Tenho visto, depois dos protestos que tomaram o país em junho desse ano, uma grande agitação nos meios militantes; aqui, já encontro uma dificuldade de linguagem, pois não sei exatamente definir que meios seriam esses. O mais comum, me parece, é chamá-los “de esquerda”; mas essa definição se presta prioritariamente a alguns usos com os quais prefiro não flertar. Outras pessoas preferem chamar de “revolucionários”, e aí mesmo que já vejo uma armadilha, pois além de várias revoluções serem possíveis, há a questão de também entender se, ao nomearmos de “revolucionárias”, estamos dizendo que essas pessoas e/ou grupo possuem a capacidade de realmente produzir uma revolução, ou se apenas desejam fazê-lo. Diferente do que algumas pessoas podem acreditar, não é simples questão semântica, e nem deveria ser ignorada caso o fosse; ao menos, dá-se a cara uma questão que deveria ser desenvolvida em outro texto/espaço e por alguém com maior capacidade: a linguagem, longe de apenas facilitar a comunicação, também cria barreiras a esta. De qualquer forma, os grupos e pessoas a quem me interessa principalmente dirigir são aquelas que buscam construir uma sociedade sem exploração – essa definição se faz propositalmente genérica.
Para escrever esse texto, que pretendo pequeno, preciso desenvolver uma sequência lógica de raciocínio, apresentando os motivos que me levam a pensar que tal texto se faz necessário, para então deixar minhas contribuições. Espero conseguir fazê-lo da melhor forma possível.
Os protestos se iniciaram por conta do aumento na tarifa do transporte público, e se alastraram por várias cidades do país; conforme foram crescendo em número de pessoas e cidades, também foram crescendo em número de reivindicações, desde algumas tão específicas quanto “pelo fim da PEC 37” até outras tão genéricas quanto “pelo fim da corrupção”. Não tenho nenhuma dúvida de que esses protestos não iniciam em um vácuo, mas que existe um processo prévio de trabalho e mobilização desenvolvido por diversos grupos, que certamente consolida e dá forças aos protestos nas ruas. No entanto vejo essa questão sendo subestimada e superestimada, pela grande mídia e pelos movimentos sociais, respectivamente; aquela, seja por posição ideológica ou falta de informação, não atribui nenhuma importância à mobilização que vem se construindo há anos, e estes, seja por deslumbramento ou tática de propaganda, colocam mais ênfase nessa mobilização do que me parece adequado. Essa, ao menos, é a leitura que minha inserção nos movimentos e nos protestos me permite fazer.
Como pouco me importa dialogar com a grande mídia, me interessa apenas apresentar alguns pontos para os movimentos sociais. Primeiro, para justificar minha posição de que estes estão superestimando estes protestos, cabe apresentar o que vejo acontecer atualmente; hoje, dia 18/07/2013, não vejo mais os poucos protestos que ainda acontecem contarem com a participação popular, nos dois últimos de que participei apenas pude perceber a presença dos movimentos sociais enquanto maioria esmagadora, cenário muito diferente dos protestos dos dias 17 e 20/07, onde a participação popular claramente superava a dos movimentos sociais – assim, creio ser seguro, tanto por números absolutos quanto relativos, dizer que a onda de protestos arrefeceu. Dito isto, gostaria de apresentar alguns fatos de que tenho conhecimento: um jornal de um partido socialista, datado de junho de 2013, anuncia em letras garrafais “Milhões foram às ruas para mudar o país. FOI SÓ O COMEÇO”; alguns panfletos e jornais nomearam a onda de protestos como “primavera brasileira” (embora eu acredite que outono/inverno seria mais geologicamente preciso e, sinceramente, mais subversivo pela ressignificação), em alusão à “primavera árabe”; um grupo estudantil chama de “grande mobilização”, ainda antes do dia 20, os acontecimentos; uma reunião de que participei planejava fechar quilômetros de uma importante rodovia, não conseguiu fechar sequer uma dezena de metros; um grupo afirma em seu panfleto, distribuído dia 30/06, que “as mobilizações não terminaram”; um panfleto distribuído antes do dia 29/06 por um partido socialista afirma “não vamos desocupar as ruas”; um panfleto de um grupo maoista afirma “uma nova fase de desenvolvimento da situação revolucionária está em curso no país”. Em suma, as posições que ilustrei dizem algo como “vem mais por aí” – o que, até agora, não aconteceu. Um jornal de um grupo anarquista, datado de 06/2013, traz uma frase que resume bem o que penso a respeito disso: “Eles (os protestos populares) representam um desafio prático e teórico ao movimento revolucionário”; e é a busca por contribuir à superação desse desafio que me move a escrever esse texto.
