Como o extremismo violento é provocado pela masculinidade, não pela ideologia

O gênero, principalmente a noção de masculinidade, serve tanto como "inspiração psicológica" para que jovens busquem grupos extremistas como "cola social que os mantêm envolvidos" nesses meios. Resenha do livro "Healing From Hate: How Young Men Get Into — and Out of — Violent Extremism", de Michael Kimmel.

No ano passado, eu sentei com um jovem adolescente de Minnesota que tinha acabado de vender o pouco que tinha – um par de tênis, um iPhone e algumas roupas mais caras – para comprar uma passagem para a Turquia. E não era uma viagem a turismo. Ele decidiu ir para a Síria para entrar no Estado Islâmico. O principal motivo pelo qual ele foi atraído para o grupo não era sua ideologia, ele me contou. “No verão de 2014, o Estado Islâmico falava apenas sobre lutar contra o regime de Assad”, ele conta. “Eu achei que estava lutando do lado de pessoas oprimidas”. Para ele, lutar na Síria se relacionava com algo mais fundamental: ser um homem e agir como um. “Eu me senti como se fosse lutar contra outro exército – de Assad – e como se estivesse fazendo algo nobre; aquilo deu um sentido para minha vida”.

A busca por sentido fez com que ele fosse preso e acusado de terrorismo. O FBI o encontrou logo antes de ele entrar no avião que o levaria para a Síria. Eu o entrevistei quando ele aguardava o resultado com a sua sentença.

O novo livro de Michael Kimmel, “Healing From Hate: How Young Men Get Into - and Out of - Violent Extremism” (Curando o ódio: como jovens entram – e saem – do extremismo violento, publicado pela Universidade da Califórnia e ainda sem tradução para o português), é sobre jovens que encontram um sentido para a vida nos lugares mais improváveis. E se você já se perguntou por que essas histórias costumam ser sobre jovens homens que entraram para o Estado Islâmico, grupos neonazistas ou de supremacia branca, Kimmel afirma que isso não é uma mera coincidência: ele acredita que o gênero, principalmente a noção de masculinidade, serve tanto como “inspiração psicológica” para que jovens busquem esses grupos como “cola social que os mantêm envolvidos” nesses meios.

Ótima notícia

Se essa hipótese for verdade – e Kimmel tem ótimos argumentos de que é –, isso é uma ótima notícia para os vários projetos de reabilitação de jovens, já que é mais fácil desafiar o extremismo violento engajando jovens como homens do que tentar convencê-los que a ideologia que eles adotaram é problemática.

Por extensão, a teoria de Kimmel é que muitos jihadistas, neonazistas ou skinheads podem ser mantidos longe da violência se encontrarem outras formas de provarem sua masculinidade e sentirem que suas vidas têm sentido.

Para Kimmel, um sociólogo da Universidade Stony Brook, em Nova York, um mergulho profundo nas complexidades da masculinidade é um território familiar. Ele é autor de outros dois livros sobre temas similares: “Angry White Men” (Homens Brancos Raivosos, em tradução livre), no qual se debruça sobre homens que agridem suas mulheres e suas motivações para isso, e “Guyland: The Perilous World Where Boys Become Men” (Terra dos caras: o mundo perigoso onde meninos se tornam homens), que analisa a transição masculina da adolescência para a idade adulta.

“Reformados”

“No seu último trabalho, Kimmel entrevista homens cujo objeto de desejo é o extremismo violento. Seus personagens incluem um “quem é quem” dos movimentos extremistas mundiais, de Jackie Arklov, um neonazista que é conhecido como “o homem mais odiado da Suécia”, até Frankie Meeink, um skinhead reabilitado da Filadélfia cuja vida inspirou o filme “A outra história americana”, de Edward Norton. No final do livro Kimmel aborda também grupos islâmicos e entrevista Maajid Nawaz, ex-jihadista que atua hoje como um dos líderes do Quilliam, uma equipe de especialistas em contraterrorismo.

Entre outras coisas, Kimmel usa seu acesso incomum aos “reformados” (pessoas que deixaram de fazer parte desses movimentos) para revelar o processo de radicalização.

