O rumor, a feminilidade, o Patriarcado.

Texto sobre o rumor dentro do feminismo e do movimento de mulheres, como processo de violência e contrário a cultura da paz que prevê as éticas de comunicação e resolução não-violenta de conflitos. Por Jan.

“A contaminação psíquica é pior que o piolho. Vai passando de uma cabeça para outra, numa rapidez incrível. E, como você sabe, todo mundo já pegou piolho”
Nise da Silveira

“O meio feminista é terrorista. Se você fala alguma coisa opressiva, mas depois percebe que falou uma coisa opressiva, não te dão chances de se desculpar, já te expôem.
O feminismo realmente não é aberto à mulheres pobres, porque se eu que sou universitária falo coisas opressivas de vez em quando (mas logo em seguida percebo que o que falei é opressivo e me desculpo), imagina a mulher pobre que mal tem o segundo grau? Vocês vão rachar essas mulheres também? Se sim, seu feminismo não cola na favela"
Ingrid Manente

“Os segredos, chantagens e rumores se temem, porque te difamam, te deixam no ostracismo… te suicidam. Sem existência prévia dos preconceitos não seria possível a chantagem nem o rumor. Os preconceitos são chantagens sociais que ‘servem’ aos poderosos e seus interesses (com nomes e sobrenomes). (…) Frente ao rumor não se possui defesa: é malígno, amébico, e especialmente, pós-moderno.”
Margarita Pisano, Segredos, Chantagens e Rumores – Os preconceitos. Retirado do fanzine Sororidade Autocrítica.

O rumor é um exemplo de contaminação psíquica no feminismo… Resultado da dificuldade que possuímos para resolver conflitos expressadamente e assertivamente, resultado da nossa socialização para o devaneio e a confabulação, o subjetivismo (e não a objetividade)… e herança dos métodos de guerras patriarcais para se conquistar algo… talvez herança das tramas de intrigas que as mulheres tinham que fazer entre si, nos Patriarcados antigos, dentro dos haréms ou nas relações poligâmicas, quando o poder que restava às mulheres derivava de um único homem. Era uma ferramenta perfeita usada pelos homens para que todas mulheres se convertessem em inimigos, ou algumas alianças entre elas se fizessem em prol de destruir a principal… muitos foram os envenenamentos de imperatrizes ou filhos destas, por exemplo no Egito, para se conseguir o lugar de esposa do Imperador, e pelas esculturas egípcias se constata que os imperadores homens eram considerados ter ainda mais divindade que as próprias deusas de suas mitologias…

As mulheres herdamos, geração após geração, as táticas de guerra entre si por meio do saboteamento de outras, conseguir algum poder dentre o pouco que possuímos. Esse ciclo se repete no feminismo, com traições consecutivas entre mulheres.

O rumor é algo fora da experiência real, algo não-pensante, e principalmente, não-objetivo. Não direto. Não se trata diretamente com a pessoa o suposto problema com ela. É algo da domesticidade da imaginação, algo dos mecanismos mentais da paranóia e perseguição. Por meio da não-comunicação, surge a suposição, e as suposições se multiplicam, sobre a outra, e a partir daí, a demonização da outra, a monstrificação, alimentada por outras… outras que são contaminada por outras e por outras. A gente viu como a mídia se utiliza do rumor, um exemplo foi o próprio processo de Impeachment de uma presidente mulher, a Dilma, este ano, um processo bem sucedido que culminou na deposição da presidente mulher, inteiramente motivada por misoginia e por um processo reacionário (backlash). Vemos a repetição dos métodos de disputa de poder que levam milênios já do Patriarcado. E pudemos observar, principalmente, a campanha de ódio virulenta que o rumor instala, um ódio cego brotado do imaginário coletivo, onde as pessoas sem saber por quê, odiavam aquela mulher, colocavam toda responsabilidade de tudo ter supostamente falhado naquela mulher, todos problemas do país eram culpa da ingerência daquela mulher (segundo a mídia, o veículo de calúnias/rumor/difamação/mentiras oficial do sistema) e as pessoas eram levadas a um ódio e desejo sanguinolentos de assassinato, tortura e fim daquela pessoa. E no feminismo também vemos campanhas de ódio surgidas contra algumas mulheres específicas, aquelas que são ‘mal-faladas’ e temidas, mesmo que você nunca tenha nem trocado idéia com aquela pessoa, militantes que geralmente possuíram algum papel ativo dentro do movimento, ou simplesmente grupos despretigiados como lésbicas e lésbicas butch. Também vemos recentemente o uso de ‘denúncias’ para validar esse tipo de processo de misoginia, processos de demonização da Outra surgidas também graças ao pós-modernismo e às políticas de identidade e seu proceder punitivo e linchador, no que se presta, na sua tendência individualista liberal, a implodir os movimentos sociais em tretas infinitas entre diversos oprimidos.

