Beleza e Misoginia - Sheila Jeffreys em tradução

Beleza e Misoginia (Sheila Jeffreys, 2005)

Título original: Beauty and Misogyny: Harmful Cultural Practices in the West Autora: Sheila Jeffreys Tradução: Laryssa Azevedo. Fonte feminismoptbr.blogspot.com.br Sheila Jeffreys é professora adjunta no Departamento de Ciência Política na Universidade de Melbourne, onde ensina política sexual, políticas feministas internacionais e políticas gay. Ela é autora de cinco livros sobre história e política da sexualidade e é ativa no feminismo e nas políticas feministas lésbicas desde 1973.

INTRODUÇÃO

Nos anos 1970 uma crítica feminista à maquiagem e outras práticas estéticas emergiu em grupos de conscientização. A teórica feminista radical Catherine A. MacKinnon chamou de conscientização a “metodologia” do feminismo (MacKinnon, 1989). Nesses grupos mulheres discutiam seus sentimentos sobre elas mesmas e seus corpos. Elas identificaram as pressões da dominância masculina que faziam com que sentissem que deviam fazer dieta, depilação e usar maquiagem. Escritoras feministas rejeitaram a estética masculina que fez com que mulheres sentissem que seus corpos eram inadequados e se engajassem em práticas caras e demoradas que faziam com que sentissem que perderam sua autenticidade e que eram inaceitáveis de cara lavada (Dworkin, 1974). “Beleza” era identificada como opressão a mulheres. Nas últimas duas décadas a brutalidade das práticas estéticas executadas nos corpos femininos tornou-se muito mais severa. As práticas atuais requerem a ruptura da pele, derramamento de sangue e rearranjo ou amputação de partes do corpo. Corpos estranhos, no formato de implantes para os seios, são colocados embaixo da carne e próximos ao coração, os lábios vaginais das mulheres são cortados para chegar a um determinado tamanho, gordura é lipoaspirada das coxas e glúteos e algumas vezes injetada em outras partes como bochechas e queixos. A nova indústria da modificação corporal agora divide línguas femininas ao meio, criam buracos nos mamilos, próximos ao clitóris ou umbigo, para inserção de joias de “arte corporal” (Jeffreys, 2000). Esses incrementos são muito mais perigosos para a saúde da mulher do que as práticas comuns nos anos 60 e 70 quando a crítica feminista se deu. Era de se esperar, dessa forma, que essa crítica estivesse mais afiada e sua relevância fosse renovada em resposta ao coordenado ataque à integridade dos corpos das mulheres. Mas isso não aconteceu. Ao invés disso, a perspectiva feminista, que fez muitos milhares de mulheres evitarem a cultura da beleza e seus produtos foi desafiada nos anos 80 e 90. O desafio veio de duas direções. Feministas liberais, como Natasha Walter (Reino Unido) e Karen Lehrman (EUA), argumentaram que não havia nada errado com batom ou mulheres ficando mais bonitas com todos os produtos e práticas da cultura da beleza (Walter, 1999; Lehrman, 1997). O feminismo mesmo havia criado a escolha para mulheres, segundo elas, e permitiram às mulheres “escolher” o batom, que antes era imposto a elas. Enquanto isso, a influência de ideias pós-modernas na academia levaram a discursos similares sobre “escolha”, geralmente na forma de “agência” vinda de algumas teóricas feministas e pesquisadoras (Davis, 1995). Proposições mais ousadas também foram feitas, como a ideia de que práticas de beleza poderiam ser socialmente transformadoras. Teóricas do feminismo pós-moderno como Judith Butler (1990), com suas ideias de performance de gênero, inspiradas na noção difundida entre teóricos queer de que as práticas de beleza da feminilidade adotadas por atores não convencionais ou escandalosamente poderiam ser transgressoras (Grosz, 1994). É em resposta a essa recente defesa das práticas de beleza contra a crítica feminista que este livro foi escrito. Em Beleza e Misoginia, eu sugiro que práticas de beleza não são sobre escolhas individuais das mulheres ou um “espaço discursivo” para a expressão criativa das mulheres mas, como outras teóricas feministas radicais argumentaram antes de mim, o mais importante aspecto da opressão contra a mulher. A filósofa feminista Marilyn Frye escreveu incisivamente sobre o que torna uma teoria feminista e por que não é suficiente contar com a certeza individual de mulheres que uma prática está ok para elas e para seus interesses.

Um dos grandes poderes do feminismo é que ele torna as experiências e vidas das mulheres inteligíveis. Tentar explicar os sentimentos, motivações, desejos, ambições, ações e reações de uma mulher sem levar em consideração as forças que mantêm a subordinação das mulheres em relação aos homens é como tentar explicar por que uma bolinha de gude para de rolar sem levar o atrito em consideração. A teoria feminista é sobre, de maneira geral, identificar essas forças somente… e mostrar a mecânica de suas aplicações nas mulheres como um grupo (ou casta) e para mulheres individualmente. A medida do sucesso da teoria é somente o quanto se pode explicar sobre o que não fazia sentido antes.
(Frye, 1983, p. xi)
Neste livro eu tento identificar algumas das “forças que mantêm a subordinação das mulheres em relação aos homens” relacionadas a práticas de beleza.
Procuro explicar por que as práticas de beleza permanecem não apenas universalizadas 30 anos depois da crítica feminista ser feita, mas de muitas maneiras, mais extremas. Para isso eu uso algumas abordagens novas feitas para explicar essa intensificação da crueldade no que é esperado de mulheres no século XXI. Um ímpeto por trás da escrita deste livro é minha crescente impaciência para o viés ocidental do construtivo conceito de “práticas tradicionais/culturais nocivas”. Nos documentos das Nações Unidas (ONU) como o documento sobre “Práticas Tradicionais Nocivas” (ONU, 1995), práticas culturais/tradicionais nocivas são entendidas como prejudiciais à saúde das mulheres e adolescentes, realizadas para benefício masculino, criadoras de papéis sexuais estereotipados e justificáveis por tradição. Esse conceito é uma boa lente através da qual se pode examinar práticas que são nocivas a mulheres ocidentais – como práticas de beleza. Entretanto, práticas ocidentais não estão incluídas na definição ou entendidas pelas políticas feministas internacionais dessa forma. De fato há um pronunciado viés ocidental na seleção de práticas que se encaixam nessa categoria, entre as quais apenas uma prática ocidental, violência contra a mulher, está incluída (Wynter et al., 2002). O pressuposto é de que as culturas ocidentais não possuem práticas danosas, como mutilação genital, que poderiam gerar preocupação. Eu demonstro, em Beleza e Misoginia que práticas de beleza ocidentais, do batom à labioplastia se enquadram no critério e deviam estar incluídas na compreensão da ONU. A grande utilidade dessa abordagem é que ela não depende de noções de escolha individual; ela reconhece que atitudes por trás de práticas culturais danosas têm poder coercitivo e podem e devem ser modificadas.
Outra abordagem que uso é enxergar o envolvimento masculino de duas formas nas práticas de beleza associadas a feminilidade: na travestilidade/transsexualidade, e no papel de designers e fotógrafos da indústria da moda. Neste livro estão pistas úteis sobre os significados culturais das práticas de beleza feminina, e formas nas quais são reforçadas, obtidas da análise do comportamento de homens que as praticam e de homens que as projetam. Eu utilizo percepções vindas de pesquisas em livros e na Internet sobre homens que obtém excitação sexual apropriando-se da feminilidade. Ao longo das décadas, desde os anos 70, as práticas masculinas de travestilidade/transsexualidade, que são a apropriação de roupas ou partes do corpo geralmente relacionadas a membros da classe sexual subordinada à supremacia masculina, ganharam extensa exposição pública e influência. A Internet permitiu que websites de praticantes individuais e grupos de apoio, bem como sites comerciais e pornografia direcionada a essas práticas masculinas proliferassem. Essa é uma boa oportunidade de demonstrar que práticas de beleza “feminina” não são nem naturais, nem exclusivas das mulheres. Também fornece muitas informações úteis sobre o que tais práticas representam para os homens, a excitação sexual causada pela subordinação ritualizada. Eu uso tais websites em alguns capítulos, analisando a criação da feminilidade por homens ou “transfeminilidade”. Com a percepção que tamanha análise oferece, argumento que essa prática masculina influencia na construção de práticas de beleza nocivas para mulheres através da influência de estilistas homens, fotógrafos e maquiadores que têm interesse em transfeminilidade.
Outra abordagem que uso para investigar práticas de beleza é a análise da influência das indústrias da pornografia e da prostituição em sua criação. Sugiro que no final do século XX, o crescimento dessas indústrias teve um considerável efeito nas práticas de beleza exigidas a mulheres. Conforme essas indústrias cresceram e ganharam respeito através do desenvolvimento de novas tecnologias, como a Internet, e políticas governamentais indiferentes, as exigências culturais para a construção da beleza mudaram. O estigma da objetificação sexual à venda transformou-se em regra na indústria da moda. As pressões da pornografia criaram novas normas da moda para mulheres em geral, como implantes de silicone nos seios, depilação genital, alteração cirúrgica dos lábios vaginais, aparatos sadomasoquistas em forma de couro preto e vinil, e a exibição crescente do corpo, incluindo seios nus e nádegas.

