Desabafo


Nos últimos dias tenho andado um pouco triste e melancólico. Não sei bem por quê, mas as notícias sobre a devastação ambiental, cultural e todas as mortes que o Estado Brasileiro está realizando, ou pelo menos incentivando, estão me batendo mais forte. Fiquei bem mexido quando vi a notícia de que um desembargador homofóbico autorizou a ação do prefeito do Rio de Janeiro de recolher livros que continham a imagem de um beijo gay¹ e fiquei assustado ao perceber que o desdobramento disso seria a censura ou autocensura de todos os meios de comunicação, que parariam de transmitir cenas de afeto entre pessoas do mesmo sexo. Quase chorei ao ver a foto de um tamanduá-mirim machucado pelo fogo na Amazônia e minha garganta secou enquanto imaginei quantos milhões de animais foram e continuam sendo mortos e tendo seu hábitat destruído pela estúpida ação humana.

Se paro para pensar nas razões dessas notícias estarem me afetando tanto por esses dias – apesar de saber que coisas igualmente ruins acontecem e vêm acontecendo há milhares de anos – a conclusão que chego é que estou triste porque não estou fazendo tudo o que gostaria para fazer deste mundo um lugar melhor. Tenho consciência de que individualmente faço bastante, o suficiente para saber que estou contribuindo e ocupar o tempo que tenho disponível – mas o que sinto falta é de estar conectado com outras pessoas que pensam de forma similar e realizar coisas de forma coletiva. Estar juntos, pensando e compartilhando perspectivas e fazendo planos.

O sistema tem sido muito eficiente em nos deixar desanimadas, sozinhas, isoladas em apartamentos ou no trabalho, olhando para telas luminosas. Parece que há uma inteligência² por trás disso tudo que sabe que quando estamos sós somos frágeis e impotentes e que a nossa união é uma ameaça às forças conservadoras e ao status quo. O capitalismo produz uma sensação de isolamento generalizada ao mesmo tempo em que nos dá uma ilusão de conexão – a comunicação nunca foi tão fácil, mas também nunca nos sentimos tão sós. Isoladas somos forçadas a prover para todas nossas necessidades sozinhas (no máximo em casais) e isso só é possível recorrendo ao mercado, trabalhando horas num emprego que suga toda nossa energia mental e física. Esse desgaste nos gera uma percepção de que estamos sem tempo ou energia para nos reunirmos para fazer alguma coisa a respeito e assim escolhemos ficar em casa, aumentando ainda mais nossa solidão e isolamento. É um ciclo vicioso.

E no dia seguinte acordamos e temos novamente que correr atrás do pão, pagar o aluguel, a conta da luz, o telefone, etc. E assim adiamos a construção de uma alternativa, acreditando que um dia teremos o tempo para trabalhar nisso (ou que outras pessoas farão isso por nós), mas isso não vai acontecer, a situação não vai melhorar. A menos que estejamos dispostas a transformá-la. Uberização do emprego, reformas trabalhista e da previdência, caos ambiental elevando preço dos alimentos, tudo conspira para nos deixar cada dia mais sem tempo, mais presas às engrenagens do capitalismo, descrentes do nosso próprio poder de transformação.

Se não arranjarmos tempo hoje para nos encontrar e conspirar juntas sobre como é a vida e o mundo que queremos e o que podemos fazer a respeito, amanhã será mais difícil. Pois amanhã o sistema vai estar mais aperfeiçoado em nos manter presos em nossas rotinas cama/trabalho/Netflix/cama, pois amanhã estaremos mais frustradas e desempoderadas, deprimidas, talvez algumas de nós sejam presas ou mortas, talvez muitas tirem sua própria vida no meio desse desespero, ou simplesmente trabalharemos até morrermos velhas e cansadas.

Ou isso ou fazemos algo a respeito. Agora. Talvez gente provavelmente não vai saber de cara o que queremos fazer e como fazê-lo. Mas podemos começar simplesmente nos encontrando regularmente, olho no olho, pra saber o que cada pessoa tá sentindo, tá pensando, o que ela já está fazendo e como podemos ajudar ela a fazer mais e com o tempo podemos descobrir o que podemos fazer juntas. Mas é importante termos a consciência de que nós temos tempo para isso, que “não ter tempo” é uma escolha que fazemos – muitas vezes incoscientemente, sem ao menos saber que existem outras opções – quando optamos pelo estilo de vida que o sistema nos vende: ter um emprego de turno integral, morar sozinho pagando aluguel, ir ao cinema, jantar fora, tomar cerveja pra desopilar, viajar nas férias, etc.

