“Bio chicas” é um dos termos mais ofensivos e desrespeitosos que já ouvi ser usado para se referir a meninas. Ouvi este num debate sobre “desconstrução de gênero”. Engraçado, que esta abordagem de desconstrução nada mais é que apagar a opressão e exploração que nós mulheres sofremos desde que nascemos. Engraçado que esta tal desconstrução tem o objetivo de negar que a opressão e a exploração das mulheres são baseadas no sexo. O gênero é uma construção social, determinada pelo sexo, ou alguém acredita que é tirado unidunitê a cada pessoa que nasce e que se escolhe por acidente qual gênero esta pessoa vai ter? O gênero é determinado pelo sexo e vai determinar o tipo de tratamento que uma pessoa vai receber. As mulheres vão fazer parte da classe subordinada e os homens farão parte da classe dominante, e isso significa que as mulheres terão seus corpos controlados pelo estado e suas leis – por exemplo a criminalização do aborto – sendo as mulheres punidas por tal crime, correndo risco de vida em aborto clandestino, ou ainda obrigadas a manter a gravidez contra a sua vontade independente das condições que se encontram.
Este tratamento determinado pelo sexo também significa que as mulheres serão vistas como propriedade dos homens de tal forma que a violência perpetrada pelos homens contra as mulheres se dará tanto por homens próximos como por estranhos, fazendo parte da guerra não declarada contra as mulheres, o que por sua vez significa todos tipos de violência incluindo tirar suas vidas – o feminicídio.
Esse tratamento igualmente significa que as oportunidades na vida serão distintas desde a infância, sendo a autoestima e a autoconfiança de uma menina completamente atacadas desde muito cedo enquanto as dos meninos comumente estimuladas e insufladas. Isso significa que os corpos dessas meninas serão objetificados e hipersexualizados desde pequenas. Isso significa que meninas e mulheres fazem parte da classe que sofre de forma incontestavelmente maior com abuso e violência sexual.
Isso significa ainda, que estas oportunidades continuarão sendo distintas e que as mulheres irão receber salários menores pelos mesmos serviços prestados, ou serão “naturalmente direcionadas” a profissões menos valorizadas. Isso significa que a prostituição será uma “oferta” incomparavelmente mais presente para mulheres e meninas. Isso significa que as mulheres serão as protagonistas da tortura sofrida na pornografia que vende o estupro e a violência contra a mulher como entretenimento e diversão. E isso por sua vez significa manter a cultura do estupro.
Simplesmente não querem se referir as meninas como meninas porque isso estaria excluindo “meninas não bio”, considerando o sentimento destas mais importante e relevante do que as consequências materiais da opressão baseada no sexo que se seguirá por toda a vida de uma menina. Infelizmente a esquerda foi cooptada pelo liberalismo e não percebeu, e estamos vendo uma onda de políticas identitárias substituindo o feminismo e o tratando como ultrapassado. Não só negando o feminismo, mas distorcendo e moldando a luta das mulheres para que atenda as necessidades de outros grupos – porque as mulheres nunca serão prioridade. Sabemos muito bem que pertencemos a segunda classe no patriarcado, somos tratadas desde que nascemos assim, sabemos que a misoginia é tão verdadeira e poderosa que o backlash* sempre vai acontecer de uma forma nova e revestida.
Agora temos que lidar com o discurso do “subversivo” que nada mais é do que estar disfarçado nesta categoria, porém mantém a mesma ordem de que nós mulheres sejamos exploradas e que temos que acatar isso caladas. O discurso do subversivo ataca erroneamente as feministas chamando-as de conservadoras para ganhar a discussão. Argumento desonesto e sem absolutamente um mínimo de entendimento do que significa a luta feminista e o que significa a importância de garantir que não sejamos silenciadas.