Beleza e Misoginia é concluído com um capítulo sobre o grau dos sérios danos físicos às mulheres e algumas categorias de homens que agora se normalizaram através da indústria do sexo e da celebração na arte e nos círculos da moda e através de redes online. Esse dano, eu sugiro, precisa ser entendido como automutilação passiva. Inclui a cirurgia cosmética, na qual o agente é o cirurgião plástico, e a indústria da modificação corporal, na qual os agentes são encontrados em estúdios de piercing. A partir dos anos 90, passaram a ser incluídas práticas extremamente severas como amputação, cujos agentes são cirurgiões, e outras práticas de sadomasoquismo nas quais partes do corpo são removidas. Algumas dessas práticas são sofridas por categorias vulneráveis de homens gays, bem como por mulheres. Não parece haver um limite para as variações de modificações corporais que membros da medicina estão preparados para realizar em troca de lucro. A defesa do “consentimento” da vítima está sendo empregada em circunstâncias tão dúbias que toda a noção de consentimento deve ser questionada. Meu argumento é que, consentimento à parte, limites deveriam ser construídos para conter os ataques à integridade dos corpos das mulheres e de alguns homens em nome da beleza ou da insatisfação com a aparência que estão ganhando espaço no início do século XXI.

CAPÍTULO 1 O “CONTROLE DA CULTURA SOBRE O CORPO” -

Práticas de beleza como agência feminina ou subordinação feminina. Nos anos 90 uma divergência fundamental emergiu entre escolas feministas a respeito da extensão das práticas de beleza ocidentais: se representavam o status subordinado das mulheres ou se poderiam ser vistas como a expressão da escolha ou agência femininas. Ideias emergiram em períodos particulares por causa de uma concentração de forças sociais que as fizeram possíveis. Nos anos 60 e 70 os novos movimentos sociais do feminismo, Black Power, políticas lésbicas e gays surgiram em resposta ao clima de esperança na possibilidade de transformações sociais. Esses movimentos sociais estavam abastecidos pela crença no construcionismo social e pela ideia de que uma transformação social radical era possível na busca pela igualdade social. Essas ideias sustentaram as profundas críticas feministas radicais à beleza que emergiram naquele período. Nos anos 80, entretanto, as ideias do feminismo radical, como as outras ideologias socialmente transformadoras foram tratadas com desprezo por ideólogos de direita que as chamaram de “politicamente corretas”. Uma nova ideologia de fundamentalismo de mercado foi desenvolvida para prover suporte ideológico para a expansão do recém desregulamentado capitalismo desenfreado. Segundo essa ideologia, o livre mercado, controlado apenas pelas escolhas de cidadãos poderosos, criaria uma estrutura social e econômica ideal sem a interferência do Estado. Cidadania, nessa visão, não era sobre direitos mas sobre responsabilidades, e o cidadão tinha o poder da escolha consumista (Evans, 1993). Nos anos 90 essas ideias sobre o poder de escolha influenciaram muitas feministas também. A ideia de que as mulheres eram coagidas pelo complexo moda/beleza para aderirem a práticas de beleza (Bartky, 1990), por exemplo, foi desafiada pela nova geração de feministas liberais que falavam sobre mulheres serem empoderadas pelo movimento feminista para escolher práticas de beleza que poderiam não ser mais vistas como opressivas. A nova linguagem que penetrou o pensamento feminista a partir de discursos sutis de direita foi a da “agência”, “escolha” e “empoderamento”. Mulheres passaram a ser consumidoras bem informadas que poderiam exercer seu poder de escolha no mercado. Elas poderiam escolher práticas e produtos. Feministas que continuaram a argumentar que as escolhas das mulheres foram severamente forçadas e feitas em um contexto de relativa ausência de poder feminino e dominância masculina foram criticadas com certa aspereza como “feministas vitimistas”; ou seja, que faziam de mulheres vítimas ao negar sua agência (Wolf, 1993). Nesse capítulo eu examino as ideias da crítica feminista radical à beleza e mostro como estas passaram a ser desafiadas tanto pelo novo feminismo liberal quanto por seu equivalente na academia, uma variedade de feminismo pós-moderno que enfatiza a escolha e a agência de maneira similar. Eu considero as tensões desenvolvidas entre os defensores da “escolha” e aqueles que enfatizavam o papel da cultura e da força na exigência da conformidade das mulheres com as práticas de beleza da feminilidade. Eu concluo com as ideias de algumas teóricas feministas e pesquisadoras que forneceram explicações convincentes sobre a coação que restringe as possibilidades de agência das mulheres nas práticas de beleza em culturas de dominância masculina fundadas na desigualdade/submissão sexual A CRÍTICA FEMINISTA À BELEZA As críticas apontaram que a beleza é uma prática cultural do tipo que é prejudicial a mulheres. Para escritoras como Andrea Dworkin a questão mais importante não era a dimensão na qual mulheres poderiam expressar agência e “escolha” no uso de maquiagem, mas quais os danos causados pelas práticas de beleza nas mulheres. Seu livro Woman Hating (Ódio a mulheres) é um bom exemplo da poderosa crítica que feministas radicais estavam fazendo à noção de beleza nos anos 70 (Dworkin, 1974). Ela analisa a ideia de “beleza” como um aspecto da forma pela qual mulheres são odiadas em culturas de supremacia masculina. Dworkin acusa a cultura do ódio a mulheres “pelas mortes, violações e violência” contra mulheres e diz que feministas “procuram por alternativas, formas de destruir a cultura como a conhecemos, reconstruindo-a como a imaginamos” (1974, p. 26).