E o que ameaça tanto nesta Outra, dessa mulher de quem se ‘ouviu dizer que…’ , para tomar proporções tão grandes? E quanto às histórias que aumentam e tomam tons sórdidos e assustadores? Muitas vezes, oportuniza-se falhas na Outra para convertê-la em uma quimera, em vilãs onipotentes… como se as pessoas sempre estivessem cem porcento ou tivessem que ser perfeitas, representar o ideal feminista. Como se não falhassem, tivessem dificuldades pessoais, ou mudassem. E alguns rumores duram décadas, tratam de coisas ocorridas há anos atrás. Os feitos bons, as contribuições positivas, as características boas da pessoa, são rapidamente esquecidos, mas se ela errou, jamais se esquece ou perdoa. E o que pergunto, se a base deste tipo de rumor da exposição é supostamente, um processo de correção moral de uma pessoa, será que com isso, as promotoras do rumor não estão justamente omitindo suas próprias falhas morais? É uma característica humana a contradição e tensão inerente do existir e do constituir-se em pessoa, que é devir constante, processo vital de autoconstrução ética e moral que só é interrompido com a morte. Mas o movimento parece ser constituído de perfeitas e semi-deusas que jamais falham, ou suas falhas não estão tão em evidência por comodamente não-existirem politicamente, omitirem-se quando necessário, não falarem alto seu pensamento nem serem tão ativas e públicas como ativistas que são detonadas.

Porém, não é qualquer uma que está apta a entrar neste lugar. Todas podem errar e ser perdoadas, se for o caso de terem feito algo complicado ou terem conflitos. O conflito é oportunizado como método de desqualificação e ‘alerta’ sobre aquela mulher. Do que quer se ‘proteger’ o movimento com a exclusão, de quê ‘ameaça’ que representam? Proteger quê ilusão de que o movimento é seguro com todas as restantes, as mulheres não-ameaçadoras e aplaudivel e suficientemente ‘femininas’, bem comportadas, que restam?

O rumor, o que ensina às mulheres alvo dessa crueldade, deste processo de violência psicológica, é que somente é alvo dele a mulher não-existente, e para sermos poupadas dele, temos que ser não-existentes. O guilt-trip, o processo de culpa no qual entra mentalmente a mulher caluniada, consiste num massacre psíquico que depois é internalizado, culpabilizado pela própria que pensa que está passando isso por ser realmente má. Por ser muitas vezes violência de grupo, a vítima é deslegitimada, ela é considerada sem voz, sem razão, e sem defesa, pois é ‘um grupo contra uma pessoa’. As violências de grupo as conhecemos desde nossos períodos escolares, esse tipo de processo de grupo que toda psicologia de grupos nos ensina: o da criação do bode expiatório, o bullying, a pessoa que representa o Mal e o problema. Então o que resta é a vítima achando que ela fez algo de errado, pois ela está sozinha. É a banalidade do Mal que fala Hannah Arendt, pois o rumor exige, demanda, obriga, a cumplicidade de todas, ou a punição. E ele tem vigência porque todas se omitem para não ficarem também mal-faladas, e na sua cômoda omissão e passividade acabam por tornar-se também torturadoras.

O que essa mulher fez de errado? Existir. Ter uma existência expressada, não-silenciosa, e não-doméstica. Mulheres não podem existir, devem ser e permanecer invisíveis. A existência política, ética, humana, radical, para as mulheres, a existência lésbica, é um crime. O rumor, como punição, como castigo contra uma mente subversiva, uma língua afiada, uma rebelde, ensina a ela por meio da tortura, que somente que não é alvo dele é quem é não-existente, quem não vocifera sua presença em voz alta, quem não é questionadora, e quem também não existe emocionalmente, porque temos que estar o tempo todo perfeitas, solícitas, sorridentes. Se temos raiva, se saímos do eixo, principalmente por conta desses processos de tortura e crueldades grupais ou pelas sobrecargas do ativismo ou demais vivências, se a gente começa a responder agressivamente ou demonstrar esse estresse e desequilíbrio psíquico e emocional, a vítima é considerada agressiva, violenta, grosseira, não-simpática e não-carismática, encontra-se provas de seu malefício, e assim, justificado seu linchamento, seu julgamento e execução simbólica, política. A pena de morte simbolicamente existe no feminismo, e ela veio eliminando muitas pessoas ativas, pensantes e potentes.

