Mulher Que Se Identifica Com Mulher
A mulher que se identifica com a mulher
(The woman-identified woman)*
(Radicalesbians, 1970)
O que é uma lésbica? Uma lésbica é a fúria de todas as mulheres condensada até ao ponto de explosão. Ela é a mulher que, muitas vezes numa idade muito jovem, começa a actuar de acordo com a sua necessidade compulsiva de ser um ser humano mais completo e livre que – talvez então mas certamente mais tarde – a sociedade onde vive a deixa ser.
Estas necessidades e acções ao longo dos anos, conduzem-na a um conflito doloroso com as pessoas, situações, formas aceitáveis de pensar, de sentir e de comportamento, até se encontrar num estado de guerra permanente com tudo à sua volta e geralmente também com ela própria. Pode não estar totalmente consciente das implicações políticas do que para ela começou como necessidade pessoal, mas num dado plano não foi capaz de aceitar as limitações e a opressão imposta pelo papel mais básico da sua sociedade – o papel de mulher. O turbilhão que ela sente, tende a induzir uma culpa proporcional ao grau em que ela sente não estar de acordo com as expectativas sociais, e/ou eventualmente condu-la ao questionar e à análise do que o resto da sua sociedade mais ou menos aceita. Ela é forçada a desenvolver o seu próprio padrão de vida, muitas vezes vivendo grande parte da sua vida sózinha, aprendendo geralmente mais cedo que as suas irmãs heterossexuais acerca da solidão essencial da vida (que o mito do casamento esconde) e acerca da realidade das ilusões. Enquanto não conseguir expelir a pesada socialização que implica o ser mulher, nunca conseguirá estar em paz consigo própria. Porque ela se encontra entre a aceitação da visão que a sociedade tem dela – e nesse caso não se aceita a ela própria – e a compreensão do que esta sociedade sexista fez por ela e porque é funcional e necessário fazê-lo. Aquelas de entre nós que meditámos e tirámos conclusões sobre isso, encontramo-nos do outro lado de uma viagem tortuosa através da noite que pode ter durado décadas. A perspectiva que se ganha dessa viagem, a libertação interior do nosso ser, a paz interior, o amor real por nós próprias e por todas as mulheres, é algo a ser compartilhado com todas as mulheres – porque somos todas mulheres.
Deverá ser compreendido em primeiro lugar que o lesbianismo, tal como a homossexualidade masculina é uma categoria de comportamento possível apenas numa sociedade sexista, caracterizada por papéis sexuais rígidos e dominada pela supremacia do homem. Esses papéis sexuais desumanizam a mulher, definindo-nos como uma casta de apoio/serviço em relação à classe dominante dos homens e tornam os homens inválidos emocionais ao lhes exigir que sejam alienados dos seus próprios corpos e emoções de modo a executar eficientemente as suas funções económicas/políticas/militares. A homossexualidade é um produto secundário de uma forma particular de definir papéis (ou padrões aprovados de comportamento) com base no sexo; e como tal é uma categoria inautêntica (que não está de acordo com a “realidade”). Numa sociedade em que os homens não oprimissem as mulheres, e em que fosse permitido à expressão sexual seguir os sentimentos, as categorias de homossexualidade e heterossexualidade iriam desaparecer.