Dworkin enxerga que as práticas de beleza geram extensos efeitos nocivos nos corpos das mulheres e em suas vidas. Práticas de beleza não apenas são perda de tempo, caras e dolorosas para a autoestima, mas:
Padrões de beleza descrevem em termos precisos o relacionamento que uma pessoa tem com seu próprio corpo. Eles determinam sua mobilidade, espontaneidade, postura, jeito de andar, como ela deve colocar o corpo. Eles definem precisamente as dimensões de sua liberdade física.
(Dworkin, 1974, p. 112)
E, continuando, padrões de beleza também surtem efeitos psicológicos nas mulheres porque “a relação entre liberdade física e desenvolvimento psicológico, possibilidades intelectuais e potencial criativo é muito estreita”. Dworkin, como outras feministas radicais críticas da beleza, descreve o amplo alcance das práticas as quais mulheres devem seguir para estar de acordo com o que dita a beleza:
Em nossa cultura, nenhuma parte do corpo feminino permanece intocada, inalterada. Nenhuma característica ou extremidade é poupada de arte, dor ou aperfeiçoamento. No cabelo se tinge, passa laquê, alisa ou faz permanente; sobrancelhas têm os pelos arrancados, são maquiadas com lápis, tingidas; olhos são delineados, se usa máscara, sombra; cílios são curvados ou falsos – da cabeça aos pés, cada aspecto da face feminina, cada seção de seu corpo é sujeito a modificação, alteração.
(Dworkin, 1974, p. 112)
Curiosamente esta lista omite a cirurgia cosmética, o que não faria sentido atualmente. Isso mostra o progresso que foi feito na transformação da cirurgia cosmética em simplesmente uma outra forma de maquiagem em 30 anos desde que Dworkin embarcou em sua análise (Haiken, 1997). Os outros elementos opressivos de beleza que Dworkin aponta são os “vitais para a economia” e “a essência da diferenciação nos papéis masculino e feminino, a mais imediata realidade física e psicológica de ser mulher” (Dworkin, 1974, p. 112). Práticas de beleza são necessárias para que os sexos sejam diferenciados, para que a classe sexual dominante possa ser diferenciada da subordinada. Práticas de beleza criam, da mesma forma que representam, a “diferença” entre os sexos.
Sandra Bartky, que também desenvolveu suas ideias nos impetuosos dias dos anos 70 quando críticas profundas à condição da mulher incluíam uma análise da beleza, introduziu a questão do motivo pelo qual mulheres aparentemente poderiam “escolher”. Ela explica por que nenhum exercício óbvio da força é necessário para fazer as mulheres adotarem práticas de beleza. “É possível”, diz ela, “ser oprimida em maneiras que não precisam envolver privação física, desigualdade legal ou exploração econômica; pode-se ser oprimida psicologicamente” (Bartky, numa coleção de fragmentos previamente publicados, 1990, p. 23). Para apoiar o afirmado ela utiliza o trabalho do teórico anticolonial Frantz Fanon que escreveu sobre a “alienação psíquica” dos colonizados. A opressão psicológica nas mulheres, Bartky diz, consiste em mulheres sendo “estereotipadas, culturalmente dominadas e sexualmente objetificadas” (1990, p. 23). Ela explica essa dominação cultural como uma situação na qual “todos os itens na vida geral de nosso povo – nossa língua, nossas instituições, nossa arte e literatura, nossa cultura popular – são sexistas; isso tudo, em maior ou menor grau, manifesta a supremacia masculina” (1990, p. 25). A ausência de qualquer cultura alternativa na qual mulheres podem identificar uma forma diferente de ser mulher reforça práticas opressoras, “A subordinação das mulheres, dessa forma, por ser uma característica tão sutil em minha cultura, vai (se não for contestada) parecer natural – e por ser natural, inalterável” (1990, p. 25).
O alicerce dessa dominação cultural é o tratamento das mulheres como objetos sexuais e a identificação das próprias mulheres com essa condição cultural. Bartky (1990) define a prática de objetificação sexual assim: “uma pessoa é sexualmente objetificada quando seus órgãos sexuais ou funções sexuais são separadas do resto de sua personalidade e reduzidas ao status de meros instrumentos ou representados como se fossem capazes de representá-la.” (p. 26). As mulheres incorporam os valores da objetificação sexual masculina nelas mesmas. Catharine MacKinnon chama isso de ser “coisificada” na cabeça (MacKinnon, 1989). Elas aprendem a tratar seus próprios corpos como objetos separados delas mesmas. Bartky explica como isso funciona: um homem assovia, objetificando sexualmente a mulher, o que resulta em “O corpo em que eu habitava há apenas um momento com tanta facilidade agora inunda minha consciência. Eu fui transformada em objeto” (Bartky, 1990, p. 27). Ela explica que não é o suficiente para um homem simplesmente olhar secretamente para uma mulher, ele tem que fazer com que ela saiba que ele está olhando com o assovio. Ela deve “ter consciência de que eu sou uma ‘bela bunda’: Eu devo me ver como eles me veem” (p.27). O efeito desse comportamento controlador masculino é “Sujeitas ao olhar clínico do apreciador masculino, mulheres aprendem a avaliar a si mesmas antes e melhor” (Bartky, 1990, p. 28). Assim, mulheres se alienam de seus próprios corpos.
O “complexo moda-beleza”, representando os interesses corporativos envolvidos nas indústrias da moda e da beleza, segundo Bartky, assumiu o controle que era da família e da igreja de “produção central e regulação da ‘feminilidade’” (1990, p. 39). O complexo moda-beleza promove a si mesmo para as mulheres ao se dizer “glorificando o corpo feminino e promovendo oportunidades para a satisfação narcisista” mas na verdade tem como objetivo “depreciar o corpo da mulher e golpear seu narcisismo” para que ela compre mais produtos. O resultado é que a mulher se sente constantemente deficiente e que seu corpo requer “alteração ou medidas heroicas para conservação” (p. 39).
Dworkin e Bartky produziram suas críticas à beleza nos anos 70 e início dos anos 80. O mais poderoso trabalho feminista sobre beleza a ser publicado desde então, The Beauty Myth (O Mito da Beleza), de Naomi Wolf, fornece um exemplo interessante de como os tempos mudaram. Apesar de, ou talvez por causa do poder de sua crítica, Wolf sentiu que era necessário publicar, dentro de 3 anos, outro livro, Fire with Fire (Fogo com Fogo) (1993), que tirou a acidez de sua análise e a distinguiu das outras feministas radicais. Wolf argumenta que é exigido que as mulheres adotem práticas de beleza e que essa exigência tornou-se mais severa nos anos 80 como uma forma de retaliação contra a ameaça do movimento de libertação feminina e as oportunidades melhores, particularmente no trabalho, as quais as mulheres passaram a ter acesso. Como ela explica, “Quanto mais obstáculos legais e materiais são superados pelas mulheres, mais rigorosas, pesadas e cruéis imagens de beleza feminina surgem para nos afligir” (1990, p. 10). A análise de Wolf sugere que as mulheres são coagidas a adotar práticas de beleza pelas expectativas depositadas nas mulheres no ambiente de trabalho. As mulheres devem ter entrado no ambiente de trabalho em grande número nos anos 70, mas para não ameaçar os homens e para cumprir a exigência serem objetos para o deleite sexual de seus colegas homens, elas precisavam se envolver em dolorosos, caros e demorados procedimentos que não eram esperados de seus semelhantes homens se eles quisessem conseguir e manter empregos. Havia uma “qualificação estética profissional” que acompanhava a mulher no local de trabalho. Curiosamente, apesar da força da crítica de Wolf às práticas de beleza ela não as considerou como nocivas em si mesmas, mas apenas quando eram impostas ao invés de “escolhidas” pelas mulheres. Em seu último capítulo, “Beyond the Beauty Myth” (“Além do Mito da Beleza”) ela pergunta “Isso tudo significa que não podemos usar batom sem nos sentir culpadas?” (1990, p. 270); e responde “Pelo contrário”. Ela explica:
Em um mundo no qual mulheres têm escolhas reais, as escolhas que fazemos sobre nossa aparência serão encaradas ao menos como realmente são: nenhuma grande coisa.
Mulheres devem poder se enfeitar com objetos bonitos sem pensar quando não existir dúvida que nós não somos objetos. Mulheres serão livres do mito da beleza quando nós pudermos escolher usar nossas faces e roupas e corpos como uma simples forma de expressão entre tantas outras.
(Wolf, 1990, p. 274)
A análise de Wolf não sugere que exista um problema com o fato de mulheres, e não homens, terem que se envolver em práticas de beleza de forma alguma, mas que elas apenas não são livres para escolher fazer isso ou não. É essa falha em fazer as perguntas fundamentais sobre o motivo pelo qual as práticas de beleza são conectadas com as mulheres e por que qualquer mulher iria querer continuar com elas após a revolução, que faz de The Beauty Myth um livro feminista liberal ao invés de radical. Fire with Fire tornou claras suas referências liberais (Wolf, 1993). Nesse livro ela afirma que as mulheres não somente podem escolher usar maquiagem, mas também podem escolher ser poderosas. As forças materiais envolvidas na estruturação da subordinação feminina desapareceram para fazer da libertação um projeto de força de vontade individual, “Se nós não conseguirmos (…) atingir a igualdade no século XXI, será porque as mulheres escolheram em algum nível não exercer o poder que é nosso direito inato” (1993, p. 51).
A descrição de Wolf de sua clara aflição devido às reações negativas do público ao radicalismo em seu livro sobre beleza pode ser uma pista do motivo pelo qual ela mudou tão rapidamente para uma completa feminista liberal. Depois da publicação, ela disse, “Meu trabalho envolvia me relacionar, em programas de TV e rádio, com pessoas que representavam as indústrias as quais eu estava criticando. Muitas estavam, compreensivelmente, com raiva e na defensiva. Apresentadores eram muitas vezes ríspidos… Eu estava muito desconfortável” (1993, p. 238). Sua experiência foi um choque porque “Eu sempre pensei em mim mesma como acolhedora, amigável e feminina”, e “após um vigoroso debate, eu ia para casa chorar nos braços do meu parceiro”. A experiência de Wolf mostra como é difícil criticar algo tão fundamental à dominância masculina na cultura ocidental como práticas de beleza. Sua reação a isso ajuda a explicar por que ela escolheu escrever Fire with Fire logo depois disso, um livro que parece contradizer a forte mensagem de The Beauty Myth. Ela estabelece uma inofensiva forma de feminismo e critica feministas radicais. Feministas radicais que fizeram campanha contra a violência masculina tornaram-se “vitimistas” que “se identificam com a impotência”, “julgam” particularmente “a sexualidade e aparência de outras mulheres” e são “antissexuais” (1993, p. 137). Ela procura acalmar o coração masculino que deve ter ficado transtornado com The Beauty Myth proclamando, “A atenção sexual masculina é o sol sob o qual floresço. O corpo masculino é meu chão e meu abrigo, meu eterno destino” (p. 186). Wolf compensou o que ela deve ter visto como uma loucura juvenil de escrever um livro sobre beleza que ameaçasse os interesses da dominância masculina. Ela recuou para uma firme distinção público/privado que isenta a área “privada” do escrutínio político, transformando-a em uma arena para o exercício de escolha das mulheres.

