Violência enquanto tabu

A violência enquanto tabu

Publicado em 18 junho 2013

A violência é um tabu. Pode haver várias razões para isso, entre elas a sua complexa definição, mas o que é bastante claro e palpável é que não discutimos sobre esse assunto. Quando as pessoas combinam de protestar (lembrando que protesto é sempre contra alguma coisa), de antemão, implicitamente ou de maneira escancarada o pacifismo se impõe. Não pode quebrar nada, não saia da linha, não olhe torto.

Qualquer um consegue perceber que queimar carros, por exemplo, irá desencadear uma resposta do Estado, pois do ponto de vista dele, a ordem normal, pacata e saudável, ou seja, trabalhar 8h por dia, perder tempo no trânsito, pagar para se divertir, pagar para ser cidadão, pagar para respirar, tudo isso, mesmo sendo uma merda, não pode mudar. Quando uma pessoa diz isso, ela está apenas observando: acontece assim, assim será.

Mas isso não serve!

Toda transformação depende de um descentramento, é preciso que coisas aconteçam fora das regras do jogo da normalidade. E é aqui que entra o papel político da violência.

Dentro das regras do Estado Democrático de Direito, a violência é monopólio da polícia. Poucas pessoas percebem que, mais uma vez, delegar esse poder a uma instituição (qualquer que seja) é caminhar em direção à passividade. Como alguém cuida disso pra mim – alguém especialista, uma autoridade, é claro –, quem sou eu para atuar ou mesmo opinar?

Como tabu, a violência é um assunto sobre o qual todo mundo concorda tacitamente e que não se fale mais nisso! Matar alguém, quebrar uma janela, assediar verbalmente. Como se não houvessem diferenças simbólicas ou atores privilegiados em cada ação violenta.

O que fazer então para enfrentar o tabu do vandalismo? Meu palpite é que temos que falar MUITO sobre o assunto, desconstruir as verdades tradicionais sobre o certo e o errado, e quem sabe experimentar: agir, contar o que foi feito, como se sentiu, o que vai fazer depois disso, etc.

O que vem acontecendo em São Paulo e no Rio de Janeiro, as manifestações contra o aumento da tarifa, agora em junho de 2013, são, como a mídia, acuada perante à adesão diversificada da população, chama, “para além dos 20 centavos”. O nacionalismo que tem aparecido é assustador, mas o que vou continuar defendendo neste texto, com esses exemplos, é a prática do vandalismo.

Os conservadores, tanto de direita como de esquerda, defensores da propriedade privada, perguntam: pra quê isso? Quebrar vidro de banco resolve o quê? (É importante notar que o conservadorismo não é um mal de classe ou idade. Às vezes se manifesta em disputas de poder, outras em medo do desconhecido.) É claro que quebrar não resolve nada. Isso é óbvio. O que acontece é que o ato de destruir, de vandalizar causa fortes transformações simbólicas numa pessoa e ao seu redor. Tem muita violência que acontece todo dia e que é “normal”, como humilhar uma criança, bater em mulheres, ou matar um animal. Como é que essas não são pautas diárias já que transbordam pelo cotidiano e quebrar a janela de um banco é o fim do mundo? Não discutir sobre violência ajuda a manter esse estado “normal” grotesco assim como impede de colocar em xeque a propriedade privada.

Se formos ver a Revolta do Buzu (Salvador, 2004), as Revoltas da Catraca (Floripa, 2004-2005), as revoltas na periferia de Paris (2005), em Londres (2011), ou alguma outra manifestação em que houve violência, poderíamos dizer: a polícia desceu o cacete, o Estado abafou a insatisfação das pessoas. Esse poderia ser o saldo para aquela História feita de heróis e revoluções mirabolantes em que mudanças só valem se forem por completo (isso existe?).

Pois eu digo que o resultado foi outro. A vivência daquelas pessoas (vândalos e próximos) foi completamente fora do sistema do jogo tradicional. E isso é uma mudança simbólica, ao meu ver, muito importante. Significa uma retomada de poder por parte de cada pessoa envolvida, um dizer não ao Estado e às leis que silenciam inúmeras agressões, uma transformação da propriedade privada em assunto coletivo e não pessoal.

Citando uma postagem do blog incandescencia.org:

“Uma cultura que reprova o vandalismo como ato político não produz e não sustenta que o vandalismo ocorra mais e perenemente. Assim como uma cultura que reprova o protesto como inconveniência não produz tantos protestos quanto uma que se vê no dever de protestar.”

Por fim, o aumento da passagem e as manifestações têm ido, desta vez, muito além da pauta inicial. Porém, se forem do tipo “palavras de ordem”, como parece a mania geral, então não haverá descentramento simbólico e a galera irá fazer o que as regras permitem. Se houver vandalismo, então alguns poderão romper com um limite social e vivenciar algo fora do tabu (mesmo que sem perceber, não importa). Além disso, parece que o vandalismo gera uma discussão muito maior em torno dos protestos. Novamente, se ela for rasa e rápida, encerra o assunto com o julgamento categórico: errado! e nada acontece. Senão, analisada enquanto tabu, a violência sai do seu lugar “normal” e pode, talvez, se transformar.