O discurso liberal tá se encarregando de criar, “em nome da diversidade”, vários termos que apagam as realidades de nós mulheres, nos sufocando com o intuito de extinguirem nossa resistência. Porém isso nunca vai acontecer. Enquanto houverem mulheres nesse mundo haverá luta. Enquanto formos exploradas e oprimidas sempre haverão mulheres priorizando sua sobrevivência.
aline rod.
*backlash no contexto feminista é o contra-ataque ou reação negativa ao feminismo.
ah sim, entendi a dúvida. discurso “feminista” liberal, que foca no individualismo, na escolha pessoal. no contexto do texto: que prioriza as identidades de gênero (muitas infinitas e sendo escolhas individuais) e nega que a opressão das mulheres é baseada no sexo. sendo assim uma menina, no caso relatado, não pode ser chamada de menina mas de “bio chica”, porque existem segundo generistas (liberais) outras “chicas” diversas que não as meninas que nascem com vagina (bio) e falar só em meninas ou “chicas” na opinião dessas pessoas seria excludente. agora, por que usam “bio chicas” em espanhol não saberia responder, talvez porque o termo seja mais descolado em espanhol que em português. espero que eu tenha sido mais compreensível agora, mas tamo aí pra trocar ideias. valeu. |
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a auto identificação de gênero é baseada em priorizar a escolha do ‘indivíduo’, isso que me refiro com ‘individualista’ em detrimento a realidade material do mesmo indivíduo.isso é discurso liberal aplicado nas “questões de gênero”. (a realidade material é por exemplo mulheres ficam grávidas e homens não ficam, independente de como essas pessoas se auto identificam, ou outro exemplo a mutilação genital feminina é uma realidade de meninas, coisa que não acontece com seus irmaõzinhos meninos, ninguém pergunta para a menina como ela se ‘identifica’ para poupá-la ou não da mutilação do clitóris). não é “noção de natureza humana”, é biologia, da materialidade do sexo biológico e das consequências deste (do sexo biológico) no tratamento que as pessoas vão receber, que se diferem a partir do nascimento. eu não sei o que vc julga ‘adequado’ para uma análise sobre liberalismo poder ser feita, vc poderia explicar melhor o que pode ser considerado liberal segundo o sua opinião? existe para vc um numero x de características liberais que validariam ou não uma análise? talvez o seu argumento de que o anarquismo também acredita na liberdade individual, embora eu não relaciono com o que tá escrito no texto, talvez possa ser um argumento justamente que corrobore de que o anarquismo foi cooptado pelo liberalismo. em como em certa instância então o liberalismo e o anarquismo acabam se encontrando.o que quero dizer é que vc usa um argumento que assim como te parece ser algo que até soa sagrado só porque é anarquista, pode da mesma forma ser usado como o argumento contrário. |
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não é um elemento isolado um discurso priorizar a escolha individual em diferentes áreas. O discurso “feminista” liberal enfatiza o individualismo não “apenas” na auto definição de gênero, por isso é também conhecido como feminismo de escolha. por exemplo que a prostituição é uma escolha. ou que maquiagem é uma escolha etc etc. |
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Olha, o feminismo liberal é liberal por todas as razões que já coloquei aqui e mais uma ainda que ficou de fora, por focar na igualdade. Você pode continuar achando que o feminismo liberal não é liberal, e não precisa tentar me convencer disso. Tranquilo. |
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m.youtube.com/watch?v=mZbXwSTz3ZY palestra da lierre keith sobre liberais x radicais |