CAPÍTULO 1, PARTE 2
O PESSOAL É POLÍTICO

A crítica feminista à beleza começa pelo entendimento de que o pessoal é político. Enquanto feministas liberais tendem a enxergar a esfera da vida “privada” como uma área na qual mulheres podem exercer o poder de escolha livre da política, feministas radicais como Dworkin e MacKinnon procuram romper a distinção público/privado a qual, elas argumentam, é fundamental à supremacia masculina. Essa distinção dá aos homens um mundo privado de dominação masculina no qual eles podem encarcerar energias emocionais, de trabalho doméstico, sexuais e reprodutivas das mulheres enquanto escondem as relações feudais de poder dessa esfera sob o escudo de proteção da “privacidade”. O mundo privado é defendido pelo ponto de vista da dominação masculina como o do “amor” e realização individual que não deve ser maculado pela análise política. É um mundo no qual mulheres simplesmente “escolhem” colocar suas energias e corpos à disposição dos homens, onde elas permanecem, apesar de qualquer violência ou abuso. A natureza “privada” deste mundo protegeu os homens de punição por um longo tempo pois ele era visto como fora da lei que se aplica apenas no mundo público. Assim, o estupro no casamento não era um crime segundo essa visão, e violência doméstica era apenas uma controvérsia pessoal. Críticas feministas radicais argumentam que, pelo contrário, o “pessoal”; isto é, os comportamentos desse mundo “privado”, era, na verdade, “político”. Reconhecer o “pessoal como político” permitiu que mulheres identificassem, através de grupos de conscientização e troca de experiências, que o que elas consideravam ser suas próprias falhas pessoais, como odiar suas barrigas gordas ou fingir dor de cabeça quando queriam evitar intercurso sexual sem que seu parceiro ficasse com raiva, não eram apenas experiências individuais. Eram experiências comuns entre mulheres, construídas a partir das relações desiguais de poder do chamado mundo “privado”, e muito políticas na verdade. O mundo “privado” foi reconhecido como base do poder que os homens exibiam no mundo “público” do trabalho e do governo. O poder público e realizações dos homens, seu status de cidadania (Lister, 1997), dependiam dos serviços que recebiam das mulheres em casa. As mulheres não apenas forneciam esse pano de fundo vital à dominância masculina como não contavam com uma classe de pessoas que fizessem o mesmo por elas, dessa forma elas estavam em dupla desvantagem na esfera pública em comparação com os homens. O conceito de que o pessoal é político permitiu que as feministas entendessem as formas pelas quais os mecanismos de dominância masculina penetravam em suas relações com homens. Elas puderam reconhecer como a dinâmica de poder da dominância masculina transformou a heterossexualidade em uma instituição política (Rich, 1993), construiu a sexualidade masculina e feminina (Jeffreys, 1990; Holland et al., 1998) e os sentimentos das mulheres sobre seus corpos e sobre elas mesmas (Bordo, 1993).