O rumor é uma ameaça a toda mulher: seja inexistente, retorne à domesticidade. E não são poucas dentro do ambiente feminista que possuem uma existência silenciosa de modo a ‘se cuidar’, se preservar e não passar por isso. A maior parte das mulheres dentro do movimento até falam que não vão questionar ou falar nada de modo a não serem punidas por isso, ou por medo e por acharem que estão erradas ao discordar de algo. É a obediência ou a omissão de si, e logo, uma certa cumplicidade forçosa.

Para algumas, é difícil controlar uma língua que quer dizer verdades, e é difícil que isso não gere inimigos. Vim vendo reflexões bem úteis neste sentido em alguns filósofos como Nietschze, Espinosa ou o individualista Han Ryner, mas creio que outros falaram sobre o tema.

A domesticidade, ensina o rumor, é o único lugar seguro que nos resta, às mulheres. E as mulheres já sabem disso, por isso não arriscam sair de casa, por isso não se envolvem politicamente, por isso não se manifestam… por medo. O medo, que é uma experiência fundamental da condição feminina num Patriarcado.

A violência, no feminino, se mostra atroz, mesmo este sendo um agrupamento oprimido. Se os homens resolvem seus conflitos cara a cara ou mesmo ‘no braço’, o conflito não-expressado nas mulheres traz uma raiva de caráter venenoso e não-potente, não-criativo, uma raiva mórbida, sórdida e eterna, doentia, uma mágoa sem cura, que envenena a si e depois envenena às outras. E a raiva das mulheres não possui tais canais de manifestação. A violência se faz de forma anônima, pelas costas, na ausência da outra (‘o ausente nunca tem razão’ dizia meu pai, quando eu era criança e ele tentava me impedir dos primeiros comportamentos de fofoca). A violência no feminino prefere não a violência física, mas a violência que não pode ser nomeada como tal, confusa, a violência de vítima, como a ‘denúncia’ irresponsável, ou a violência passiva, psicológica, o gaslight indutor de culpa ou o massacre moral, o vexame, a humilhação, a exclusão aberta ou velada, o ‘mindfuck’ psíquico, a destruição da pessoa, o trashing, os ataques e vitimismos/reversões. Ao mesmo tempo, a violência é um tabu no feminismo, se uma mulher se altera, ela é logo caluniada e alertada como violenta. O ultraje, a raiva, precisa ser engolida em seco, sempre, pois falar de forma indignada ou alterar o tom pode ser lido como violento e mulheres violentas e raivosas devem ser punidas.1

Celia Amorós diz que quando uma mulher sai do papel de ser ‘idêntica’, igual a todas as outras, e rompe os desígnios da feminilidade, sobressaindo, isso gera invejas, misoginia e medos nas demais. 2 Se transforma em uma ameaça para o grupo. Diz Andrea Franulic em seu texto “Daqui não sai: reflexões sobre o rumor”, que às mulheres “não se perdoa tão facilmente a capacidade de pensar, tampouco se perdoa falar e escrever com inteligência”. São premiadas se são obedientes, passivas e quietas. Essas mulheres o feminismo gosta, maternais, ‘queridinhas’ de todo mundo, que não possuem conflitos com ninguém porque também, nunca se posicionam, nem se arriscam a tanto. Preferem ficar comodamente quietinhas para não provocar desaprovação das demais, pois é isso que a feminilidade nos treina, o Ser-para-Outros, a existência para os outros, a auto-anulação e o agradar a todos e ter aceitação de todas. E ser uma rebelde implica, necessariamente, a não ter a aprovação de todo mundo. Quem quer ser livre e não-escrava, quem quer romper com a condição de casta sexual da feminilidade e com essa performance, está disposta a pagar esse preço pela liberdade, e logo de encontrar-se num limbo de não se entender nem ser entendida pelas mulheres e a uma certa solidão existencial da rebeldia, porque essa desobediência leva justamente a não ser lá mais muito ‘mulher’ no sentido tradicional e esperado.

