nancy fraser sobre segunda onda feminista

1 Historicizando a segunda onda do feminismo

Como devemos entender a história da segunda onda do feminismo? A narrativa que proponho se diferencia relevantemente do padrão difundido nos círculos acadêmicos dos Estados Unidos. A história padrão é uma narrativa de progresso, segundo a qual nós saímos de um movimento exclusivista, dominado por mulheres brancas heterossexuais de classe média, para um movimento maior e mais inclusivo que permitiu integrar as preocupações de lésbicas, mulheres negras e/ou pobres e mulheres trabalhadoras.1 É claro que eu apoio os esforços para ampliar e diversificar o feminismo, mas não acho que essa seja uma narrativa satisfatória. No meu ponto de vista, ela é muito interna ao feminismo. Preocupada exclusivamente com os desenvolvimentos dentro do movimento, essa narrativa não consegue situar mudanças interiores em relação aos desenvolvimentos históricos mais amplos e ao clima externo. Assim, eu indicarei uma história alternativa, que é mais histórica e menos autocongratulatória.

Para os meus propósitos, a história da segunda onda do feminismo se divide em três fases. Em uma primeira fase, o feminismo estava estritamente relacionado a vários “novos movimentos sociais” que emergiram do fermento dos anos 60. Na segunda fase, foi atraído para a órbita da política de identidades. E, finalmente, em uma terceira fase, o feminismo é cada vez mais praticado como política transnacional, em espaços transnacionais emergentes. E eu me explico em seguida.

A história da segunda onda do feminismo apresenta uma trajetória impressionante. Fomentada pelo radicalismo da Nova Esquerda (New Left), essa onda do feminismo começou como um dos novos movimentos sociais que desafiaram as estruturas normatizadoras da social-democracia pós-Segunda Guerra. Originou-se, em outras palavras, como parte de um esforço maior para transformar o imaginário político economicista que tinha centrado a atenção em problemas de distribuição entre as classes. Nessa primeira fase (novos movimentos sociais), feministas buscaram ampliar o seu imaginário. Ao exporem uma ampla gama de formas de dominação masculina, feministas sustentaram uma visão expandida da política que incluísse “o pessoal”. Mais tarde, no entanto, com o declínio das energias utópicas da Nova Esquerda, os insights anti-economicistas foram ressignificados e incorporados em um novo imaginário político que colocou questões culturais em primeiro plano. Efetivamente capturado por esse imaginário culturalista, o feminismo reinventou-se como política de reconhecimento. Nessa segunda fase, o feminismo se preocupou com a cultura e foi atraído para a órbita da política de identidade. Apesar de o feminismo não ter sido notado àquela época, a sua fase de política de identidade coincidiu com um desdobramento histórico mais amplo: o esgarçamento da democracia social baseada na idéia de nação graças à pressão do neoliberalismo global. Sob tais condições, uma política de reconhecimento centrada na cultura não poderia ser bem-sucedida. Na medida em que negligenciou os desdobramentos político-econômicos e geopolíticos, essa abordagem não pôde opor-se de maneira efetiva nem à selvageria das políticas de livre-mercado nem ao chauvinismo de direita que emergiu com elas. Principalmente o feminismo estadunidense não estava preparado para as alterações dramáticas no horizonte político após o 11 de Setembro. Na Europa e em outros lugares, contudo, feministas descobriram, e estão destramente explorando, novas oportunidades políticas nos espaços políticos transnacionais no nosso mundo que se globaliza. Logo, estão mais uma vez reinventado o feminismo – desta vez como um projeto e um processo de política transnacional. Apesar de esta terceira fase ser ainda bastante recente, ela anuncia uma mudança na escala da política feminista que poderia tornar possível integrar os melhores aspectos das duas fases anteriores em uma nova e mais adequada síntese.

Essa é, de forma resumida, a história que eu gostaria de elaborar aqui. Antes de prosseguir com os seus desdobramentos, são necessários dois lembretes. O primeiro diz respeito ao caráter altamente estilizado dessa narrativa; de forma a esclarecer a trajetória como um todo, acabo por desenhar linhas extremamente demarcatórias quando, em muitos lugares e em muitos pontos, as realidades tendem a se sobrepor. Contudo, vale a pena correr o risco da distorção, se a narrativa gerar insights políticos e intelectuais para o período futuro.

Minha segunda advertência diz respeito à geografia das três fases do feminismo. Da forma como eu a entendo, a primeira fase (novos movimentos sociais) alcançou os feminismos da América do Norte e da Europa Ocidental – e possivelmente correntes em outros lugares. A segunda fase (política da identidade) foi mais bem expressa nos Estados Unidos, apesar de ter tido ressonância em outras regiões. Finalmente, a terceira fase é mais desenvolvida, como seu nome sugere, em espaços políticos transnacionais, paradigmaticamente associados à “Europa”.

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