Ingo Hasselbach, que fundou o programa EXIT Deutschland, conta como ele próprio levou jovens para o movimento neonazista. “Eu gostava de me aproximar de jovens entre 14 e 16 anos de idade depois do horário escolar”, ele conta para Kimmel.

“A primeira coisa que eu fazia quando conhecia um deles era mostrar que eu queria ser amigo deles, fazer coisas com eles. Ter esse tipo de relação com alguém mais velho, especialmente alguém com mais de 20 anos, é uma espécie de elogio. Eu agia como um irmão mais velho; íamos para a floresta e fazíamos exercícios físicos, como escoteiros, construindo fortes e fazendo trilhas. E aproveitava esses momentos para falar de ideologia e ir contra estrangeiros no caminho”.

Inevitavelmente, segundo Kimmel, Hasselbach e outros recrutas como ele começavam a falar sobre a questão do gênero. Eles também argumentavam que durante toda a história houve guerras entre grandes raças de homens. Hasselbach disse que mostrava mapas da Europa de 1937 e contava sobre as terras que foram “roubadas” da Alemanha, e durante muitas conversas eles plantavam as sementes do vitimismo e do que Kimmel chama de “direito do maltratado”. “Era possível ver um jovem de 14 anos desenvolver rapidamente um grande sentimento de injustiça”, Hasselbach contou para Kimmel. Acrescente a isso um pouco de amor e aceitação na comunidade de irmãos do movimento, misture bem e pronto: você tem um jovem com uma missão violenta.

Trajetória padrão

Kimmel faz um ótimo trabalho para apresentar os eventos que levam os homens para a violência, em uma trajetória que parece ser padrão para os diferentes movimentos. Os alvos são normalmente pessoas que já tiveram dificuldades: perderam empregos, têm problemas na escola ou na família. Kimmel diz que, ao invés de olharem para si mesmos na busca pelos motivos da sua desgraça, eles encontram a culpa no sistema, nos imigrantes ou nas forças invisíveis que conspiram para que eles não prosperem.

“Para um homem, os ex-nazistas, jihadistas ou supremacistas… pareciam fracassados como homens. Mas ao invés de transformarem esse sentimento em depressão, violência interpessoal, suicídio, automedicação com drogas ou álcool, esses jovens foram convencidos a externalizar esses sentimentos a transformá-los em um ódio político, uma resposta a essas forças que eles acreditam ser responsáveis pela perda da sua masculinidade. O fracasso não é mais deles como indivíduos; foi algo feito com eles, por um grupo de ‘outros’”, escreve Kimmel.

Vida depois do Ódio

Boa parte do livro mostra exemplos de como provar uma masculinidade é um grande motivador desses jovens que buscam aceitação, mas é nas partes sobre soluções para esse problema que Kimmel se sai melhor. Entre outras coisas, ele descreve como grupos de base conseguiram se infiltrar nas conversas e debates. Um exemplo é o Vida depois do Ódio, uma organização de americanos de extrema-direita que se reabilitaram e tentam educar as pessoas sobre as ameaças do extremismo violento e o racismo.

Eles têm vários programas, como o Harmonia pelo Hockey, que une jovens de vários tipos de família e regiões urbanas para jogar hockey juntos. A ideia é que o contato com “outras” crianças, com as quais eles normalmente não se encontrariam, faz com que eles criem mais empatia – o que, por sua vez, faz com que o recrutamento deles por grupos extremistas seja mais difícil.

De longe uma das melhores ideias mostradas por Kimmel é o EXIT Deutschland, que tenta ajudar skinheads da Alemanha a construir uma comunidade comprometida em sair do movimento. O grupo ajuda os homens a se sentirem mais masculinos ao incentivá-los a encontrar trabalhos estáveis e fornecendo terapia. Levando em conta que grupos skinheads são conhecidos por matar ou mutilar membros que deixam seus postos, o EXIT Deutschland tem que se manter secreto, por isso encontra formas inventivas e criativas de espalhar informações sobre seus programas. Um dos exemplos foi a ação “Camiseta de Tróia”: membros do grupo, disfarçados de skinheads, entraram em um festival de música que apoia a força-branca levando várias camisetas.