“NOVO” FEMINISMO

O feminismo radical, que identificou os mecanismos de dominância masculina nas vidas de mulheres, sempre foi antagonizado por variedades do feminismo que buscavam privatizar e despolitizar a sexualidade e as práticas de beleza. Nos anos 80, por exemplo, havia um movimento para isolar a sexualidade da crítica feminista radical tanto por feministas “liberais” como por feministas socialistas (Vance, 1984). Nos anos 90 houve uma onda de publicações de editoras mainstream, que não estavam tão entusiasmadas para publicar trabalhos feministas radicais, de livros que diziam incorporar um feminismo “novo”, “poderoso” ou “sexy” (Wolf, 1993; Roiphe, 1993). Esses livros tinham em comum o repúdio furioso ao feminismo radical e à noção de que o pessoal era político. Eles buscavam a despolitização radical do sexo e da vida “pessoal”. O “novo” feminismo argumentava que as mulheres haviam atingido enormes avanços no final do século XX em direção a oportunidades iguais as dos homens no mundo público do trabalho. Esse “novo” feminismo foi influenciado pelo individualismo liberal americano radical como mostra um livro de 1986 que argumentava que a “justiça de gênero” somente poderia ser atingida completamente através da facilitação das escolhas das mulheres com a remoção de barreiras para que “indivíduos tivessem a oportunidade de escolher” (Krip et al., 1986, p. 133). No “novo” feminismo as vidas privadas das mulheres eram simplesmente o resultado da “escolha” e deveriam estar fora dos limites da análise ou ação feminista. Um exemplo britânico dessas “novas” feministas é Natasha Walter. Ela explica que pode aprender com “ícones culturais” como Madonna sobre a independência e a sexualidade das mulheres. A contribuição de Madonna na criação de um novo e sexualizado feminismo coberto por costumes e práticas da pornografia será discutida mais adiante. O “novo feminismo” de Walter é baseado na firme reafirmação da linha entre o pessoal e o político. O pessoal, que deveria ser isento da crítica política, cobriu “vestido e pornografia”. O problema com o feminismo, ela diz, é que ele “buscou direcionar nossas vidas pessoais em todos os níveis” (Walter, 1999, p. 4) e esse “novo feminismo deve desfazer a estreita ligação que o feminismo nos anos 70 fez entre nossas vidas pessoais e políticas” (p. 4). Mulheres estavam agora livres em suas vidas pessoais pois “A maioria das mulheres se sente livre, mais livre do que suas mães se sentiam. A maioria das mulheres pode escolher o que vestir, com quem passar sua vida, onde trabalhar, o que ler, quando ter filhos” (1999, p. 10). Ela concorda com Naomi Wolf (1993) que o que as mulheres realmente precisam é o “poder” que vem quando elas ganham mais. Quando elas tiverem “poder” elas irão aparentemente manter o desejo de “passar o tempo depilando suas pernas ou pintando as unhas” (Walter, 1999, p. 86) mas as feministas se sentirão mais “relaxadas” quanto a isso. Mulheres vão poder tolerar a “real, muitas vezes perversamente agradável relação que elas tem com suas roupas e seus corpos” sem que sejam obrigadas a se sentirem culpadas pelo feminismo puritano (p. 86). Em relação a beleza, Walter tem uma visão similar a dos libertários americanos acima, “Respeito pela escolha individual, embora suas origens sejam misteriosas, é uma condição necessária à justiça social” (Krip et al., 1986, p. 15). Em outras palavras o contexto no qual as “escolhas” são feitas é menos importante do que a oportunidade de explorá-las. Evitar a interrogação racional sobre o mistério de tais “escolhas” e prazeres ao qual a maioria dos homens parece ser impune, e o que elas podem significar para as vidas das mulheres, transforma as práticas de beleza em um aspecto do mundo natural além do interesse político. O equivalente americano a esse tipo de feminismo liberal é The Lipstick Proviso (A condição do batom) (1997), de Karen Lehrman, que argumenta que maquiagem é totalmente compatível com feminismo. Lehrman considera que houve um retorno à feminilidade nos Estados Unidos, tal que “Nos anos recentes muitas mulheres também retornaram a práticas que foram pensadas para subsidiar a opressão masculina. Elas estão vestindo roupas provocativas e saltos altos novamente, pintando seus rostos e unhas, tratando sua pele e cabelos de acordo com os mais recentes estilos e novidades” (1997, p. 8). Feministas, ela diz, precisam aprender a respeitar as escolhas das mulheres – de vestir sensuais vestidos Galliano a permanecer em casa para criar seus filhos” (1997, p. 13). Ela culpa a falha das mulheres em exercitar seu poder pessoal por sua opressão. Mulheres deveriam parar de se autodestruir e parar de “se fazer de vítimas” (p. 41). Beleza, ela diz, é “uma realidade, um presente de Deus, da natureza ou de um gênio que, em certa medida, transcende a cultura e a história” (p. 68). Alinhada a sexólogos e sociobiólogos tradicionais ela argumenta que mulheres e homens merecem a beleza porque ela é necessária à reprodução. Mulheres querem ser escolhidas, e homens são programados para escolher mulheres “lindas”. Lehrman sugere que “beleza”, em forma de sensualidade, dá às mulheres poder que elas podem usar para progredir. O poder deriva de “vestir roupas sensuais”. As mulheres “se enfeitam” ela diz, “porque a sexualidade é uma forma de poder, uma força, um recurso… A diferença agora é que ela não é o único poder das mulheres” (1997, p. 94). Mulheres não são, ela afirma, “vitimizadas por dietas, exercício, modelos de beleza, designers de moda, saltos altos, maquiagem, elogios” (p. 23). O problema para as mulheres, surpreendentemente, é que há uma intromissão na santidade de suas vidas pessoais, não apenas pelo governo mas por algo chamado “sociedade” que “inclui as teóricas feministas” (p.23). O livro The Survival of the Prettiest (A sobrevivência das mais bonitas)(2000) de Nancy Etcoff, expressa sentimentos quase idênticos. A beleza é inevitável e universal, um “instinto básico” (Etcoff, 2000, p. 7). Etcoff tem um cruel diagnóstico para aqueles, como as críticas feministas da beleza, que falham em responder a “beleza física”. Essa falta de resposta é “um sinal de intensa depressão” (2000, p. 8). Homens inevitavelmente respondem a “jovens atraentes” por causa de um “imperativo reprodutivo”. Ela concorda com Lehrman que mulheres podem atingir “poder” através de práticas de beleza porque “é possível que mulheres possam cultivar a beleza e usar a indústria da beleza para otimizar o poder que a beleza traz, não?” (Etcoff, p. 4). Essas feministas liberais não reconhecem as forças que restringem e podem até eliminar o poder de escolha das mulheres. Elas não consideram as limitações do “prazer” e do “poder” que as práticas de beleza oferecem, ou as maneiras com as quais contribuem para a condição de subordinação das mulheres. Assim elas podem proteger a permanência da objetificação sexual de mulheres na cultura.

Heading CAPÍTULO 1, PARTE 3 A VIRADA CULTURAL

O fortalecimento do feminismo liberal é só um aspecto da agitação na maneira com a qual se podia falar em opressão que ganhou espaço nos anos 80 e 90. Uma mudança se fez na academia também. O movimento em direção à ênfase na capacidade de escolha e agência das mulheres sobre formas de coerção que causavam o envolvimento feminino em práticas de beleza é um aspecto do controle pós-moderno sobre o pensamento de esquerda que Frederic Jameson chamou “a virada cultural” (Jameson, 1998). O pensamento pós-moderno rejeita a noção de que existe algo como uma classe dominante que pode criar ideias dominantes. Teóricos do marxismo cultural que rejeitaram o pós-modernismo, como Frederic Jameson e Terry Eagleton, explicam que esse conjunto de ideias emergiu para servir a um estágio particular da história do capitalismo. Eagleton, por exemplo, argumenta que o pós-modernismo se enraizou em resposta a uma falha percebida da esquerda, e a morte, entre vários de seus membros, de qualquer ideia de revolução ou mudança social séria (Eagleton, 1996). Eagleton convida seus leitores a imaginar que um movimento político sofreu uma derrota histórica:

A suposição governante de tal época, alguém pode imaginar, seria que o sistema em si fosse intransponível… daí surgiria um interesse nas margens e brechas do sistema… O sistema não poderia ser superado; mas poderia ao menos ser momentaneamente transgredido… Fascinado pelas falhas, alguém poderia até mesmo pensar que não há um núcleo social afinal de contas.

