Desde a metade do século 19, anarquistas afirmam que a chave para a libertação não é apoderar-se do Estado, mas aboli-lo. Mesmo assim, de Paris a São Petersburgo, de Barcelona a Beijing, geração após geração de revolucionárias teve que aprender essa lição da maneira mais difícil. Tirar e pôr governantes no poder muda muito pouco. O que importa são os instrumentos de governo – a polícia, as forças armadas, os tribunais, o sistema prisional, a burocracia. Não importa se é um rei, um ditador ou um congresso que dirige esses instrumentos, a experiência para quem é oprimido continua sendo basicamente a mesma.
Isso explica porque o resultado da revolução de 2011-2013 no Egito lembra o resultado da Revolução Russa de 1917-1921, que por sua vez lembra o resultado da Revolução Francesa de 1848-1851. Em cada um desses casos, assim que as pessoas que fizeram a revolução pararam de tentar fazer a transformação social diretamente e optaram em investir sua esperança em representantes políticas, o poder se consolidou nas mãos de uma nova autocracia. Quer os novos tiranos sejam militares, aristocratas ou trabalhadores, quer eles tenham prometido restaurar a ordem ou personificar o poder do proletariado, o resultado final foi basicamente o mesmo.
O governo em si é uma relação de classes. Não há como abolir uma sociedade de classes sem abolir a assimetria entre governante e pessoas governadas. A economia é apenas uma das muitas esferas nas quais os diferenciais de poder codificados são impostos através de construções sociais; a política é outra. A propriedade privada de capital é para a economia o que o poder estatal é para a política.
Sem uma crítica do Estado, até mesmo revolucionárias que atingirem o sucesso estão condenadas por sua vez a se tornarem opressoras, assumindo a posição das governantes que elas derrubaram.
Marx e Lenin criaram uma confusão tremenda ao prometerem que o Estado poderia ser usado para abolir a sociedade de classes, e depois de alguma forma desapareceria. Em outras palavras, “os trabalhadores” – ou seja, um partido que declara representá-los, da mesma forma que todo partido de governo faz – poderia manter a polícia, as forças armadas, os tribunais, o sistema prisional, a burocracia e todos outros instrumentos do Estado, mas que estes iriam magicamente começar a produzir igualdade ao invés de desigualdade. Isso traz a questão: o que é o Estado? Mais que tudo, é a concentração de legitimidade política em instituições específicas, e não nas pessoas que por elas são governadas. Esta é a própria definição de desigualdade, uma vez que privilegia as pessoas que, através dessas instituições, detém o poder sobre as demais. Quando marxistas e leninistas tomaram o poder em dúzias de revoluções, nenhuma delas teve sucesso em abolir a sociedade de classes – e ao invés de desaparecer, como resultado, o Estado se tornou mais poderoso e invasivo. Como foi afirmado na Circular de Sonvelier: “Como podemos esperar que uma sociedade livre e igualitária emerja de uma organização autoritária?”
Quando pessoas revolucionárias tentam desfazer as desigualdades de classe criadas pela propriedade privada de capital dando o total controle do capital ao Estado, isso simplesmente transforma a classe que detém o poder político na nova classe capitalista. O nome disso é capitalismo de Estado. Sempre que você vê representação política e administração burocrática, você encontrará uma sociedade de classes. A única solução real para a desigualdade econômica e política é em primeiro lugar abolir os mecanismos que criam diferenciais de poder – não usando as estruturas do Estado, mas organizando redes sociais para a autodeterminação e defesa coletiva que fazem com que seja impossível a imposição dos privilégios de qualquer elite econômica ou política. Isso é o oposto de tomar o poder.
Governos de todos os tipos se opõem a este projeto. A primeira condição para qualquer governo deter o poder é de que ele deve conseguir um monopólio da força coercitiva. Na luta para alcançar esse monopólio, despotismos fascistas, ditaduras comunistas e democracias liberais se tornam parecidas. E para alcançá-lo até mesmo os partidos mais radicais acabam se unindo a outras forças de poder. Isso explica porque os bolcheviques empregaram oficiais czaristas e métodos de contrainsurgência; explica porque eles repetidamente tomavam o lado dos pequenos burgueses contra anarquistas, primeiro na Rússia e mais tarde na Espanha e em todo lugar. A história nos conta a velha mentira de que a repressão bolchevique foi necessária para abolir o capitalismo. O problema com o bolchevismo não foi que ele usou força brutal para empurrar um projeto revolucionário, mas que ele usou força brutal para esmagá-lo.
Não é uma posição muito popular reconhecer isso hoje em dia, quando a bandeira da União Soviética se tornou uma tela fraca, que se distancia, na qual as pessoas podem projetar aquilo que quiserem. Uma geração que cresceu após a queda da União Soviética renovou a ilusão de que o Estado pode solucionar todos nossos problemas se as pessoas certas estiverem no poder. Aquelas pessoas que defendem Lenin e Stalin dão exatamente as mesmas desculpas que ouvimos de proponentes do capitalismo que apontam que as formas nas quais consumidores foram beneficiados durante seu governo ou argumentam que as milhões de pessoas que foram exploradas, aprisionadas ou mortas, fizeram por merecer.