Mas o lesbianismo é também diferente da homossexualidade masculina e tem uma função diferente na sociedade. “Fufa” é uma forma depreciativa diferente de “paneleiro”, embora ambos impliquem que não se está a actuar de acordo com o papel sexual socialmente atribuído – que não se é uma “verdadeira mulher” ou “verdadeiro homem”. A admiração invejosa que se sente pela maria-rapaz e o sentimento de mal-estar sentido à volta de um rapaz efeminado apontam para a mesma coisa; o desprezo com que são encaradas as mulheres – ou aqueles que desempenham o papel feminino. E o investimento feito para manter as mulheres nesse papel desprezível é muito grande. Lésbica é a palavra, a etiqueta, a condição que mantêm as mulheres na linha. Quando uma mulher ouve esta palavra ser lançada na sua direcção, sabe que está a pisar o risco. Sabe que atravessou a terrível fronteira do seu papel sexual. Recua, protesta, reformula as suas acções para receber aprovação. Lésbica é uma etiqueta inventada pelo homem para atirar a qualquer mulher que queira ser sua igual, que tenha a audácia de desafiar as prerrogativas dos homens (incluindo a prerrogativa de todas as mulheres serem usadas como moeda de troca entre os homens), que tem a audácia de afirmar a primazia das suas próprias necessidades. Ter esta etiqueta aplicada a pessoas que estão activas no movimento de libertação das mulheres, é apenas o episódio mais recente de uma longa história; as mulheres mais velhas lembrar-se-ão que não há muito tempo, qualquer mulher independente que tivesse sucesso e não orientasse toda a sua vida à volta de um homem ouviria esta palavra. Porque nesta sociedade sexista, ser independente para uma mulher significa que esta não pode ser uma mulher deve ser uma fufa. Isto em si deveria dizer-nos em que pé as mulheres se encontram. Diz tão claramente quanto pode ser dito: mulheres e pessoa são termos contraditórios. Porque uma lésbica não é considerada uma “verdadeira mulher”. E contudo, no pensamento popular, existe apenas uma diferença essencial entre uma lésbica e as outras mulheres: a orientação sexual – ou seja, depois de se retirar o papel de embrulho, deveremos finalmente compreender que a essência de ser “mulher” é ser fodida por um homem.
“Lésbica” é uma das categorias sexuais em que os homens dividiram a humanidade. Enquanto que todas as mulheres são desumanizadas sendo encaradas como objectos sexuais, ao serem objectos dos homens são-lhes oferecidas algumas compensações: identificação com o seu poder, o seu ego, o seu status, a sua protecção (dos outros homens), sentir-se como uma “mulher verdadeira”, encontrar uma aceitação social ao aderir ao seu papel, etc. Se uma mulher se confrontar com ela própria ao confrontar outra mulher, existirão menos racionalizações e menos tampões para evitar o horror total da sua condição desumanizada. Aqui encontramos o medo inultrapassável de muitas mulheres em relação a explorar relações íntimas com outras mulheres: o medo de ser usada como objecto sexual por outra mulher, que não só não dará as compensações ligadas aos homens, mas que também revelará o vazio que é verdadeiramente a situação real da mulher. Esta desumanização é expressa quando uma mulher heterossexual descobre que a sua irmã é lésbica; ela começa a relacionar-se com a sua irmã lésbica como sendo um potencial objecto sexual atribuindo o papel de substituto do homem à lésbica. O facto de ela se tornar num objecto quando numa relação está potencialmente envolvido sexo, revela o seu condicionamento heterossexual e nega à lésbica toda a sua humanidade. Para as mulheres, especialmente aquelas envolvidas no movimento, aperceber-se das suas irmãs lésbicas através desta grelha machista de definição de papéis, é aceitar este condicionamento cultural dos homens e oprimir as suas irmãs da mesma maneira que elas próprias são oprimidas pelos homens. Vamos continuar com o sistema de classificação dos homens, que define todas as mulheres numa relação sexual com qualquer outra categoria de pessoas? Afixar a etiqueta de lésbica não apenas a uma mulher que aspira a ser uma pessoa, mas também a qualquer situação de verdadeiro amor, verdadeira solidariedade, verdadeira primazia entre as mulheres é uma forma primária de divisão entre as mulheres dentro dos limites do papel feminino e é o termo que ridiculariza/assusta as mulheres e que as impede de formar quaisquer ligações, grupos ou associações primárias entre elas.
