Eu quero uma trégua de 24h sem estupros - Andrea Dworkin

(tradução por Agatha Harumi)

" (…) O que eu gostaria de fazer era gritar: e nesse grito, eu teria os gritos das estupradas, e o soluço das espancadas, e ainda pior, no centro desse grito, eu teria o ensurdecedor som do silêncio das mulheres, esse silêncio com o qual nascemos porque somos mulheres, e com o qual muitas de nós morrem.
E se houvesse um apelo ou uma pergunta ou uma expressão humana nesse grito, seria este: porque vocês são tão lentos? Porque vocês são tão lentos para entender as coisas mais simples; não as complicadas coisas ideológicas. Vocês entendem essas. As coisas simples. Os clichês. Simplesmente que mulheres são humanas exatamente na mesma medida e maneira que vocês.
E também: nós não temos tempo. Nós, mulheres. Nós não temos para sempre. Algumas de nós não têm uma semana ou um dia para vocês discutirem o que seja que vá permitir que vocês saiam às ruas e façam algo. Nós estamos muito próximas da morte. Todas as mulheres estão. E nós estamos muito próximas do estupro e estamos muito próximas do espancamento. E nós estamos dentro de um sistema de humilhação onde não há escapatória para nós.
(…)
A cada três minutos uma mulher é estuprada. A cada dezoito segundos uma mulher é espancada. Não há nada de abstrato nisso. Está acontecendo agora enquanto eu falo.
E está acontecendo por um simples motivo. Não há nada de complexo e difícil sobre o motivo. Homens estão fazendo isso, por causa do tipo de poder que homens têm sobre mulheres. Esse poder é real, concreto, exercido de um corpo para outro corpo, exercido por alguém que sente que tem o direito de exercer isso, exercido em público e em privado. É a soma e substância da opressão das mulheres.
Isso não é feito há cinco mil milhas ou três mil milhas de distância. Isso é feito aqui e está sendo feito agora e é feito pelas pessoas nesta sala, assim como por outros contemporâneos: nossos amigos, nossos vizinhos, pessoas que conhecemos. Mulheres não precisam ir à escola para aprender sobre poder. Nós precisamos apenas ser mulheres, andando pela rua ou tentando terminar o trabalho doméstico após termos dado nosso único corpo em casamento e ter perdido os direitos sobre ele.
O poder exercido por homens dia após dia é um poder institucionalizado. (…) Contra esse poder, nós temos silêncio.
(…)
Isto é o que a teoria sobre a supremacia masculina significa. Significa que vocês podem estuprar. Significa que vocês podem bater. Significa que vocês podem machucar. Significa que vocês podem comprar e vender mulheres. Significa que há uma classe de pessoas para providenciar para vocês o que vocês precisam.
(…)
Agora, o movimento masculino sugere que homens não querem este tipo de poder que eu acabei de descrever. Na verdade, eu escutei sentenças inteiras para este efeito. E ainda, tudo é uma razão para não fazer algo sobre mudar o fato de que vocês tem este poder.
(…)
E sinto muito que vocês se sintam mal – tão inutilmente e estupidamente mal – porque de certa forma esta é realmente sua tragédia. E eu não quero dizer que é porque vocês não podem chorar. E eu não quero dizer que é porque não há real intimidade nas suas vidas. E eu não quero dizer que é por causa da armadura que vocês têm de usar para serem como homens, que é estúpida: e eu não duvido que seja. Mas eu não quero dizer nada disso.
Eu quero dizer que há uma relação entre a forma que mulheres são estupradas e a sua socialização para estuprar com a máquina de guerra que os tritura e os cospe para fora: a máquina de guerra por onde vocês passam assim como mulheres passaram pelo triturador de carne de Larry Flynt na capa da Hustler. É melhor vocês acreditarem que estão envolvidos nessa tragédia e que ela é sua também. Porque vocês são tornados em pequenos soldados desde o dia que nasceram e tudo que vocês aprenderam sobre como evitar a humanidade de mulheres se torna parte do militarismo do país no qual vocês vivem e o mundo que vocês vivem. É também parte da economia que vocês frequentemente afirmam protestar contra.