Da forma como consigo enxergar as coisas temos essas duas opções. u nos submetemos a esse sistema, aceitando o que ele tem a nos oferecer e, principalmente, o que vai tirar de nós, ou nos juntamos já com pessoas próximas e começamos a pensar em como quebrar o ciclo que nos prende em nossas rotinas e retroalimenta o próprio sistema. Eu escolho a segunda opção. Quem vem junto?

Abraços, Drupa.

Decidi morar numa cidade do interior a quase 1.000km das minhas amizades, das ruas que sei o nome, dos movimentos que me formaram enquanto “militante” e das causas que acredito. Todos os dias eu acordo pensando em voltar. Mas ao mesmo passo voltar já não é mais uma alternativa, pois as coisas que me afastaram seguem lá, grupos cheios de razão, conflitos diretos entre anarquistas, lugares incríveis subutilizados por capricho de alguns, desunião e um consequente isolamento, igualzinho a estar aqui, com a diferença de poder colar em algum evento outro.

Tenho pensado muito sobre como vamos “construir” espaços de convivência comuns entre nós, onde pessoas diversas possam circular, conviver, pensar juntas, criar e desenvolver práticas, se apropriar de tecnologias e manter princípios anárquicos e anarquistas.

Estou momentaneamente chamando isso de “projetos de longo prazo”, não consigo sintetizar nome melhor, mas talvez seja exatamente isso que tenho sentido falta. Estamos sendo atropelados pelas urgências, organizando resistências contra as pautas “da vez” e muitas vezes tretando por causa disso e desperdiçando oportunidades de construir projetos de longo prazo, onde as questões “do momento” tenham sim o seu espaço na pauta, mas que um objetivo maior e ordem prático seja o aglutinador disso.

Vejo bons exemplos por aí, cada um suas peculiaridades e características, porém são tão poucos que sequer enchem os dedos de uma mão. E penso que precisamos de mais espaços físicos de encontro, pensamento, cultura e promoção de práticas. Mas vejo que o “manejo” e “administração” desse tipo de espaço é uma tarefa complexa, que requer a constante mobilização das pessoas, independentemente de ser um centro social ocupado, um instituto, uma ong, um coletivo com espaço próprio. Essa mobilização é onde reside os problemas, pois me parece que a cada dia as pessoas estão cada vez imersas em seus problemas, como vão pagar o aluguel, o TCC para terminar, etc.

Essa semana fiquei pensando sobre a editora, como estou sobrecarregado com ela e fiquei um pouco frustrado em perceber que se esses equipamentos e papéis estivessem em um espaço compartilhado, com mais pessoas, como parte de um projeto maior, poderia ser melhor não só para mim, mas para todas as pessoas que direta ou indiretamente são “tocadas” pelo projeto da Monstro. Porém eu não tenho as respostas, somente as perguntas.

Recentemente eu descobri o “The Autonomous Research Institute for Direct Democracy and Social Ecology” um espaço independente para pesquisadoras e pesquisadores no interior dos Estados Unidos. Fiquei pensando como essas pessoas conseguiram esse espaço, como ele é mantido e tudo que é desenvolvido lá. Um dos projetos que eles contribuem ativamente é o “A World Without Police” aworldwithoutpolice.org um repositório incrível de questões que mobilizam diversos segmentos da sociedade, independentemente do espectro anarquista. A questão é que essas pessoas conseguem mobilizar pessoas que contribuem com o espaço, seja através de participação ativa, seja colocando a mão no bolso com quantias pequenas e em alguns casos quantias maiores. Dai volto a pensar em nós. Estamos todos lascados, sequer conseguimos manter uma ocupa sem brigar, e nos poucos espaços em que isso acontece, as dificuldades são imensas.

OK, o exemplo do “Autonomous Research Institute…” é grande demais, beleza. Mas quase todas as pessoas que já tiveram oportunidade de viajar pela América Latina sabem que existem centenas de centros sociais, ocupas, espaços comuns e paradas semelhantes funcionando, talvez sem tanto espaço, talvez sem aqueles painelzão solar, mas cheios de vida, de pessoas, de participação e atividades.

Com isso percebo que o problema não está no espaço em si, mas em nossa capacidade de mobilização em torno dessa questão. Talvez estejamos envolvidos demais com nossas vidas que não estamos conseguindo tocar projetos de longo prazo junto com outras compas. Talvez seja o momento de pensar um pouco mais sobre isso, de falarmos uns com outros sobre a importância de termos um espaço de uma biblioteca, de um centro social, de um espaço cultural, de um lugar. Pois a cada dia, parece que estamos ficando sem lugar no mundo, isolados e perdendo a capacidade de agir.