“As camisetas eram bem legais: pretas, claro, com uma logo ameaçadora na frente”, escreve Kimmel. “‘Hardcore Rebel’ estava escrito embaixo de uma caveira com duas bandeiras sem insígnias. Mas o slogan final era ‘Nacional e Livre’. Legal, não? E eram de graça! Vários skinheads vestiram as camisetas e de repente havia um grupo de ‘hardcore rebels’ dançando, bebendo e se divertindo. Aparentemente os caras desse festival adoraram a camiseta. Até que, quando foram para casa e as lavaram, elas mudaram. A tinta fosforescente com os slogans desapareceu, e um novo slogan surgiu: ‘Was dein T-shirt kann, kannst du auch’ (Você também pode fazer o que sua camiseta fez), com a mensagem ‘Vamos ajudá-lo a sair do extremismo de direita’ e os contatos do EXIT Deutschland”.

“Cuidadosamente otimista”

Kimmel escreve que depois de conhecer todos esses jovens e passar tempo com os reabilitados, ele é “cuidadosamente otimista”. Ele vê uma maneira de transformar o ódio niilista em sentido com a combinação certa entre apoio e aconselhamento. Se a camiseta de Tróia pode mudar, eles também podem.

E essa foi a minha própria experiência, depois de mais de uma década conversando com dezenas e dezenas de jovens que adotaram o islamismo radical. Um dos fundadores de um grupo islâmico de Nova York me disse há anos que no fim ele superou as ideias extremistas.

E o jovem que vendeu todas as suas posses para ir para a Síria entrar no Estado Islâmico?

Ele entrou num programa de reabilitação que não questionou a ideologia do grupo, mas que estava preocupado em fazer com que ele pensasse de forma mais crítica e se tornasse um homem questionador. “Ainda bem que fui parado no aeroporto”, ele me disse. “E agora não acredito mais naquilo. Eu encontrei outras coisas para substituir isso – eu vejo um futuro para mim aqui nos EUA e tenho meus objetivos. Só vou ter que provar para as pessoas que eu não sou um terrorista”.

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Temple-Raston é produtora-executiva e apresentadora do podcast “What Were You Thinking? (”O que você estava pensando?", em tradução livre), que examina o processo de tomada de decisão do adolescente e os impulsos e a ciência do cérebro que informam suas escolhas. Ela tem sido correspondente de contraterrorismo da rádio pública NPR pela última década.

Tradução de Gisele Eberspächer

Fonte: https://www.gazetadopovo.com.br/ideias/como-o-extremismo-violento-e-provocado-pela-masculinidade-nao-pela-ideologia-1eweob75uk4lntcfvzje1n25o/

Texto original em inglês: www.washingtonpost.com/outlook/how-masc...
   

um artigo da crimethinc tocou essa questão quanto aos tiroteios em massa de forma semelhante:

“Outro tiroteio em massa. Estamos horrorizados, mas não podemos dizer que estamos surpresos. Esses tiroteios acontecem desde que podemos nos lembrar. As vítimas da Marjory Stoneman Douglas High School não tinham nem nascido quando Columbine aconteceu – e os tiroteios em massa só pioraram desde então. Quatro dos dez tiroteios em massa mais mortíferos da história americana ocorreram nos últimos dois anos.

Por que os últimos dois anos? A resposta nos diz muito sobre essa sociedade. 2016 e 2017 viram uma onda de reação contra as lutas e a visibilidade de pessoas queer e trans, mulheres e pessoas de cor, especialmente o movimento Black Lives Matter. As reações vieram de muitas formas: “direitos dos homens”, a alt-right, a campanha Trump. Mas todos eles foram baseados na ansiedade de que homens heterossexuais estão perdendo seu poder sobre a sociedade – e não é segredo que atiradores em massa tendem a ser homens brancos irados com um histórico de odiar mulheres."

crimethinc.com/2018/03/20/gun-control-n...