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Concordo com a intervenção da haz no sentido em que assim como ela considero o atual feminismo radical, de fato, liberal e reformista. Não é só ser contra prostituição ou ver mulher como classe que faz de alguem radical, muito menos essa obcessão com trans. Maioria das radfems votaram na Dilma por exemplo, as lesbicas radfem militaram pelo casamento lgbt, acharam daora representatividade lesbica em novela da globo… falta teoria talvez. Mas radicalização no meu entender não é por aí. Tá muito geração tombamento, assimilacionismo e tudo é empoderador se for capitalista, ter diva do pop ganhando dinheiro, etc…, isso era feminismo da igualdade ao meu ver. Por isso entendo como liberal, porque tá caindo em todas armadilhas do neoliberalismo e seu projeto de apresentação de um capitalismo diverso. Aí entra estudos de genero, queer, interseccionalidade… como justificativa ideológica da implantação de um regime economico com aparencia de democrático. Sei la, preciso recuperar umas leituras velhas pra poder falar melhor e ai volto. |
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eu não li isso aqui pelo menos, que vc diz que a haz dá sua opinião sobre feminismo radical ser liberal e reformista. ela não dá nitidamente a sua própria opinião, mas apenas compara teorias. e segundo a haz daí isso poderia ser caracterizado como liberal? seria bem incoerente se pudesse de acordo com toda sua explicação do que pode ser e o que não pode ser liberal. acho que ela mesma não deve concordar com esta sua colocação.(fazendo uma suposição aqui baseada no que já foi debatido). de qualquer forma não concordo que o feminismo radical se transforma em liberal porque algumas radfems como vc coloca votaram na Dilma. o anarquismo não está sendo questionado porque centenas e centenas de homens anarquistas cometem abusos psicológicos e estupram. E nem mesmo por anarquistas abertamente se pronunciarem que votaram na Dilma também. por que esta constante retaliação e crítica parcial quando é sobre mulheres? por que as mulheres feministas tem que ter uma ética inquestionável e anarquistas podem seguir colaborando com o patriarcado e ou cometendo violências ou votando sem que isso invalide a teoria anarquista? ela permanece lá intacta e sagrada. acho muito injusto dizer que existe uma obsessão de feministas radicais quanto a questão trans. as políticas identitárias de gênero e o queer é que focam em detonar o feminismo radical ou feminismo e mesmo as mulheres em geral que não são feministas, e sendo assim é o novo backlash que as feministas estão tendo que responder. é uma resposta ao ataque. as feministas radicais estão se vendo obrigadas a responder a todo instante sobre as questões trans porque as políticas de identidade estão apagando qualquer avanço que as mulheres possam ter para assegurarem que não sejamos silenciadas, para que não se apague as realidades materiais das mulheres nem nossas demandas nem a origem da nossa opressão (baseada no sexo). como deixar que a origem da nossa opressão seja apagada? isso acarretaria numa completa inutilidade do feminismo. este constante e obsessivo ataque do queer às feministas é que faz justamente com que as feministas tenham que responder a estes ataques e não o contrário. coisa que não nos dá nenhum prazer e nos obriga a desviar exatamente do que estávamos abordando anterior a isso. era só o que faltava sermos culpabilizadas por uma coisa que não foi nós que criamos nem começamos. estamos tendo que respirar a ataques por todos os lados e agora mais esse, de que somos nós que “nos focamos” na “questão trans”. qualquer coisa que se opor a luta das mulheres pela sua libertação do domínio masculino vai ter que ser confrontada por feministas pois a luta feminista é pela destruição do patriarcadom – dominação masculina o transativismo deveria focar nas coisas que lhe são importantes e urgentes e não buscar que o feminismo lhes inclua já que lutam por coisas distintas. o feminismo luta pela abolição de gênero, e vê nos estereótipos de gênero (enfatizado pelo transativismo) a razão primordial para a opressão das mulheres (o gênero é uma ferramenta de subjugação das mulheres). Se quando nós falamos sobre aborto somos acusadas de transfóbicas porque “nem todas as mulheres tem útero” como vamos avançar na luta contra a criminalização do aborto ( e isso significa prisão de mulheres) sem responder a esta premissa de que não podemos falar em útero, reprodução, vagina, menstruação? Não estamos focadas nas pessoas trans, somos obrigadas a desviar infelizmente do que estamos abordando para responder ao que essas pessoas estão dizendo e também atacando a segurança das mulheres. (recupera tuas leituras aí e volta hehe) |
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