(Eagleton, 1996, p. 2)
Em particular o controle do pós-modernismo sobre o pensamento crítico significou o descarte da noção de ideologia porque essa noção implica que existam coisas como agentes ou interesses responsáveis pela opressão. A teórica feminista radical australiana Denise Thompson argumentou poderosamente para manter o conceito de ideologia para a teoria feminista. Ela responde o que considera ser mistificação pós-moderna assim: “abandonar os conceitos de ‘agentes e interesses’ é abandonar política. Se não existem ‘agentes’, não existem autores e beneficiários das relações de dominação, e ninguém cuja agência humana é bloqueada por interesses poderosos” (Thompson, 2001, p. 23). Thompson critica o efeito que esse abandono do conceito de ideologia exerce sobre a teorização feminista da cultura popular. Uma compreensão importante de teóricos culturais pós-modernos é que há pouco a escolher entre baixa e alta cultura, de forma que as novelas e algumas vezes os filmes pornográficos acabam sendo vistos em pé de igualdade de valor com outros produtos culturais. Essa crença está atrelada à noção de que os consumidores dessa cultura popular são bem informados e sábios imbuídos de agência e escolha, podendo selecionar e rejeitar entre a miscelânea de ofertas em interesse próprio. Thompson mostra o problema dessa tendência no trabalho de Michele Barrett, uma teórica feminista socialista britânica, segundo a qual o socialismo tem sido ultrapassado pelo pós-modernismo. Barrett critica teóricas feministas por se referirem a “fenômenos culturais como novelas, ficção de realeza ou romântica” como representantes de uma ideologia subordinadora para mulheres porque, como Barrett diz, esta ignora o “entusiasmo apaixonado de muitas mulheres para os produtos nos quais elas são tidas como vítimas” (citado em Thompson, 2001, p. 24).
Beleza e Misoginia pode se encaixar bem nesses escritos feministas que estão sendo criticados porque eu estou argumentando aqui que ideologias de beleza e moda como as que circularam na cultura popular subordinam as mulheres, independente do quão apaixonadamente essas mulheres possam aderir a eles e cortar seus corpos em resposta. Na verdade, como Thompson diz, “entusiasmo apaixonado é a forma com que a ideologia deve operar se quiser operar” (2001, p. 24). Thompson sugere que o “único critério para julgar se algo é ideológico é se reforça ou não relações de poder” (p. 25). Testar o reforço das relações de poder é útil para a análise práticas de beleza como maquiagem, moda e labioplastia que são examinadas neste livro.
A “virada cultural” entrou na disciplina de estudos das mulheres também. Ideias pós-modernas tornaram-se dominantes na maneira pela qual a opressão e a sexualidade das mulheres puderam ser pensadas e descritas na academia. A tomada de controle das compreensões pós-modernas, combinada ao declínio da força do feminismo e outros movimentos sociais por mudança radical, enfraqueceu a crítica feminista à beleza. A ênfase no trabalho de algumas pesquisas feministas mudou de examinar como as práticas de beleza atuam na opressão e nos danos a mulheres para a questão de como as mulheres podem aproveitar essas práticas e ser empoderadas por elas. (Davis, 1995; Frost, 1999).
Algumas pesquisadoras feministas consideraram as ideias de um teórico “pós-moderno”, Foucault, úteis para abordar as complexidades da construção das “subjetividades” feminimas ou compreensões delas mesmas. Tanto Susan Bordo (1993) quanto Sandra Bartky (1990) usam abordagens Foucaultianas para explicar a forma pela qual mulheres são sujeitas ao regime da beleza na medida em que se envolvem em auto-policiamento. Entretanto, como Bordo aponta, o problema com a adoção de ideias pós-modernas em geral é que elas levam alguns escritores a desconsiderar a materialidade de relações de poder. Bordo identifica os exageros e adaptações de Foucault que ela considera “deturpação” inútil, porque elas tornam difícil que muitas pensadoras feministas identifiquem as ações das mulheres no contexto das relações de poder. Ela diz sobre “subjetividade pós-moderna libertada” que, “Essa abstrata, deslocada, desencarnada liberdade… celebra a si mesma apenas através do enfrentamento da práxis material das vidas das pessoas, do poder normalizador de imagens culturais, e da triste continuidade social da realidade da dominância e subordinação” (Bordo, 1993, p. 129). Ela sugere que teóricos dos estudos culturais pós-modernos podem ter sido capturados pelo zeitgeist dos próprios programas de entrevistas da televisão que podem ser objetos de sua análise. A trivialidade e superficialidade de tais formas culturais têm sido absorvidas pela crítica cultural e substancialmente desradicalizaram sua análise:
Todos os elementos do que eu aqui chamei euforia da “conversação pós-moderna” com a escolha individual e prazer criativo são satisfeitos com o tempero da particularidade e da desconfiança do padrão e da aparente coerência, celebração da “diferença” junto com uma ausência da perspectiva crítica diferenciando e pesando “diferenças,”… tornaram-se reconhecíveis e familiares elementos de muito do discurso intelectual contemporâneo.

(Bordo, 1993, p. 117)
Ela critica um “pós-modernismo acadêmico comemorativo” que tornou “muito ultrapassado – e ‘totalitário’ – falar sobre o controle da cultura sobre o corpo” (Bordo, 1993, p. 117). Os “totalizadores” são vistos como quem representa “sujeitos ativos e criativos como ‘massa de manobra,’ ‘tolos passivos’ da ideologia” e como quem enxerga a ideologia dominante como “coerente e inequívoca, ignorando tanto suas brechas que estão continuamente permitindo a erupção da ‘diferença’ quanto a polissêmica, instável e aberta natureza de todos os textos culturais” (Bordo, 1993, p. 117).
O efeito da virada cultural nas ideias feministas sobre beleza tem três faces: As mulheres são vistas como tendo escolha e agência em relação a práticas de beleza, ou mesmo empoderadas por elas. Mulheres são representadas como tendo o poder de “brincar” com práticas de beleza porque ao invés de opressivas elas podem agora ser interpretadas como divertidas. Revistas de moda e cultura popular são reintepretadas como fascinantes recursos a partir dos quais meninas e mulheres podem ser inspiradas e criativas ao invés de exercerem papel no reforço da ideologia dominante.
O trabalho de Kathy Davis é um bom exemplo de como a uma teórica feminista influenciada pela virada cultural aplica o assunto com a demonstração da agência feminina em práticas de beleza (Davis, 1995). Ela pesquisou os motivos pelos quais mulheres se submeteram a cirurgia de aumento de seios na Holanda, e explica que está determinada a não representar suas entrevistadas como “massa de manobra” que simplesmente assimilaram as mensagens negativas da cultura da beleza sobre a inferioridade do corpo feminino. Ela diz que a cirurgia é “uma intervenção na identidade” que pode permitir uma mulher a “abrir a possibilidade de renegociar sua relação com o próprio corpo e construir um diferente senso de si” (Davis, 1995, p. 27). Davis diz que a cirurgia cosmética nos seios “tira o poder” do “aprisionamento da objetificação”. Ela pode “fornecer uma via na direção da qual pode-se tornar um sujeito com um corpo ao invés de um corpo objetificado” (1995, p. 113). No final de seu livro, Davis leva a noção do respeito à agência das mulheres a novos extremos ao argumentar que a cirurgia cosmética é um meio par atingir moral e só tem resultado em mulheres, “Cirurgia cosmética é sobre moralidade. Para uma mulher cujo sofrimento foi além de um certo ponto, a cirurgia cosmética pode se tornar uma questão de justiça – a única coisa justa a se fazer” (1995, p. 163).
Liz Frost é um expoente dessa abordagem em relação a maquiagem. Ela descreve a atividade de “montar looks” como algo “que não pode ser evitado” (Frost, 1999, p. 134); isto é, natural e inevitável. Ela não vê a necessidade de “montar looks” como ideológica ou a serviço da dominância masculina. Ela zomba de teóricas feministas por serem críticas à prática, fazendo mulheres se sentirem culpadas e ambivalentes. Tal negatividade, ela argumenta, está alinhada à religião do patriarcado que diz que as mulheres não podem ser vaidosas. Ela vê “montar looks” como uma fonte de prazer para mulheres bem como de empoderamento. Ela usa conceitos pós-modernos para argumentar que “montar looks” é de vital necessidade para mulheres:
Para que mulheres se sintam poderosas e no controle, para sentir um senso de agência e competência (o que, eu diria, é essencial para a saúde mental), montar looks não pode mais ser visto como um opcional extra, mas como um processo de identificação central que pode oferecer significados como prazer, expressão criativa e satisfação fazendo com que mulheres possam se apropriar de um espaço discursivo para contradizer os discursos silenciadores de vaidade, anormalidade, superficialidade e não pertencimento.

(Frost, 1999, p. 134)
Para Frost a crítica feminista a práticas de beleza atrapalha a prazerosa agência feminina em usar batom.
A ideia de que a beleza feminina e as práticas de moda podem ser divertidas ao invés de opressivas deve algo às ideias de Judith Butler sobre “performatividade”. Butler argumenta em Gender Trouble (Problemas de Gênero) (1990) que o gênero é socialmente construído através da realização diária de rituais que o constituem, “Gênero é a repetida estilização do corpo, um conjunto de atos repetidos sob uma estrutura altamente reguladora solidificada ao longo do tempo para produzir a aparência de substância, de existência natural” (1990, p. 33). A ideia de que o gênero é socialmente construído não é nova para o feminismo, sendo fundamental para a compreensão feminista. Muito do entusiasmo associado a seu trabalho vem da forma com que foi interpretado por teóricos queer e ativistas ao dizer que a performance do gênero por atores além dos usuais, como em drag por exemplo, é uma tática revolucionária porque demonstra o fato de que o gênero é socialmente construído. Seu trabalho tem sido inspiração para todo o projeto cultural queer de brincar com e trocar papéis de gênero entre atores que enxergam a si mesmos como agentes de trabalho político quando usam os aparatos de um gênero em um corpo usualmente associado ao oposto. Butler argumentou que essa interpretação de seu trabalho – que gênero pode estar sujeito à escolha individual – é incorreta. Em resposta ela escreveu Bodies that Matter (Corpos que importam) (1993), argumentando que a performance de gênero é na verdade o resultado de coerção e não está aberta a fácil manipulação,
Se gênero não é um artifício a ser adotado ou descartado de qualquer jeito e, dessa forma, não é um efeito de escolha, como podemos compreender o constitutivo e compulsório status das normas de gênero sem cair na armadilha do determinismo cultural?

