Uma prática para a coesão

Anarquistas em geral costumam falar de uma base de princípios – apoio mútuo, autonomia, solidariedade, etc. – que é essa cola mínima que liga as diferentes tendências sob um mesmo nome. Independente das estratégias de ação, seja propaganda, trabalho de base, criação e divulgação de materiais de estudo, uma comuna no mato ou na cidade, insurreição e destruição de propriedade privada, os princípios anarquistas são ao mesmo tempo o ponto de partida e o objetivo dessa cultura política. Entretanto, durante minha vivência em coletivos e também a partir dos relatos que recebi de amizades, percebi que esses princípios, ou valores, têm bastante dificuldade de ganhar expressão prática na mão das pessoas.

Quando estamos organizando coletividades, a forma como interagimos entre nós é crucial para que tenhamos boas chances de alcançar nossos objetivos. É aqui que entra a comunicação como prática fundamental. Várias dessas peças que faziam muito sentido para mim (princípios anarquistas), mas que estavam soltas, muitas vezes como conceitos abstratos (sofriam para ganhar expressão prática), começaram a se encaixar quando passei a praticar formas de comunicação mais atentas. As palavras estão na superfície de processos mais profundos e elas moldam nossas visões de mundo e formas de nos organizarmos. Logo, a expressão condiciona o conteúdo e vice-versa: com uma comunicação baseada em valores, esses valores acabam virando ações evidentes! Não que apenas se comunicar diferente vá resolver todas as mazelas contra as quais anarquistas costumam lutar. Pelo contrário, isso não resolve e, em si mesmo, não pretende resolver nada. As ações de que falo são na verdade uma atenção incessante que, a partir daí, costumam se desdobrar em melhores soluções para os nossos diversos problemas, acima de tudo, o de coesão de grupo.

De onde vem a distância


A primeira percepção que tive ao praticar esse tipo de comunicação talvez não seja tão óbvia por ser quase invisível. Notei que a forma como eu usava as palavras para conseguir o que queria não era nem um pouco eficiente caso tentasse seguir os princípios anarquistas. O uso da linguagem que aprendi é escancaradamente autoritário, chantagista, ao mesmo tempo vitimista e abusivo. Com ele, instauramos verdades morais a partir das quais a única coisa que conseguimos fazer é condenar as pessoas. Acima de tudo, quando falamos somos propositadamente confusos para nos eximir de responsabilidades. “Pois é, fui obrigada…”, “é assim que as coisas funcionam”, “ele é tão querido, mas não tive escolha: precisou aprender na marra”. Isso é usado por todo mundo, não importa sexo, idade, classe, cor da pele, etc, tá aí na rua, em casa, na creche, na mesa do bar, na intimidade do abraço, na organização de atividades libertárias. É tão normal que não nos damos conta do distanciamento contínuo que provocamos entre nós. E além disso, por não conhecer outro caminho, a gente sofre e agride as pessoas queridas num desespero vertiginoso.

Então, percebi também que esse linguajear , esse jeito de falar, não só caminhava para o lado oposto do meu ideal como anarquista, como parecia que “funcionava” bem em situações em que a balança das relações de poder pendia para o meu lado (ou para o lado de quem tiver mais poder no momento). Primeiro, eu não tinha a segurança suficiente para sustentar minha intenção e aí, geralmente por medo, eu fazia uma volta para longe do assunto. Depois, frustrado com esse desvio, a fala ganhava um aspecto agressivo (passivo ou ativo) e por eu ter mais poder, saía mais ileso da interação. Exemplos seriam: sinceridade virava grosseria, silêncio encobertava mentira, interesse visava adulação, etc. São todas estratégias retóricas e de linguagem corporal que a gente pratica sem pensar para tentar ganhar a conversa ou a situação. Da mesma forma, nosso ouvido está totalmente ofuscado classificando tudo que capta como ameaça. Obviamente, como todo mundo, eu fazia essas coisas, mas agora passei a notá-las com mais clareza. Estar mais atento não significa ser gentil e dócil, mas saber olhar para minhas ações (falar, agir, interpretar, me relacionar, ignorar, festejar, repudiar, etc.) como minhas.

A disputa onde todo mundo perde


No fundo, o “funcionar” normal dentro de uma conversa é na verdade sinônimo de disputa. “Eu é que tenho razão”, “você é uma manipuladora”, “eu tive que empurrar ela pra fora da okupa”. Quando essa queda de braço se instaura, a polarização é inevitável: “quem não está comigo é meu inimigo!”.