Acreditando ter deixado mais em evidência alguns caminhos que ligaram minha leitura, gostaria de chamar a atenção para um ponto específico: a multiplicação das reivindicações nas manifestações. Essas, que iniciam como protestos ao aumento da tarifa no transporte público, chegaram ao seu auge numérico com quase que uma reivindicação diferente por cartaz levantado. Muita coisa foi dita sobre esse fenômeno, e o que pude acompanhar poderia ser colocado em um gráfico de três pontas, que seriam: “isso é tática da mídia/burguesia/direita para diluir os protestos”; “isso é expressão legítima de uma politização da população”; “o povo nunca sabe o que quer”. Obviamente, raras vezes encontrei alguma opinião que se assentasse solidamente em um desses extremos, sendo o mais comum que elas estivessem em algum ponto da rede entre esses extremos. Me situando também em algum lugar dessa rede, sinceramente me falta tempo e disposição para buscar entender melhor essa configuração, o que não me impede de fazer certas leituras dessa situação. Uma dela é que, por mais manipulado e sem foco que possa ser o cartaz que estampa “Pelo fim da corrupção”, ele (muito) provavelmente expressa uma vontade e, por que não, uma angústia de quem o segura. Uso esse exemplo propositalmente, por acreditar ser ele o mais que tenho em mãos de um tipo ideal de “falta de foco + manipulação”, ou seja, o pior exemplo possível para a luta que busco construir. Afinal acredito ser impossível flagrarmos alguém defendendo a proposta oposta, ou seja, “Pela manutenção e potencialização da corrupção”; a pessoa mais corrupta no governo certamente defenderá essa bandeira junto com a população. Sendo assim, o que faz uma pessoa a levantar tal cartaz? Entre vários fatores, o que interessa levantar aqui é um só: um processo histórico bem sucedido (talvez o único grande sucesso da ditadura com o qual convivemos até hoje) de fomentação do desinteresse pela política. Sendo bem direto: se perguntarmos para essas pessoas que defendem o fim da corrupção “como fazê-lo”, elas provavelmente não saberão dizer – e, de fato, algumas não souberam me dizer. Existe um processo de educação para a despolitização extremamente potente atuante em nossa realidade, e um de seus frutos é essa manifestação de anseios pouco ou nada estruturada. Algumas pessoas com quem conversei culpabilizam aqueles e aquelas que levantam tais cartazes, com adjetivos diversos indo de “burra” a “manipulada”. Eu vejo pessoas que foram obrigadas a aceitar arbitrariedades das mais diversas durante anos, que foram obrigadas a se empoderarem a partir das violências de que são alvo simplesmente porque tudo que lhes é direcionado é violência, pessoas que tiveram que se calar em toda a sua vida porque abafaram suas vozes.
Como transformar isso, essa revolta legítima, esse ódio, essa indignação, em ferramenta revolucionária? Penso que uma das formas possíveis, e não coincidentemente aquela em que pude escolher atuar, é a educação. Tenho muito claro para mim que uma das instituições que mais presta desserviço à educação é a escola, principalmente (ainda tenho dúvidas se exclusivamente) nesse modelo que temos hoje – autoritária, conteudista, disciplinadora. Assim, vamos ter em mente que educação e escola não são sinônimos nem desenvolvem uma relação de necessidade. A educação, para mim, está indissociavelmente ligada à curiosidade, e tenho sempre podido confirmar que a forma privilegiada desta se apresentar é a dúvida, a interrogação, a pergunta. Assim, um processo educativo consistente pode se iniciar com a pergunta “como?” frente à colocação “pelo fim da corrupção”. No entanto, embora fundamental, me parece pouco produtivo nos limitarmos a conversas particulares e pontuais com quem conhecemos e/ou temos contato em manifestações.
Minha proposta, então, é muito simples: a criação de grupos de estudos – tantos quantos forem necessários, tantos quantos forem desejados. Penso que grupos de estudos são a ferramenta ideal para transformarmos essas angústias, essas reivindicações, esses “nós na garganta”, em propostas concretas, que podem ser discutidas, trocadas, modificadas, aprimoradas, abandonadas. E a ideia da criação e multiplicação de grupos de estudos está, em mim, atrelada à concepção de que os movimentos organizados tem de servir de ferramenta para a emancipação das pessoas, jamais como condutores desse processo como pretendem alguns grupos e partidos; amplio essa responsabilidade para todas as pessoas que tiveram mais oportunidades de estudar, ao contrário de tantas outras que só puderam cuidar de sua subsistência mais imediata, não sobrando tempo para reflexão e filosofia. Nós, que não fomos submetidos e submetidas à força massacrante dessa forma de pensar e suas consequências, tivemos ainda algum tempo para participar de reuniões, para ler alguns livros, para compartilhar algumas discussões, só pudemos isso pois haviam outras pessoas sendo massacradas “em nosso lugar” e, assim, acredito termos alguma responsabilidade de compartilhar esse conhecimento de que nos apoderamos para aquelas pessoas que não puderam construí-lo no mesmo momento que nós. Os grupos de estudos, então, agiriam no sentido de dar poder a essas reivindicações através do aprofundamento das questões