As mulheres no movimento tem numa maioria dos casos feito grandes esforços para evitar discussões e confrontações sobre a questão do lesbianismo. Põe as pessoas nervosas. Elas ficam hostis, evasivas, ou tentam incorporar o assunto num “tema mais geral”. Preferem não falar no assunto. Se o tem de fazer, tentam impedir que se continue por ser um falso problema. Mas não é uma questão secundária. É absolutamente essencial para o sucesso e o atingir dos objectivos do movimento de libertação das mulheres que se lide com esta questão. Enquanto a etiqueta de “fufa” poder ser usada para assustar as mulheres para que estas se tornem menos militantes, se mantenham afastadas das suas irmãs, para afastá-las de dar primazia a tudo o que não seja os homens e família – então desse modo elas são controladas pela cultura dos homens. Até as mulheres conseguirem ver umas nas outras a possibilidade de um compromisso primordial que inclui o amor sexual, estarão a negar a elas próprias o amor e o valor que dão inerentemente aos homens, afirmando desse modo o seu estatuto de segunda classe. Enquanto que o mais importante seja a aceitação pelos homens – tanto para as mulheres individuais como para o movimento como um todo – o termo lésbica será usado eficazmente contra as mulheres. Enquanto as mulheres quiserem apenas mais privilégios dentro do sistema não querem antagonizar o poder dos homens. Em vez disso procuram uma aceitação da libertação das mulheres e o aspecto mais crucial desta aceitação é negar o lesbianismo – isto é negar qualquer desafio fundamental à base do papel da mulher.
Deverá igualmente ser dito que algumas mulheres mais jovens e mais radicais começaram a discutir o lesbianismo com honestidade, mas até agora apenas como uma “alternativa” sexual aos homens. Contudo, isto é ainda dar a primazia aos homens, tanto porque a ideia de se relacionar mais completamente com as mulheres ocorre como uma reacção negativa aos homens como porque a relação lésbica está a ser caracterizada apenas pelo sexo o que é divisionista e sexista. Num plano que é tanto pessoal como político, as mulheres podem retirar energias emocional e sexual dos homens e desenvolver diversas alternativas nas suas vidas para essas energias. Noutro plano político/psicológico diferente, deverá ser compreendido que o que é crucial é que as mulheres se comecem a libertar dos padrões de resposta definidos pelos homens. Na privacidade das nossas próprias psiques, devemos cortar esses cordões até ao cerne. Porque independentemente de para onde fluem o nosso amor e energias sexuais, se nas nossas cabeças nos identificamos com os homens, não podemos realizar a nossa autonomia como seres humanos.
Mas porque é que as mulheres se relacionam com e através dos homens? Em virtude de termos sido educadas numa sociedade de homens, interiorizamos a definição que a cultura dos homens dá de nós próprias. Essa definição vê-nos como seres relativos que existem não para nós próprias mas sim para o serviço, manutenção e conforto dos homens. Essa definição confina-nos em funções sexuais e de família e exclui-nos de definir e elaborar os termos das nossas vidas. Em troca dos nossos serviços psíquicos e da execução de funções não lucrativas, o homem dá-nos apenas uma coisa: o estado de escrava que nos torna legítima aos olhos da sociedade em que vivemos. A isto dá-se o nome no calão cultural a “feminilidade” ou “ser uma mulher verdadeira”. Nós somos autênticas, legítimas, reais se formos propriedade de algum homem cujo nome usamos. Ser uma mulher que não pertence a qualquer homem é ser invisível, patética, inautêntica, irreal. Ele confirma a sua imagem de nós – de aquilo que temos de ser de modo a ser aceitável por ele – mas não dos nossos verdadeiros seres.; ele confirma o nosso estatuto de mulher – tal como ele o define, em relação a ele – mas não pode confirmar o nosso estatuto de pessoa, os nossos seres como absolutos. Enquanto estivermos dependentes da cultura dos homens, para esta aprovação, não podemos ser livres.