E o problema é que vocês pensam que está lá fora: e não está lá. Está em você. Os cafetões e os militaristas falam por vocês. Estupro e guerra não são tão diferentes. E o que os cafetões e militaristas fazem é que eles lhes deixam tão orgulhosos de serem homens que conseguem ficar de pau duro e meter com força. E eles pegam essa sexualidade aculturada, os botam em pequenos uniformes e os mandam para matar e morrer. Agora, eu não vou fingir para vocês que eu acho que isso é mais importante que o que vocês fazem a mulheres, porque eu não acho.
Mas eu penso que se vocês querem olhar para o que esse sistema faz a vocês, então aqui é onde vocês deviam começar a procurar: as políticas sexuais da agressão; as políticas sociais do militarismo. Eu acredito que os homens têm muito medo de outros homens. Isto é algo que vocês às vezes tentam expressar em seus pequenos grupos, como se, se vocês mudassem suas atitudes acerca de cada um, vocês não ficariam com medo uns dos outros.
(…)
Eu acredito que vocês corretamente perceberam – sem estar dispostos a encararem isto politicamente – que homens são muito perigosos: porque vocês são.
(…)
Estas conferências também estão preocupadas com homofobia. Homofobia é muito importante: é muito importante para a forma como a supremacia masculina funciona. Em minha opinião, as proibições contra a homossexualidade masculina existem para proteger o poder masculino. Faça isto com ela. Isto é dizer: enquanto homens estuprarem, é muito importante que homens estuprem mulheres. Enquanto o sexo for cheio de hostilidade e exprimir tanto o desprezo e poder sobre outra pessoa, é muito importante que homens não sejam desclassificados, estigmatizados e usados similarmente como mulheres. O poder dos homens enquanto uma classe depende em manter a sexualidade masculina inviolada e a sexualidade feminina sendo usada por homens. Homofobia ajuda a sustentar este poder de classe: isto também ajuda a manter vocês indivíduos salvos entre os outros, salvos do estupro. Se vocês querem fazer algo sobre homofobia, vocês vão ter que fazer algo sobre o fato de que homens estupram, e que sexo forçado não é incidental a sexualidade masculina, mas é em prática paradigmático.
(…)
O que há de complexo em fazer algo sobre isso? O movimento masculino parece permanecer preso em dois pontos. O primeiro é que homens realmente não se sentem bem consigo mesmos. Como vocês poderiam? O segundo é que homens vêm a mim ou a outras feministas e dizem: “O que você está dizendo sobre homens não é verdade. Não é verdade para mim. Eu não me sinto dessa forma. Eu sou contra tudo isso.”
E eu falo: não diga para mim. Diga aos pornógrafos. Diga aos cafetões. Diga aos donos da guerra. Diga aos apologistas do estupro e aos celebradores do estupro e os ideólogos pró-estupro. Diga aos novelistas que pensam que estupro é algo maravilhoso. Diga à Larry Flynt. Diga à Hugh Hefner. Não há porque dizer para mim. Eu sou apenas uma mulher. Não há nada que eu possa fazer sobre isso. Esses homens presumem que falam por vocês. Eles estão na arena pública dizendo que representam vocês. Se eles não representam, então é melhor que vocês os deixem sabendo disso.
(…)
Digam isso aos seus amigos que estão fazendo isso. E há ruas lá fora onde vocês podem dizer isto alto e claro, de modo a afetar as atuais instituições que sustentam estes abusos. Vocês não gostam de pornografia? Eu gostaria poder acreditar que isto é verdade. Eu vou acreditar quando eu os olhar nas ruas. Eu vou acreditar nisso quando eu olhar uma oposição política organizada. Eu vou acreditar nisto quando os cafetões saírem dos negócios porque não há mais consumidores.
(…)
Eu quero falar a vocês sobre igualdade, o que igualdade é e o que significa. Isto não é apenas uma ideia. Isto não é apenas uma palavra insípida que acaba sendo besteira. Isto não tem nada a ver com todas estas declarações como: “Ah, isso acontece com homens também”. Eu nomeio um abuso e escuto: “Ah, isso acontece com homens também”. Esta não é a igualdade pela qual nós estamos lutando. Nós poderíamos mudar nossa estratégia e dizer: bom, ok, nós queremos igualdade; nós vamos enfiar algo no traseiro dos homens a cada três minutos.