levantadas, sejam nas manifestações, em conversas, em reuniões etc. Eu, pessoalmente, senti necessidade desse aprofundamento em três questões que vi serem tocadas ou, ao menos, tangenciadas nas manifestações, e gostaria de usá-las aqui com exemplo. O que iniciou as manifestações, o aumento da tarifa do transporte público, é um ponto importantíssimo de um debate que vejo muito maior: a questão da mobilidade urbana; dentro desta, por exemplo, temos que sair da lógica rodoviarista e enxergar que a solução para os problemas de mobilidade na cidade envolvem muitas outras questões como, por exemplo, o uso da bicicleta, que não vi debatido em nenhum grupo/coletivo/assembleia da qual participei em relação a esses protestos. Os gritos de “sem partido” e mesmo os cartazes e faixas pedindo “o fim da corrupção” me mostram a oportunidade e a necessidade de discutirmos a representatividade, umas das formas privilegiadas do funcionamento da corrupção; assim, um grupo de estudos que traga para a pauta o tema da autogestão (que no caminho discutirá representatividade, democracia direta, formas de associação livre etc) é importantíssimo para amadurecermos e qualificarmos essa discussão. Os pedidos de “fim da violência policial” levantam outras discussões importantíssimas, como a necessidade de autodefesa popular (não só em momentos de manifestação), a construção da entidade polícia, o que é violência e o que é opressão etc.; dentro desse contexto, surge uma oportunidade inédita de se discutir abertamente a desmilitarização da polícia, que vejo como uma tática importante para os movimentos sociais organizados contra a exploração. Muitos outros exemplos seriam possíveis, mas acredito já ter esclarecido meu ponto. Muito se falou sobre falta de consciência e de foco em relação a essas questões e eu discordo frontalmente dessas noções – não falta consciência a essas pessoas, pois qualquer conversa sincera e não superficial com elas vai mostrar que elas tem sim uma consciência; e se existe uma falta de foco, é do movimento coletivo, não das pessoas, pois quem elabora um cartaz pedindo o fim da corrupção, está claramente focando em algo. Acho que faltam as ferramentas para mudar a sua realidade, mesmo imediata, e é nesse sintoma que os grupos de estudo devem agir; como eles se formarão, o que vão estudar, de que forma desenvolverão esses estudos, sua periodicidade, enfim, nada disso pode ser estabelecido de antemão, sob pena de perderem o sentido, não sendo mais uma ferramenta para as pessoas e sim um grilhão. Cada grupo define seus princípios, seus meios, seus fins. A única sugestão que posso dar, por viver em uma realidade assim, é para aquelas pessoas que acertadamente pensarão, ou mesmo constatarão depois de um esforço inicial “mas ninguém se interessou/vai se interessar por um grupo de estudos” ou mesmo “as pessoas rejeitaram/rejeitarão a ideia de um grupo de estudos”. O que proponho para contornarmos essa realidade é a criação de dois momentos para os grupos de estudos: um grupo se reuniria para discutir e sistematizar mais densamente as questões, seria o grupo responsável pela parte mais laboriosa e talvez até “chata” da coisa, o que o levaria a ser composto, acredito, por aquelas pessoas com algum tempo e acúmulo disponíveis, como eu disse acima; um outro grupo seria alimentado com o que resultasse desse anterior, de forma a agilizar seus estudos e discussões. Por exemplo, vamos supor que um grupo de estudos se forma em torno da questão da desmilitarização da polícia; ora, esse é um tema que envolve alguns aspectos legais, alguns aspectos históricos e alguns aspectos técnicos que não são de acesso cotidiano, muito menos simples – assim caberia àquelas pessoas que assim quisessem e pudessem a responsabilidade de levantar e sistematizar alguns pontos necessários ao encaminhamento dos estudos e das discussões. Sendo bem direto: a Constituição Federal prevê a criação da polícia militar, portanto não pode-se extingui-la sem a supressão do Estado ou a modificação ou da Constituição; assim, caberia a esse grupo levantar, por exemplo, por que formas se pode alterar a Constituição, já que isso exige algum conhecimento jurídico; definir o que é o militarismo, conceitual e praticamente, também exige alguns conhecimentos específicos (que eu não detenho, por exemplo), que precisariam de uma ou mais reuniões só para serem levantados.
A função de um grupo de estudos, para mim, é levantar e (principalmente) aprofundar questões; ele é uma ferramenta de empoderamento das pessoas através do conhecimento, da discussão e da interação. Grupos de estudos não são a solução para os problemas, sejam estes levantados em manifestações ou pelo próprio grupo de estudos; mas, tampouco, se solucionam problemas sem que as pessoas envolvidas entendam aquilo como problema e concordem com a solução apresentada. A criação de grupos de estudos não depende da criação de mais nada, nem elimina a necessidade de organização em qualquer outro nível ou setor. Grupos de estudos são uma forma de emancipação, pois uma vez que alguém que participa do grupo se apropria do conhecimento ali gerado ou retransmitido, não depende mais do grupo para colocar esse conhecimento em movimento.
Ninguém educa ninguém. Ninguém se educa sozinho.
Paulo Freire