menos possibilidade de levar sujeiras às entranhas da matriz. O dedilhar do canal vaginal se adapta aos pontos que sejam tocados pelo clitóris secundariamente. Por isso tantas mulheres chegam ao orgasmo no sexo com outra muher segundo pesquisa da Dra. Mintz. Por não expelir quaisquer substâncias, dificilmente um dedo (limpinho) altera a microbiota da vulva, sem contar que mulheres são socializadas para serem mais limpas e se cuidarem, fazem exames de rotina, enquanto é preciso campanhas governamentais para prevenir o câncer de próstata pois o machismo dos homens impedem que cuidem de sua saúde sexual. O cuidado com a vida e consigo é feminino. Embora este cuidado tenha sido explorado e desvirtuado, segue sendo uma vantagem da psicologia feminina, assim como a capacidade de identificação e empatia que permite relações mais amorosas entre nós.

Sim, defendemos que toda mulher tem direito ao aborto seguro, sem que sua vida seja colocada em risco, e, mais, garantindo a possibilidade de fuga futura do regime heterossexual. Mas, precisamos ir além e conscientizar as mulheres que mesmo o coito que não resulta em gravidez, constitui-se em uma forma de controle e adoecimento de corpas. Entre essas substâncias, é relevante a quantidade de sedativos, hormônios, imunossupressores e possíveis patógenos, que afirmam terem encontrado essas autoras. São muitas mulheres anti-natalistas por exemplo, que realizam histerectomias totais, retirando o útero cirurgicamente para evitar uma gravidez. Rogamos a elas que se tornem mais cientes dos riscos implicados tanto em uma cirurgia assim, já que a função do útero é também regulatória do corpo como um todo, quanto em se exporem a outros riscos para além da gravidez:

“prolactina, vasopressina, endorfinas, encefalinas, hormônios da tireoide e glicocorticóides – sedam as mulheres. Esses químicos entorpecem, interferindo no pensamento das mulheres e desconectando as mulheres delas mesmas, as encorajando a ignorar seus impulsos de auto-preservação, nublando-as da percepção da ameaça às suas mentes e corpos. O objetivo é conseguir a conformidade das mulheres. Quando pesquisadores dizem que “esses compostos estão correlacionados com um aumento na acessibilidade”, a visão científica masculina usual, o que eles estão reportando é que sêmem torna as mulheres passivas.” (Trust Your Perception, 2016)

Podemos tomar a hipótese dessa pesquisadora, se ainda faltam estudos que comprovem tais especulações, como metáfora para a perda da consciência e desconexão com nós mesmas ritualizada pelo sexo heterossexual como sequestro do Eu feminino sob supremacia masculina, lembrando que a palavra “esposa” vem de “espólio”, mulheres como espólios de guerra. De fato, desde a Antiguidade era comum médicos prescreverem o coito como tratamento para a “histeria”, alegando que controlariam as mulheres, “o que falta à ela é piroca”. Temos, então, que a colonização das mulheres começa pela colonização de nossa matriz, nomeada “vagina”. As alterações psíquicas, chamadas por Dee Graham (1994) de “distorção cognitiva”, causada pela afeição as captores num contexto de síndrome de estocolmo social da classe feminina sob terror e violências masculinas, são depois classificadas como “amor”, “paixão” e muitas mulheres, de fato, estão andando no mundo “equivocadas de orgasmo”, como diz María-Milagros. Se considerarmos que a grande maioria das mulheres é coagida e violentada ainda meninas, em um processo de grooming (aliciamento) heterossexual, podemos começar a compreender a magnitude do problema. É comum que mulheres relatem sentirem nojo e asco em relação ao pênis e narrem primeiras experiências sexuais traumáticas, marcadas pela dor e pelo estranhamento de si mesmas, sendo então encorajadas pela sociedade e, muitas vezes, pelas amigas, também heterossexualizadas, a se submeterem ao coito “até gostarem”. O resultado muitas vezes sendo uma gravidez que as coloca em maior vulnerabilidade e, através do estado estuprador, faz com que elas se encontrem atadas juridicamente a um homem.

Nós, lesbofeministas radicais, nos recusamos a manter esse ciclo, por isso expomos a verdade e oferecemos nosso apoio a todas as mulheres. Não participaremos do gaslighting heterosexista, que até mesmo o movimento feminista continuam a operar quando não nomeiam o inimigo e lutam diretamente contra o regime heterossexual, além de recusarem reconhecer a alegria e liberdade da vida feminina livre, utilizando teorias masculinas como a do inatismo sexual para alegar que tal tragédia é inevitável.

Já disse Catherine Mackinnon: “A sexualidade é para o feminismo, o que o trabalho é para o marxismo”. Nós enxergamos a lesbiandade como projeto de avanço civilizatório em chave feminina, de retorno à nós mesmas e nossa ontologia clitórica, possibilitando visualizar um mundo no qual mulheres sejam livres, construam comunidades entre si e recuperem o amor por si mesmas. A sexualidade lésbica é segura, ecológica, autosustentável, alegre, e as sujeitas da lesbiandade, as mulheres, são implicadas emocionalmente devido à psicologia relacional feminina.

Enquanto verdadeira libertação da classe das mulheres não for alcançada, o aborto será apenas um paliativo e uma migalha para tamponar os efeitos mais perversos da dominação masculina. Não queremos nos deter aí: enquanto todas mulheres não forem livres, nenhuma mulher será livre de fato. A lesbiandade segue sendo ontem e hoje a resistência e rebeldia da humana do sexo feminino que diz não aos homens e seu acesso a nós. Apesar dos novos tabus impostos desde o discurso liberal de orientações sexuais, nós lesbofeministas seguiremos falando o que patriarcas impedem a muitos séculos: que essa alternativa é viável e disponível à todas mulheres. Não chegamos tão longe para voltar a acreditar em dogmas que buscam instalar determinismos em nossas vidas, ainda mais quando diz respeito a auto-determinação sexual das mulheres. Pois como disse Simone de Beauvoir: nossa substância é a própria liberdade.

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