Vocês nunca ouviram isso do movimento feminista, porque para nós igualdade tem real dignidade e importância – não é apenas uma palavra idiota que pode ser deturpada e feita parecer estúpida como se ela não houvesse real significado.
(…)
Eu quero ver este movimento de homens fazer um compromisso para acabar com o estupro, porque este é o único compromisso significativo para igualdade. É surpreendente que em todos nossos mundos de feminismo e anti-sexismo, nós nunca falamos seriamente sobre acabar com estupro. Acabar. Interromper. Não mais. Não mais estupro. No fundo das nossas mentes, nós estamos aguentando sua inevitabilidade como última chance de preservar o biológico? Vocês pensam que isso sempre vai existir não importa o que façamos? Todas as nossas ações políticas são mentiras se nós não fizermos um compromisso para acabar com a prática do estupro. Esse compromisso deve ser político. Deve ser sério. Deve ser sistemático. Deve ser público. Ele não pode ser autoindulgente.
(…)
Vocês já se perguntaram por que nós não entramos em um combate armado contra vocês? Não é porque não há uma escassez de facas de cozinhas neste país. É porque nós acreditamos na humanidade de vocês, contra todas as evidências.
Nós não queremos fazer o trabalho de ajudar vocês a acreditarem em sua humanidade. Nós não podemos fazer mais isso. Nós sempre tentamos. E em troca, temos sido pagas com exploração e abusos sistemáticos. Vocês vão ter que fazer isso sozinhos de agora em diante e vocês sabem disso.
(…)
Como uma feminista, eu carrego o estupro de todas as mulheres com quem eu tenho falado pessoalmente nos últimos dez anos. Como uma mulher, eu carrego meu próprio estupro comigo. Vocês se lembram das fotos que viram das cidades europeias durante a peste, onde as pessoas pegavam cadáveres e os jogavam dentro dos carrinhos de mão que passavam? Bem, é assim que é saber sobre o estupro. Pilhas e pilhas de corpos que têm vidas inteiras e nomes humanos e rostos humanos.
Eu falo por muitas feministas, não apenas por mim mesma, quando eu digo a vocês que eu estou cansada do que eu sei e triste além de quaisquer palavras sobre o que já foi feito a mulheres até este ponto, agora, às 2:24pm desse dia, aqui neste lugar.
E eu quero um dia de trégua, um dia de folga, um dia onde novos corpos não serão empilhados, um dia onde não haja novas agonias acrescentadas às antigas, e eu estou pedindo que vocês me deem isso. E como eu poderia pedir menos? É tão pouco. E como vocês poderiam me oferecer menos: é tão pouco. Mesmo nas guerras, há dias de trégua. Vão e organizem as tréguas. Parem o lado de vocês por um dia. Eu quero uma trégua de vinte e quatro horas sem estupro.
Eu os atrevo a tentarem isso. Eu exijo que vocês tentem. Eu não me importo de implorar para que vocês tentem. Por qual outro motivo vocês possivelmente estariam aqui? O que mais esse movimento poderia significar? O que mais poderia significar tanto?
E neste dia, no dia da trégua, no dia que nenhuma mulher for estuprada, nós começaremos a real prática da igualdade, porque não poderemos começá-la antes desse dia. Antes desse dia ela não significará nada, porque ela não é nada: não é real; não é verdadeira. Mas nesse dia, ela começará a ser real. E então, ao invés de estupros, pela primeira vez nas nossas vidas – homens e mulheres – começaremos a experimentar a liberdade.
Se vocês tem uma concepção de liberdade que inclui a existência de estupro, vocês estão errados. Vocês não poderão mudar o que vocês desejam. Por mim mesma, eu quero experimentar apenas um dia de liberdade real antes que eu morra. Eu os deixo aqui para fazer isso por mim e pelas mulheres que vocês dizem que amam.