O feminismo leva a um impasse difícil, um desafio para nossa socialização na feminilidade, que é o do pertencimento e não-pertencimento. Para sermos rebeldes e sairmos da feminilidade, precisamos desafiar nossa necessidade de pertencer e de sermos aceita pelas demais. E o feminismo e muitos processos de militância foram desvirtuados ou descaracterizados em mais um ‘grupo no qual se quer ser aceita’. Dentro disso, vemos muitos processos de chantagem emocional e pressões para uma uniformidade de opinião, para que uma não pense por si e tome decisões corajosas e éticas baseadas no que pensa e conclui, e não o faz de modo a não destoar de um processo de grupo. Mas está na hora de, em prol de nossas éticas de liberdade e autonomia, termos personalidade o suficiente para questionar esses processos e deixar de ser mais uma ‘idêntica’ como coloca Celia Amorós, ou dizendo de outro modo: mais um clone, uma pessoa sem personalidade e opinião, mais uma ovelhinha que segue o rebanho, pois é isso que quem reproduz e participa, aceita um rumor faz: age como ser não-pensante, não-crítico e manipulável e fácil de induzir. Está na hora de fazermos valer o nome feminista e termos ousadia e coragem suficiente para ser mais do que uma “Maria vai com as outras”, como se diz no senso comum. Ou não estamos a fazer movimento nenhum e sim mais uma panelinha de menininhas certinhas, admitidas, que aprendemos a fazer nos nossos tempos escolares, onde nos foi transmitido o pior da feminilidade e heterossexualidade. Feministas, precisamos crescer.


adendo: uma poesia de Doris Lessing

“uma rebelde tem como único prêmio a vida
porque dela ninguém se apropria
nela ninguém a usurpa
porque ela é a única terra própria de cada canto onde dorme
sua rebeldia alcança sempre a cobiçar o desânimo do progresso
e se de repente uma rebelde tem a alegria
em solidão ela logrou vencer o mundo”

Doris Lessing, Prêmio a uma Rebelde


1 Ver o texto de Jo Freeman, Trashing o lado sombrio da sororidade, onde ela relata sua experiência de destruição dentro do movimento de mulheres dos 70 e 80.

2 retirado do texto de Andrea Franulic “Daqui não sai: notas sobre o rumor” andreafranulic.cl/misoginia/de-aqui-no-sale-reflexiones-sobre-el-rumor . Texto aliás, que inspirou a escritura deste artigo e a quem eu dedico este texto como forma de cumplicidade entre mulheres pensantes vítimas deste tipo de maltrato.

 

escrever é uma ferramenta útil para gerar algum processo pensante a partir dessas experiências… temos que transformar em alguma coisa positiva pro movimento/resistência de mulheres/lésbicas.

 
 

tradução do texto de Franulic, feminista chilena, sobre o rumor:
we.riseup.net/radfem/reflex%C3%B5es-sob...

 
   

É difícil que mulheres pensantes não sejam alvo de rumor. Mulheres incômodas. Difícil que alguma mulher não tenha sido alvo do rumor, e por isso mesmo que a maioria possui medo de falar o que pensa e ser crítica. Medo de ser ‘mal falada’. Já sofremos isso do Patriarcado e seu backlash na forma de ‘feminismo liberal’, queer, interseccional, afins, eles atuam praticamente por meio do terrorismo do rumor, da ameaça deste, um exemplo é as listas ‘terfs’. Mas além disso, há a cultura de exposição na internet, e esta, vale lembrar, foi aprendida por ‘radicais’ por meio dessa gente, e a exposição online por sua vez foi aprendida da misoginia dos homens, dos porn revenge e punições e vexações públicas à mulheres… e estes datam a milênios, desde os apedrejamento de adulteras, à queima de bruxas, a exposição de mulheres sempre vai ser misoginia e sempre terá em suas bases, a violência patriarcal que carregamos historicamente. E ver o quanto isso permeia as próprias relações entre feministas, que por meio de um pacto de mediania acabam por pensar todas iguais, e qualquer pensamento mais radical ou questionador que se arrisque, até mesmo no dito feminismo ‘radical’, é temido e então, apedrejado. O rumor, assim, constrange a imaginação feminista e lésbica e constitui, por consequência, em uma perda histórica para nós. Perda de pensamento que nos avance rumo a uma ‘mudança civilizatória’, como diz Margarita Pisano (pensadora chilena), ao falar da nossa capacidade de criar cultura e de logo, criar outra cultura que não a patriarcal, a do domínio.

Creio que a tarefa de ser feminista radical é justamente, assumir esse lugar de fronteira, é estar sempre indo além, pois o patriarcado possui um poder imenso de re-assimilar tudo e recuperar, como uma esponja, a rebeldia e qualquer desafio à este. Os desafios mais temidos são os mais profundos, aqueles que se propoem a descolonizar-se de sua cultura… Desfazer-nos do rumor e de práticas de misoginia entre mulheres é um desafio se pretendemos que nosso feminismo seja realmente radical e transformador no que tange à relação entre mulheres.