“Mas o que eu coloco no lugar da disputa, então?” Vamos dar um passo atrás por um momento. Podemos começar pelo que parece mais fácil: que tal estar presente e não disputar a razão com as pessoas que gostamos (e que eventualmente iremos tretar)? Faça a experiência, sobretudo nos momentos onde se tem mais certeza de que o outro está “errado”.

Ter consciência de que o linguajear que eu conhecia me colocava sempre em disputa foi chave para mim. Comecei a olhar para essa postura, investigá-la sempre que aparecia. Dado seu incessante reaparecimento, qualquer pessoa terá muitas oportunidades para estudá-la e transformá-la. Mas para isso é preciso tomar uma certa distância, não entrar no jogo de “quem tem a razão”.

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Como sempre, a prática


É a partir do treinamento da nossa atenção que conseguimos sair daquele desespero que falei acima. Obviamente isso leva muito tempo, como qualquer prática (pensa, por exemplo, numa língua estrangeira ou numa arte marcial). E acho que essa é uma razão para as pessoas que buscam anarquizar o mundo estarem carregadas de ansiedade: querem as coisas para ontem e fazem isso através de um improviso sem base na experiência. É muito triste que não tenhamos uma troca geracional que mantenha o fluxo de transformação radical na qual dedicamos tanta energia. Na verdade, pelo contrário, o que se mantém (e também é muito fácil notar nos nossos grupos) é a falta de cuidado com nossos próprios objetivos, desejos e responsabilidades, tanto coletivos quanto individuais. Temos muito mais vontade (e prática) em defendermos ideais abstratos do que as relações concretas que podem nos fazer avançar.

Essa prática de atenção pode muitas vezes parecer um processo puramente individual. Porém, ela pode ser parte de uma tomada de consciência e seus efeitos sempre extrapolam a pessoa. Por um lado, uma análise sistêmica de processos históricos e estruturas sociais aguçam a percepção de si, das opressões que se sofre e/ou seus privilégios. Um exemplo disso poderia ser os grupos intimistas feministas onde, ao contar suas experiências pessoais, as mulheres descobriam que o que acontecia com cada uma individualmente era algo que passava com todas; essa partilha tornava evidente uma opressão sistêmica. Por outro, uma atenção voltada para a prática pessoal nos abre caminhos diferentes das usuais relações de poder codificadas na sociedade. É a velha história: os níveis micro e macro estão profundamente interligados.

O prazer de estar certo e a percepção das necessidades


Uma fonte que tem me inspirado muito nessa vertente de ação são as esquematizações feitas por Marshall Rosenberg, sujeito que desenvolveu aquilo que costuma ser chamado de comunicação não-violenta. É curioso notar que ela nasceu no período em que o anarquismo ainda era uma semente adormecida no adubo dos movimentos de direitos civis, feminista e pacifista. Num de seus áudios, ele comenta que foram duas perguntas que guiaram sua pesquisa. Gosto delas pois dão-me uma ideia do ponto de partida para o qual, quando em dúvida, sempre posso voltar. Elas são mais ou menos assim: 1) por que as pessoas desfrutam ao fazer os outros sofrer? e 2) por que e como algumas pessoas, mesmo nas situações mais difíceis e improváveis, continuam compassivas e abertas para as outras?

A resposta que ele encontrou para a primeira pergunta é surpreendentemente anarquista: gostamos de ver os outros sofrer porque nos últimos dez mil anos temos sido criados numa cultura que ensina, acima de tudo, obediência à autoridade. Autoridades são pessoas que detêm e concentram poder numa sociedade (ou grupo) e elas são a referência do que é certo e do que é errado (qualquer pesquisa histórica mostra que esses critérios são quase sempre arbitrários, inventados da cabeça de quem tá mandando no momento). Essa cultura caminhou por diversos povos e eras e hoje recebe o nome de justiça retributiva: se você age certo, ganha presente; se age errado, leva pau (lembra daquela reunião do coletivo mais importante da sua vida ou daquele dia com a pessoa que você ama? Pois é…). Logo, se vejo uma pessoa fazer algo que considero errado, terei muito prazer em corrigi-la ou em “mostrar o jeito certo”. Mais que isso, é meu dever tornar melhor esse fulano ignorante, anormal, infantil, esquisito, maricas ou machona, branquelo ou preto, que tem pelo demais ou pelo de menos, que fala “ellado”, senta errado, ama errado, e sabe de uma coisa, joga logo no lixo e despacha pra gente não ver como ele vai morrer.

