Muitas vezes somos levadas a desconsiderar nossa privacidade, seduzidas por aplicativos e serviços que prometem nos conectar a nossas famílias, amigas e até mesmo nos ajudar a conseguir um trabalho. A impressão é que nos conectamos diretamente com quem queremos conversar ou compartilhar aquele meme. Mas será que nosso comportamento seria o mesmo se fosse evidente com quem estamos compartilhando todos esses pequenos detalhes? Será que queremos compartilhar com nosso chefe que estamos matando o trabalho? Com a seguradora que deixamos o carro estacionado na rua? Todos esses pequenos detalhes podem parecer insignificantes, afinal são apenas memes e conversas sem muita importância. Mas permitir que todas nossas comunicações sejam vigiadas e monitoradas pode ser muito danoso, especialmente em contextos de perseguição política e regimes mais autoritários.
Não há nada de errado em escolher quais informações desejamos compartilhar e com quem queremos compartilhá-las. Na verdade, já fazemos isso diariamente. A maioria de nós não conversa com sua mãe e seu pai sobre sua vida sexual, não dá sua senha do banco só porque alguém pede, não faz cocô com a porta aberta. Se escolhemos diariamente quais informações queremos que as pessoas vejam ou não nas relações pessoais com nossa família, nossas amizades, quais outras escolhas não faríamos se tivéssemos consciência de todas as formas como nossos dados são usados pelas empresas que nos prestam serviços? Compartilharíamos voluntariamente nossos hábitos pouco saudáveis com nosso plano de saúde? Permitiríamos que milhares de pessoas desconhecidas conheçam nossos itinerários e horários? Por que então que quando se fala em segurança digital uma das respostas mais comuns é “não tenho nada a esconder? Não pode ser por presumirmos que quem vai ler essas informações é “apenas” o governo e as corporações, como se confiássemos cegamente que essas instituições agirão de forma íntegra e impedirão que esses dados caiam na mão de pessoas mal intencionadas¹. Será que é por que a possibilidade de que essas informações sejam usadas contra nós sempre nos pareceu tão remota, afinal vivemos em um regime democrático, no Estado de Direito? Ainda nos sentimos assim agora que Bolsonaro foi eleito presidente?
Abrir mão da privacidade por acreditar que não temos nada a esconder é como abrir mão da liberdade de expressão por pensar que não temos nada a dizer.
Bolsonaro e sua camanga querem endurecer a Lei Antiterrorismo, criada no governo de Dilma Rousseff. Com as modificações, propostas pelo decrépito senador gaúcho Lasier Martins², ações do MST e do MTST ou até mesmo um simples protesto contra a corrupção da classe política poderão ser considerados atos terroristas3. O projeto pretende punir até mesmo quem “louvar pessoa, grupo, organização ou associação pela prática de crime de terrorismo”, ou seja, dependendo da interpretação da lei que fizer o juiz, curtir nas redes sociais uma publicação de uma dessas “organizações terroristas” ou até mesmo comprar arroz orgânico, se o produtor for filiado ao MST, pode ser o suficiente para criminalizar alguém.
Se o sistema judiciário já fez perseguição política durante o próprio governo Dilma, quando Rafael Braga foi condenado por portar uma garrafa de detergente e também quando iniciaram-se os processos contra o grupo dos 23 do Rio de Janeiro, que foram condenados em 2018, por supostas ações durante as manifestações de 2013 e 2014… Se já em 2017, a polícia alegou que garrafas PET cheias de sacos plásticos eram coquetéis molotov com o intuito de criminalizar anarquistas… O que esperar agora que o resultado das urnas endossou um maluco que defende a tortura e assassinatos extrajudiciais, que invoca a perseguição política? Como você acha que a “Justiça” irá se portar? Será que realmente é preciso cometer um ato ilícito, fazer algo “importante” para ser vítima dos terroristas de toga?
Lutar por privacidade hoje é proteger a nossa capacidade de agir e de resistir amanhã.
Pode ser que, ainda assim, não pareça que nossa vida online seja digna de nota, que vá atrair a atenção das autoridades. Mas afirmar que nunca faremos algo do tipo seria admitir que temos sangue de barata, que podem fazer o que quiserem conosco, e mesmo assim, nunca levantaremos nossa voz, nunca ofereceremos qualquer tipo de resistência. Assistirmos impassíveis às corporações e ao Estado assumirem controle e realizarem uma vigilância total sobre nossas comunicações é sabotar quaisquer futuras possibilidades de ação e autodefesa. Pois todas informações coletadas sobre nós neste momento poderão ser usadas no futuro para minar ou mesmo impedir ações que nem cogitamos hoje. Ou até mesmo, se não defendermos de forma ferrenha a nossa privacidade, ferramentas como a criptografia poderão ser completamente criminalizadas, como aconteceu na Austrália. Então o simples fato de escolher não compartilhar alguma informação com o Estado será motivo para sermos criminalizadas.