De qualquer forma, uma volta ao socialismo de Estado do século 20 é impossível. Como conta a velha piada do Bloco Oriental, o socialismo é a transição dolorosa entre o capitalismo e o capitalismo. Deste ponto de vista podemos ver que a ascensão temporária do socialismo no século 20 não foi a culminação da história mundial como predita por Marx, mas uma fase na disseminação e desenvolvimento do capitalismo. O “socialismo real existente” serviu para industrializar economias pós-feudais para o mercado mundial; ele estabilizou forças de trabalho inquietas através desta transição da mesma forma que o acordo fordista fez no ocidente. O socialismo de Estado e o fordismo são ambos expressões de uma trégua temporária entre o trabalho e o capital que a globalização tornou impossível.
Hoje o capitalismo de livre mercado irrestrito está prestes a engolir as últimas ilhas de estabilidade social-democrata , incluindo mesmo a Suécia e a França. Sempre que partidos de esquerda ascenderam ao poder sob a promessa de reformar o capitalismo, no fim das contas foram obrigados a implementar um projeto neoliberal que inclui medidas de austeridade e repressão. Consequentemente, sua ascensão ao poder drenou a força dos movimentos de base ao mesmo tempo em que permitiu que pessoas reacionárias de direita posassem de rebeldes para lucrar com as inquietações populares. Esta história aconteceu no Brasil com o Partido dos Trabalhadores (PT), na Grécia com o Syriza, na Nicarágua com a administração Ortega.
O único outro modelo de governo “revolucionário” é o descarado capitalismo de Estado representado pela China, cujas elites acumulam riquezas às custas das trabalhadoras sem a menor vergonha, da mesma forma que o fazem nos Estados Unidos. Como a URSS antes dela, a China confirma que a administração estatal da economia não é um passo rumo ao igualitarismo.
O futuro pode trazer o empobrecimento neoliberal, enclaves nacionalistas, economias de comando totalitário, ou a abolição da propriedade privada anarquista – provavelmente incluirá todos esses – mas será cada vez mais difícil preservar a ilusão de que algum governo poderá solucionar os problemas do capitalismo pra qualquer pessoa além de algumas privilegiadas. Fascistas e outros nacionalistas estão ansiosos para capitalizar com essa desilusão e assim promover suas próprias versões de socialismo excludente; não devemos facilitar o seu caminho legitimando a ideia de que o Estado pode servir às pessoas trabalhadoras se fosse propriamente administrado.
Algumas pessoas argumentam que devemos suspender os conflitos com proponentes do comunismo autoritário para focar em ameaças mais imediatas, como o fascismo. Mas o medo disseminado de um totalitarismo de esquerda deu a recrutadores fascistas os seus principais argumentos. Na disputa pelos corações e mentes de quem ainda não escolheu um lado, distinguir as nossas propostas de mudança social daquelas defendidas por stalinistas e outros grupos autoritários só tem a nos ajudar.
Dentro das lutas populares contra o capitalismo, a violência estatal e o fascismo, devemos dar peso igual às disputas entre diferentes visões do futuro. Não o fazer significa assumir com antecedência que seremos derrotadas antes de que qualquer uma dessas visões gere frutos. Anarquistas, mensheviques, revolucionárias socialistas e outras pessoas aprenderam da maneira mais difícil depois de 1917 que falhar em se preparar para a vitória pode ser ainda mais desastroso do que falhar em se preparar para a derrota.
A boa notícia é que os movimentos revolucionários não precisam acabar como a Revolução Russa. Existe outro caminho.
Ao invés de buscar o poder estatal, podemos abrir espaços de autonomia, despindo o Estado de legitimidade e desenvolvendo a capacidade de suprir as nossas necessidades diretamente. Ao invés de ditaduras e exércitos, podemos construir redes rizomáticas mundiais para defenderem umas às outras contra qualquer pessoa que queira exercer poder sobre nós. Em vez de ir atrás de novas representantes para solucionar nossos problemas, podemos criar associações de base fundamentadas na cooperação voluntária e no apoio mútuo. No lugar de economias gerenciadas pelo Estado, podemos estabelecer novos bens comuns em princípios horizontais. Esta é a alternativa anarquista, que poderia ter sido exitosa na Espanha nos anos 1930 se não tivesse sido esmagada por Franco de um lado e Stalin do outro. De Chiapas e Kabylia a Atenas e Rojava, todos inspiradores movimentos e insurgências das últimas três décadas incorporaram elementos do modelo anarquista.
Proponentes da solução estatal alegam que são mais eficientes, mas a questão é: são mais eficientes em que? Não existem atalhos para a libertação; ela não pode ser imposta de cima pra baixo. Se almejamos criar igualdade genuína, temos que nos organizar de uma forma que reflita isso, descentralizando o poder e rejeitando todas formas de hierarquia. Construindo projetos locais capazes de atender às necessidades imediatas através da ação direta e da solidariedade, interconectando-as em escala global, poderemos dar passos rumo a um mundo onde ninguém possa governar nenhuma outra pessoa. O tipo de revolução que queremos não pode acontecer da noite pro dia; é o processo contínuo de destruir todas concentrações de poder, da esfera doméstica até a sede do governo.
À medida que as crises de nossa era se intensificam, novas lutas revolucionárias estão prestes a surgir. O anarquismo é a única proposta de mudança revolucionária que não se encharcou em um mar de sangue. Cabe a nós a atualizarmos para o novo milênio, ou estaremos condenadas a repetir o passado.