Sei que é bem possível de conquistarmos isso, algumas pessoas já estão fazendo isso, dedicam boa parte do seu tempo em “construir” espaços que não são a sua casa, mas que podemos dizer que são parte de suas vidas.

Eu ainda não sei o que vou fazer com esse sentimento de estar longe e isolado, apenas sei que não quero que seja sempre assim e que cedo ou tarde poderei carregar impressora, guilhotina e caixas de papel para outro lugar e compartilhar com mais pessoas a felicidade que sinto ao editar, imprimir, montar e distribuir os livros da editora.

Por mais espaços comuns,
vertov.

Então, Vertov, isso que tu comentou, das pessoas não conseguirem manter uma iniciativa sem brigar, estarem correndo atrás de dinheiro conecta direto com o que tá rolando aqui.

Faz mais ou menos um mês que tá acontecendo algo muito legal aqui na cidade. Começamos nos encontrando com uma ideia meio vaga de fazer uma conversa sobre Comunicação Não Violenta e anarquia. E o que rolou foi uma conversa de horas onde as pessoas expuseram suas ansiedades e inseguranças, por quê estavam ali e foi um encontro muito lindo, onde, apesar de terem surgido alguns momentos de tensão, todas pessoas estavam muito focadas em escutar as outras. Eram 20 pessoas em roda, conversando, sem facilitador, por quatro horas e em nenhum momento ninguém falou por cima de ninguém, ninguém foi interrompida.

Várias pessoas trouxeram à tona a frustração de reuniões como essa que começam cheias de gente e entusiasmo e aos poucos vão se esvaziando até que acabam. Então alguém lançou a pergunta: “O que cada uma de nós precisa para continuar vindo a essas reuniões?”. E espontaneamente algumas pessoas começaram a responder. Abaixo alguns dos diálogos que se sucederam:

- Eu me desmotivo de participar se começassem a aparecer só uma ou duas pessoas nas reuniões – respondi.
- Quantas pessoas precisariam estar presentes para tu continuar motivado? – alguém me perguntou.
- Se aparecerem umas quatro ou cinco pessoas já me dou por satisfeito.
- Quem aqui se compromete a estar presente na próxima reunião? – alguém indagou para o grupo.

Então mãos começaram a se levantar por todo lado. Na reunião seguintes, tinha pelo menos o dobro do mínimo de pessoas que mencionei.

Outra pessoa respondeu:
- Para estar presente aqui hoje à noite, tive que deixar de trabalhar, e essa grana me faz falta. Na noite da próxima reunião, eu também teria que trabalhar, então pra estar presente eu preciso ter alguma forma de conseguir esse dinheiro.
- Quanto tu receberia pelo teu trabalho?
- R$60.
- Será que a gente consegue levantar essa grana coletivamente?

Nos encontros que se seguiram realizamos sempre uma pilha de grana, onde quem tinha recurso financeiro para compartilhar poderia colocar seu dinheiro ali e quem precisasse podia pegar à vontade. Até o momento conseguimos cobrir todas as necessidades financeiras que foram manifestadas, como no caso acima e em outros casos onde as pessoas precisavam de dinheiro pra passagem de ônibus ou outra coisa.
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O que eu tenho achado mais incrível nesses encontros é esse foco no que as pessoas precisam para estarem juntas. Ao invés de definir uma pauta específica e pré-determinada para essas reuniões, optamos por estar conectadas com o que é importante para cada uma daquelas pessoas naquele momento específico. Alguém sugeriu uma pergunta geradora: “O que é a melhor coisa que podemos fazer aqui hoje?” e a melhor coisa que temos conseguido fazer é justamente isso: estarmos juntas, nos esforçando para acolher as demandas outras pessoas, nos vulnerabilizando ao expor nossas próprias demandas e carências e tentando juntas apoiar umas às outras para que possamos continuar fazendo o que já fazemos e termos fôlego para fazer ainda mais, seja em empreitadas individuais ou coletivas.

No momento “a melhor coisa que temos para fazer” parece que é cuidar umas das outras, fortalecer nossas conexões. Ainda não chegamos na parte de fazer projetos a longo prazo ou traçar estratégias, mas acredito que tem o potencial de chegar lá.

Notas:

1 Decisão que depois foi revertida pelo STF, pelo menos até o momento da redação deste texto.
2 Mas não podemos cair na armadilha de pensar que um indivíduo ou um grupo de pessoas são nossas inimigas, quando na verdade nos opomos a estruturas de poder, a formas de pensar e ver o mundo.