«Se alguém me der seis linhas escritas pela mão do mais honesto dos homens, encontrarei nelas algo que o mande para a forca.» — Cardeal Richelieu em 1641.
Com o que já têm sobre mim, não faz diferença o que faço daqui pra frente"
Se por um lado algumas pessoas dizem que não têm nada a esconder, outras, mais pessimistas, dizem que agora seria muito tarde para implementar medidas de proteção à privacidade, pois com as informações que já estão disponíveis na rede, elas já estariam comprometidas. Parece improvável que o novo governo irá perseguir todas as pessoas que já disseram ou fizeram no passado algo que as defina como opositoras ao regime (a menos que seja algo realmente muito importante) e o valor da informação se deteriora com passar do tempo. Mas as informações que ele coleta hoje podem comprometer suas ações no presente e no futuro, sua liberdade e a também liberdade de outras pessoas com as quais você se comunica. Sua negligência compromete as pessoas da mesma forma que a negligência delas vai te comprometer.
Se você decidir ficar no Facebook dentro desse novo cenário, por exemplo, tenha em vista que você pode estar expondo todos os seus contatos, relações, articulações e, mesmo que não vá fazer nada para chamar a atenção do Estado, você pode acabar expondo aquelas pessoas que fariam algo. Por outro lado, se escolher apagar sua conta, o Estado não terá acesso a esses dados tão facilmente. Sim, é possível que o Facebook guarde esses dados e não os delete, como afirma que faz, mas será mais difícil para o Estado e para grupos fascistas acessá-los*.
Toda ideia que pressupõe que já perdemos, que não há nada que possamos fazer para nos proteger, é um presente para o Estado, para as corporações e para todo sistema de opressão.
E pense além de você, pense nas pessoas que estão começando a se envolver em política agora. É importante que haja uma cultura de segurança em circulação, para permitir que as pessoas consigam agir com um mínimo de tranquilidade.
Mais poder ao Estado e às corporações
Ademais, informação é poder. Ela vale ouro para as pessoas que estão ou almejam estar no poder. Por muitos anos, o sistema era controlado por quem conseguia melhor utilizar os meios de comunicação tradicionais, rádio, TV, jornais e revistas impressos, seja através de influência política ou financeira. Hoje, como mostraram as campanhas de Trump, do Brexit e do Bolsonaro, isso já está obsoleto. Quem chega ao poder ainda é quem tem mais poder econômico, mas que o utiliza para comprar, coletar e utilizar as informações pessoais de milhões de pessoas.
Quem controla os dados controla a narrativa. A campanha presidencial brasileira de 2018 foi um exemplo gritante disso. Quando quem controla as tecnologias pode controlar o que você vê, os fatos não importam. Quando permitimos que o Estado e as corporações coletem todos nossos dados indiscriminadamente, estamos lhes dando de bandeja mais poder para nos controlar e manipular. É impossível controlar aquilo que se desconhece. Portanto, cada pedaço de informação que conseguirmos manter longe dos olhos e ouvidos dos sistemas de vigilância, é mais um pouquinho de poder que retemos em nossas próprias mãos.
Mudança social e transformação só vêm quando se quebram as leis
Você quer, como nós, ver um mundo com mais liberdade? Justiça? Igualdade? Então se, além de desejar, vamos fazer algo concreto a respeito, provavelmente teremos que quebrar algumas leis, cometer alguns atos considerados crimes. O Estado permite que seus cidadãos e cidadãs lutem por mudanças sociais apenas de algumas formas muito limitadas, como através de petições e manifestações pacíficas. Mas mesmo as poucas formas permitidas por lei estão ficando cada vez mais restritivas. Estão surgindo cada vez mais leis que limitam e criminalizam os protestos de rua, como a lei antiterrorismo, que já falamos, e outras que impõem multas e penalidades para pedestres e veículos que bloquearem vias de trânsito sem autorização prévia. Mesmo que em nossa busca por uma sociedade mais justa e igualitária, a gente decida utilizar apenas os meios permitidos pela lei hoje, não há garantia alguma que amanhã essas formas de protesto não serão também proibidas. E aí, o que faremos?