O prazer de corrigir o outro vibra em todas as frequências na sociedade e obviamente está dentro do meio anarquista.

Entretanto, a galera libertária tem uma intuição profunda, quase mística, de que a cooperação pode mover montanhas. Na sua obra Apoio Mútuo, Kropotkin afirma e tenta provar cientificamente que a cooperação também é chave na seleção natural e não apenas a competição: os seres que melhor se ajudarem, sobreviverão. Juntar-se por solidariedade é não apenas a necessidade dos fracos (que ganham força com o número), mas é sempre necessário onde não existe concentração de poder ou ele não está concentrado o suficiente para agir sozinho. Concentração de poder, hierarquia e autoridade são algumas das regras desse jogo que a gente sempre vai perder. E esse ponto é fundamental para anarquistas: sempre que qualquer poder se concentra e se cristaliza (numa instituição ou num cargo duradouro, por exemplo), surge a possibilidade tantas vezes comprovada de abuso. Quando a isso se soma o poder estrutural que paira no ar, comumente chamado de privilégio, então o resultado é paradoxalmente obsceno de tão esperado.

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Logo, se buscamos que o poder se difunda, oferecer, pedir e aceitar ajuda são práticas muito necessárias, pois promovem a interdependência, multiplicam capacidades e reduzem o peso e o estresse de ter que fazer tudo por conta própria (que é o resultado de querer ser forte sozinho o tempo todo). Pedir ajuda é algo que requer prática, da mesma forma que aceitá-la. Para que não vire dívida, a ajuda deve sempre ser uma oferta motivada pela alegria.

E aqui entra uma possível resposta para a segunda pergunta: algumas pessoas conseguem manter-se abertas e ligadas às outras porque estão com sua atenção voltada, a cada momento, para o que elas ou as outras pessoas necessitam de mais profundo. “Quando ouço tal coisa, o que essa pessoa no fundo está precisando?”, “quando eu reajo dessa maneira, qual necessidade me moveu ali?”. Essa é uma hipótese que fica em aberto, que precisa ser verificada a cada vez. Junto com ela vem outra, a de que as necessidades humanas são universais, todo mundo tem as mesmas. Aqui não vou entrar naquela discussão da quinta série sobre quais são “as” necessidades universais. O discernimento poderia acontecer assim: se você acha que uma necessidade é universal (por exemplo, seu desejo de companhia ou de ter um celular novo, etc), imagine se outras milhões de pessoas, em diferentes culturas e épocas, também teriam ela. Será que teriam? Quebre a cabeça nisso e mantenha essa pergunta em mãos quando estiver buscando por quais necessidades estão vivas a cada momento em si e no outro.

Aprendizagem agora, e depois e depois de amanhã…


Perguntas importantes não precisam de respostas definitivas: elas existem para nos manter em estado de busca. Elas motivam nossa atenção! Por isso, a atenção é algo de situação, instantânea, sempre presente. Não existe essa de “ontem estive atento pra caramba e agora já entendi como que funciona”. Pelo contrário, ela é uma prática constante. E a importância da atenção é que ela nos deixa vivos, transitórios, mutantes, aprendizes. Nenhuma regra, tradição, instituição, configuração social se mantém fixa e valorizada quando a atenção está desperta. Por inversão, as instituições, hierarquias, relações preestabelecidas de poder só seguem iguais e rígidas por vivermos numa cultura de obediência (logo, de passividade).

Porém, falo aqui de uma atenção plena e não de uma vertente “de esquerda” da atenção (algo que poderia se confundir com preocupação com as questões sociais). Não, a atenção aqui sempre brota da pessoa, qualquer pessoa, em qualquer situação, e não tem nada a ver com ser politicamente correto.

Estar atenta é uma habilidade, um poder cujo desenvolvimento nesse texto está seguindo o rastro da palavra. Entretanto, não estou dizendo que devemos ficar só conversando, que tudo se resolve na fala. Tretas não se resolvem, a sociedade não funciona. Tá na hora da gente largar mão dessa esperança juvenil. Porém, a comunicação é um dos meios necessários e incontornáveis para conseguirmos conviver bem e causar transformações coletivamente (violentas ou não). Nossa coesão depende dela. A atenção, por sua vez, visa tomar boas decisões, sejam elas estudar química, cultivar mandioca, defender-se, estar com crianças, realizar ações diretas, etc. Ela serve de base para agirmos agora e tem tudo a ver com anarquismo!

Texto de Chuy.