(Butler, 1993, p. x)
Apesar de Butler argumentar que foi mal intepretada, é precisamente essa aparente má interpretação que foi adotada por teóricos queer para argumentar que drag, troca de gênero, transgeneridade e até mesmo sadomasoquismo, podem ser formas revolucionárias de brincar com gênero e dessa forma dificultam a teorização de feministas sobre as práticas de beleza de forma séria.
O trabalho de Ruth Holliday sobre moda é um exemplo dessa abordagem despreocupada da teoria queer. Em um trabalho intitulado “Fashioning the Queer Self” ela argumenta que:
A moda pós-moderna coloca aspas em volta das roupas que revitaliza, permitindo que sejam relidas em um espaço de distância irônica entre quem veste e o traje. Isso abre um espaço para “brincar” com a moda que é a antítese de ser vítima dela, e dessa forma os argumentos feministas sobre a regulação dos corpos femininos através da moda declinam em importância.

(Holliday, 2001, p. 218)
Nem todos podem notar as aspas, entretanto, quando veem as mesmas velhas diferenças de gênero nas roupas apesar do fato de que os jogadores as “revitalizaram” através da inspiração pós-moderna.
O trabalho de Angela McRobbie (1997) é um exemplo de outro produto da “virada cultural”, a ideia de que a cultura popular não deve ser vista como ideológica mas como algo que apresenta recursos úteis para a criatividade e agência das mulheres. McRobbie é da escola de estudos da cultura pós-moderna que tenta ser incansavelmente positiva sobre a relação de mulheres e meninas com a cultura e argumenta que mulheres não são “massa de manobra” mas trabalha o conteúdo da moda e das revistas de moda, interpretando o que poderia ser visto como mensagens da cultura patriarcal em formas empoderadoras, criativas e diversas. Além disso, ela argumenta, revistas de jovens mulheres estão na verdade envolvidas com práticas pós-modernas tais como “paródia” e “reprodução” e “ironia” e “os leitores entendem a piada” (McRobbie, 1997). Jovens garotas lendo More e 19 não estão apenas internalizando os roteiros patriarcais nas revistas mas usando-os criativamente.
Essas revistas para jovens mulheres contém quantidades crescentes de conteúdo sexual, instruções para jovens mulheres sobre o que fazer no sexo e como lidar com problemas sexuais. Esse conteúdo sexual distingue essas revistas contemporâneas das de décadas passadas. McRobbie chama isso de “novas sexualidades em revistas de meninas e mulheres” (1997). Ela escreve sobre como as meninas gostam desse conteúdo sexual porque elas tem “identidades sexuais de busca por prazer” (1997, p. 200). Ela diz que feministas estão erradas em desprezar essas revistas porque tantas centenas de milhares de jovens meninas gostam delas, e argumenta que as revistas tem “trazido o feminismo à bordo” (1997, p. 207) e então feministas não podem condená-las de cara. Ela conclui um artigo sobre essas “novas sexualidades” adotando a linha pós-moderna que não existe algo como a verdade, e as feministas precisam aceitar que “Talvez é apenas estando disposto a deixar pra lá e abdicando desse poder sobre a verdade, que o feminismo adquire um importante lugar nas revistas” (McRobbie, 1997, p. 208). Feminismo pode significar qualquer coisa, desde que consigamos ler ironia, paródia e representação no que poderia de outra forma parecer uma ideologia patriarcal comum.
Infelizmente a pesquisa de cientistas sociais feministas sobre o que está realmente acontecendo com jovens mulheres e meninas em relações heterossexuais não dá suporte ao exaltado entusiasmo dos incansavelmente positivos estudos culturais pós-modernos. Os modernos, pós-marxistas estudos culturais do presente podem ficar entediados pela atenção à realidade material que diz respeito aos cientistas sociais, mas a pesquisa sobre a experiência de meninas sugere que eles estão longe da “busca pelo prazer” e certamente não são empoderadas. Elas são controladas em suas relações com meninos pelo “homem na cabeça” (Holland, et al., 1998). A pesquisa de Lynn Phillips sobre mulheres jovens e heterossexuais concluiu que elas estavam tendo que aprender a separar a mente e o corpo para permanecerem em controle de seus encontros sexuais e fazendo sexo como uma performance para o prazer sexual masculino ao invés de satisfazerem desejos próprios. (Phillips, 2000).
Phillips concluiu que experiências sexuais violentas eram comuns entre mulheres jovens que ela entrevistou no final dos anos 90. Na verdade, 27 das 30 mulheres “descreveram pelo menos um encontro que preenche as definições legais de estupro, agressão ou assédio” (2000, p. 7). Mas, apesar do fato de que muitas estavam em cursos de estudos de mulheres e apesar do trabalho de feministas por 20 anos desafiando o estupro e tentando tornar possível para mulheres reconhecer e desafiar a violência contra elas, “apenas duas mulheres usaram tais termos para descrever experiência pessoal” (Phillips, 2000, p. 7). Uma razão, ela sugere, é que jovens mulheres hoje em dia foram criadas para acreditar em seu próprio poder e agência, precisamente aquela que a teoria dominante de estudos culturais atribui a elas, e isso dificulta o reconhecimento do estupro:
Embora estudiosas feministas possam falar de dominação masculina e vitimização feminina como um fenômeno óbvio, mulheres mais jovens, criadas para acreditar em sua própria independência, invulnerabilidade e no sexo como um direito conquistado, podem não adotar tão prontamente tais conceitos, mesmo que elas tenham sido estupradas, assediadas e agredidas por homens.

(Phillips, 2000, pp. 10-11)

Liz Frost, a escritora que vimos anteriormente declarando que “montar looks” era um “processo de identificação central” positivo para mulheres, em outro trabalho forneceu boas evidências do motivo pelo qual mulheres “montam looks” que se relaciona claramente com opressão. Em um livro sobre a relação de jovens garotas com seus corpos, ela argumenta que pode-se dizer que jovens mulheres no ocidente sofrem de “ódio ao corpo” (Frost, 2001, p. 2). Ela aponta que apesar de ser esperado que as mulheres que estejam perdendo a habilidade de representar o ideal de beleza feminina através da idade possam ser mais vulneráveis ao ódio ao corpo, são na verdade as mais jovens que sofrem mais. Ela diz que os corpos das mulheres são “inferiorizados – estigmatizados… em uma abrangente ideologia patriarcal. Por exemplo, biologicamente e psicologicamente, os corpos das mulheres são vistos como tanto desprezíveis em seu estado natural quanto inferiores aos corpos masculinos” (2007, p. 141). O ódio ao corpo é manifestado em autoflagelação e esse dano está se tornando mais e mais sério tanto em jovens mulheres quanto em jovens lésbicas e homens gays. Uma das entrevistadas de Frost, quando perguntada “Existe alguma jovem mulher que esteja feliz com o corpo?” respondeu, “Bem, se existe, eu não conheço!” (2001, p.154). Bullying, nos relatos das jovens mulheres, exerceu um grande papel criando as agoniantes relações que elas tinham com seus corpos. A humilhação constante de meninas devido à aparência por parte de seus colegas de escola parece ser um elemento na criação do ódio ao corpo. Uma entrevistada explica que isso leva a meninas meticulosamente tentando melhorar suas aparências com práticas de beleza como maquiagem. Essa “montagem de looks” que Frost celebra pode ser vista, apesar de ela não fazer essa conexão, como uma forma de amenizar a vergonha e o desespero que uma cultura dominada por homens cria em mulheres. A cultura em que jovens mulheres ocidentais crescem não é tão diversa e aberta a brincadeiras como alguns estudiosos e teóricos queer sugerem.