Obstruir vias sem autorização, bloquear o acesso a prédios governamentais e corporativos, quebrar vidraças de bancos, sabotar as engrenagens que oprimem as pessoas e destroem o ambiente natural são formas legítimas, mas geralmente ilegais, de lutar pelo que acreditamos. Esta revista que está em suas mãos, por exemplo, é ilegal. Pois quando a criamos optamos por não seguir os trâmites exigidos por lei, o que daria mais poder para o Estado nos controlar, seja através da burocracia ou da repressão. Em vez disso decidimos criar manieras de dificultar o controle estatal, de forma que se quiserem nos controlar, teriam que gastar preciosos recursos para isso. Em vez de permitir que o Estado regule e controle nossa atividade, estamos simplesmente o ignorando, tirando dele o poder sobre nossas ações.
Leis são um péssimo parâmetro para usarmos como guia do que é certo e o que é errado. Algumas delas podem inclusive nos colocar em risco sem oferecer nenhum benefício, como ficar parado em seu carro à noite no sinal vermelho em uma rua deserta. Recusar-se a obedecer as leis pode ser uma forma eficiente e prática de deslegitimar o Estado, e que por outro lado empodera muito o indivíduo que se vê livre de restrições e impeditivos. Mas se o Estado sabe tudo que você está fazendo, por onde você anda, com quem você fala, então você se torna um alvo fácil e correrá o risco de perder a sua liberdade.
Retomando o controle
A esta altura, deve ter ficado bem claro para todo mundo que a situação política de um país pode mudar muito rápido. E todas leis, recursos, ferramentas e informações acumuladas por um governo, servirão também ao seu sucessor. E todos os direitos que o Estado promete respeitar e proteger, ele pode também tomar. Mesmo que você ainda acredite no chamado “Estado de Direito”, é sempre bom ter em mente que o amanhã é uma incógnita e todas as suas certezas podem ruir. Então em vez de confiar nossos direitos nas mãos do Estado, não faz mais sentido mantermos nossa liberdade em nossas próprias mãos?
Muitas pessoas ficaram apavoradas com a vitória de Jair Bolsonaro. Se deixarmos, esse medo pode nos paralisar. Precisamos adotar medidas que aumentem nossa sensação de segurança, para que sejamos capazes de continuar agindo apesar de uma conjuntura mais sombria.
Existem diversas ferramentas por aí, que são feitas por pessoas que, como nós, valorizam a liberdade de escolhermos quem pode ter acesso aos nossos dados e quem não, de forma colaborativa, sem visar lucro. Elas nem sempre são tão atrativas e fáceis de usar quanto os aplicativos e serviços comerciais, que são projetados para nos seduzir, com vastos recursos financeiros. Precisamos fazer uma escolha: ou escolhemos a comodidade, a facilidade, o apelo estético e pagamos por isso com nossos dados (e consequentemente com nossa liberdade) ou escolhemos priorizar a nossa privacidade, a nossa segurança, a nossa liberdade e alcançamos isso através de um pouco de movimento. Se queremos a segunda opção, precisaremos nos esforçar, principalmente no início, para aprender a usar essas ferramentas de forma segura e convencer nossos contatos a migrar para esses serviços. Também é importante fortalecermos o desenvolvimento dessas ferramentas, seja apoiando esses projetos financeiramente, com trabalho voluntário de tradução, programação, sugestões e críticas, seja utilizando-os e ajudando na sua difusão e ampliação de suas redes.
Abaixo listamos alguns links com informações sobre como proteger a sua privacidade no meio digital:
- autodefesa.org – oferece dicas básicas e rápidas de segurança digital. Além disso, para aprofundar no tema, compila os melhores guias em português sobre o assunto.
- prism-break.org – oferece uma lista exaustiva de aplicativos e serviços que podem servir como alternativa aos serviços proprietários e corporativos que já utilizamos.
- ssd.eff.org/pt-br – Autodefesa contra Vigilância: Dicas, ferramentas e tutoriais para uma maior segurança nas comunicações online.
- Se nem mesmo gigantes da tecnologia como Google conseguem impedir o vazamento de dados de milhões de usuárias, o que dizer de todos os aplicativos que instalamos em nossos celulares e que pedem acesso aos nossos contatos, à nossa localização, às nossas mensagens?
- https://www.documentcloud.org/documents/5029672.html#document/p1
- Na nova lei antiterrorismo, seus likes podem levar você pra cadeia. The Intercept.
- Se isso ainda não for argumento suficiente para você, tire um tempo para realizar o Data Detox proposto pelo coletivo Tactical Tech: datadetox.myshadow.org/detox