A consequência de interiorizar este papel é um enorme reservatório de auto-ódio. Isto não corresponde a dizer que este auto-ódio é reconhecido ou aceite como tal; com efeito muitas mulheres negá-lo-ão. Pode ser experimentado como desconforto com o seu papel, sentimento de vazio, entorpecimento, desassossego, uma ansiedade paralizante. Alternativamente, pode ser expresso através de uma grande defesa do destino e da glória do seu papel. Mas este auto-ódio existe, muitas vezes no inconsciente, envenenando a sua existência, mantendo-a alienada de ela própria, das suas necessidades e tornando-a estranha às outras mulheres. As mulheres odeiam-se a elas e às outras mulheres. Tentam escapar ao se identificar com o opressor, vivendo através dele, ganhando status e identidade a partir do seu ego, do seu poder dos seus feitos. E através de uma não identificação com outros “recipientes vazios” como elas próprias, as mulheres resistem relacionando-se a todos os níveis com outras mulheres que irão reflectir a sua própria opressão, o seu estado secundário e o seu próprio auto-ódio. Pois confrontar outra mulher é finalmente confrontar o seu próprio ser – o ser que se tentou tão dificilmente evitar. E nesse espelho sabemos que não podemos realmente respeitar e amar aquela em que nos tornámos.
Uma vez que a fonte do auto-ódio e a falta de verdadeiro ser tem origem na identidade que nos é dada pelos homens, devemos criar um novo sentido de ser. Enquanto nos agarrarmos à ideia de “ser uma mulher”, sentiremos algum conflito com esse ser incipiente, esse sentido do eu, esse sentido da pessoa total. É muito difícil compreender e aceitar que ser “feminina” e ser uma pessoa no seu todo são irreconciliáveis. Apenas as mulheres podem dar umas às outras um novo sentido do ser. Essa identidade tem que ser desenvolvida tendo por referência nós e não os homens. Esta consciência é a força revolucionária a partir da qual tudo o resto sairá, porque a nossa revolução é orgânica. Para isto devemos apoiar e estar disponíveis umas para as outras, dar o nosso amor e compromisso, dar o suporte emocional necessário para manter este movimento. As nossas energias devem fluir na direcção das nossas irmãs e não na direcção dos nossos opressores. Enquanto a libertação da mulheres tentar libertar as mulheres sem encarar a estrutura básica heterossexual que nos liga numa relação um para um com os nossos próprios opressores, energias tremendas continuarão a fluir na direcção de tentar endireitar cada relação particular com um dado homem, como conseguir ter melhor sexo, como fazer com que a cabeça dele se vire ao contrário – para tentar fazer um “homem novo” dele, na ilusão que isto nos permitirá ser uma “mulher nova”. Isto obviamente divide as nossas energias e compromissos, deixando-nos incapazes de nos comprometer com a construção de novos padrões que nos libertarão.
É a primazia das mulheres a se relacionarem com outras mulheres, das mulheres a criarem uma nova consciência delas umas com as outras, que está no centro da libertação das mulheres, e que é a base para a revolução cultural. Juntas devemos encontrar, reforçar e validar os nossos seres autênticos. Quando o fazemos confirmamos umas com as outras o nosso sentido incipiente de orgulho e força, as barreiras de divisão começam a desaparecer, e sentimos este sentimento crescente de solidariedade com as nossas irmãs. Vemo-nos como princípio, encontramos os nossos centros dentro de nós. Vemos regredir o sentimento de alienação, de ser posta de parte, de estar por detrás de uma janela fechada, de ser incapaz de fazer sair o que nós sabemos que se encontra cá dentro. Sentimos uma autenticidade, sentimos finalmente que estamos de acordo connosco. Dentro desse ser real, com essa consciência, começamos uma revolução para acabar com a imposição de todas as identificações coercivas e para atingir o máximo de autonomia na expressão humana.