CAPÍTULO 1, PARTE 4 DIFERENÇA/DEFERÊNCIA SEXUAL

A cultura ocidental é fundamentada na noção da diferença sexual: a ideia de que existe uma diferença essencial entre homens e mulheres, expressa nos comportamentos de masculinidade e feminilidade e suas práticas concomitantes. Isso é tão dominante e onipresente, deixando pouco espaço para alternativas, que a ideia de que mulheres podem positivamente “escolher” as práticas que expressam essa diferença faz pouco sentido. A cultura ocidental, como quaisquer outras culturas de dominância masculina, exige que a “diferença” seja publicamente demonstrada. Por esse motivo a diferença é considerada como verdade. Esse é o mito mais persistente e difícil de desafiar. A prática dos diferentes comportamentos masculino e feminino por homens e mulheres é baseada na ideia de que existe algo como “diferença sexual”. Teóricas feministas francesas como Monique Wittig (1996) e Colette Guillaumin (1996) argumentam fortemente que essa diferença é política e representa a base da dominação masculina. Diferença sexual é geralmente explicada pela biologia como se existissem claramente dois sexos biologicamente distintos que exibem diferenças biologicamente criadas de comportamento e aparência. Teóricas feministas de várias disciplinas apontaram a esmagadora força com a qual, nos últimos 30 anos, os “papéis sexuais”, agora mais usualmente chamados “gênero”, são culturalmente construídos e essa análise social construcionista mais recentemente foi estendida à ideia do sexo biológico em si (Delphy, 1993). O fenômeno da intersexualidade, no qual características sexuais secundárias, hormônios e/ou estrutura genética pode incorporar elementos de ambos os supostamente distintos sexos biológicos, fortaleceu a ideia de que a noção de dois sexos é política. A ideia de dois sexos resulta da necessidade de uma cultura de dominância masculina ser capaz de identificar membros da classe dominante de homens e da subordinada classe de mulheres ao colocar bebês em uma das duas categorias ao nascer. Os gêneros da dominância masculina e da subordinação feminina são então impostos sobre os que ocupam a categoria apropriada. A “diferença” entre homens e mulheres é criada em e pela cultura mas é considerada natural e biológica. A grande dificuldade que tantas mulheres e homens têm em enxergar feminilidade e masculinidade como socialmente construídas ao invés de naturais, atesta a força e a potência da cultura. A teórica feminista francesa Colette Guillaumin explica a dificuldade com essa ideia cultural de que mulheres são “diferentes” (Guillaumin, 1996). Se mulheres são “diferentes” então deve ter algo do qual elas se diferem. Acontece que esse algo são “homens” que não têm outro algo do qual se diferem, eles apenas são. Apenas mulheres são entendidas como diferentes, “Homens não diferem de nada… Nós somos diferentes – é uma característica fundamental…Nós conseguimos a proeza gramatical e lógica de ser diferentes sozinhas. Nossa natureza é a diferença” (Guillaumin, 1996, p. 95). Mulheres são, de fato, entendidas como “diferentes” dos homens de várias formas, “delicadas, bonitas, intuitivas, irracionais, maternais, de corpos não musculares, a quem falta um caráter estabelecido”, como Guillaumin coloca (1996, p. 95). Mas o mais importante é que mulheres são entendidas como diferentes dos homens por ser tanto potencialmente “lindas” quanto por ser interessadas em beleza e entusiastas de dedicar enormes quantidades de tempo, dinheiro dor e estresse emocional para ser “lindas”. Isso é assumido na cultura ocidental como “natural” das mulheres e o mais universal símbolo da diferença das mulheres em relação aos homens.

A ideia da diferença sexual biológica é o maior obstáculo ao reconhecimento de que homens e mulheres na verdade existem em relação um ao outro em posições de dominância e subordinação. Como outra feminista francesa, Monique Wittig, coloca, “A ideologia da diferença sexual funciona como censura em nossa cultura mascarando, com base na natureza, a oposição social entre homens e mulheres” (Wittig, 1996, p. 24). A diferença sexual é criada por um sistema de dominação como em qualquer sistema de dominância masculina. “Os mestres explicam e justificam as divisões estabelecidas como resultado de diferenças naturais” (p. 24). Wittig argumenta que os conceitos “homem” e “mulher” são categorias políticas e seriam abolidos em uma luta de classes entre homens e mulheres se as mulheres tivessem sucesso. Mas mulheres não se envolvem nessa luta de classes. Elas não reconhecem que são dominadas porque as “oposições (diferenças) parecem como dadas, como se já estivessem lá, antes de qualquer pensamento” (1996, p. 25). Wittig cita Marx e Engels quando afirma que a classe dominante de “qualquer época” é “ao mesmo tempo a força intelectual dominante” e as ideias de qualquer tempo são as ideias dessa classe dominante (1996, p. 26) É a dominância da classe política de “homens”, de acordo com Wittig, que ensina às mulheres que “existe, antes de qualquer pensamento, qualquer sociedade, ‘sexos’ (duas categorias dentro das quais indivíduos nascem) com uma diferença constitutiva”, que é tanto metafísica quanto “natural” e adotada no pensamento marxista na forma da divisão sexual do trabalho. Essa ideia “esconde o fato político da subjugação de um sexo pelo outro” (Wittig, 1996, p. 26).
A categoria sexual na qual humanos são colocados é a base da heterossexualidade compulsória (Rich, 1993) e “funda a sociedade como heterossexual” (Wittig, 1996, p. 27):
A categoria do sexo é a que dita como “natural” a relação que está na base da (heterossexual) sociedade e através da qual metade da população, mulheres, é “heterossexualizada” (a concepção de mulheres é como a concepção de eunucos, a marcação de escravos, de animais) e submetida a uma economia heterossexual.
(1996, p. 27)
O propósito dessa heterossexualidade compulsória é permitir que homens “se apropriem da reprodução e produção de mulheres, bem como suas pessoas físicas por meio de um contrato chamado contrato de casamento” (p. 27).
A análise de Wittig das exigências de “categoria sexual” para mulheres é útil para entender as práticas de beleza. Ela explica que mulheres são transformadas em sexo.
A categoria sexual é o produto da sociedade heterossexual que transforma metade da população em seres sexuais. Não importa aonde estejam ou o que façam (incluindo trabalhos no setor público), elas são vistas como (e convertidas em) sexualmente disponíveis para homens, e seus seios, nádegas, trajes, devem ser visíveis. Elas devem vestir sua estrela amarela, seu sorriso constante, dia e noite.
(Wittig, 1996, p. 28)
Wittig sugere que nós vemos essa disponibilidade forçada a todas as mulheres, casadas ou não, como “um período de serviço sexual forçado, um serviço sexual que podemos comparar ao militar, e que pode variar entre um dia, um ano ou vinte e cinco anos ou mais”. São as práticas de beleza que marcam mulheres como as que preenchem os requerimentos de sua “corvéia” sexual; isto é, o trabalho que os camponeses devem exercer para os donos das terras sem pagamento. As práticas de beleza dão prazer aos homens, permitem sua excitação sexual, no escritório, na rua, no cinema, no quarto. Homens não habitam a categoria sexual que as mulheres habitam. Homens são muito mais do que sexo, “a categoria sexual… está ligada a mulheres, por isso elas não podem ser percebidas fora dela. Apenas elas são sexo, o sexo, e é em sexo que são transformadas em suas mentes, corpos, ações, gestos” (Wittig, 1996, p. 28).
A ideia de que mulheres são sexo foi bem descrita no trabalho de cientistas homens, os sexólogos do século XX que exerceram importante papel em dar a “categoria de sexo” para mulheres uma base oficial na ciência e na medicina. O importante sexólogo Iwan Bloch, cita em The Sexual Life of Our Time – A vida sexual de nosso tempo (1909) um autor o qual, ele diz, “caracterizou bem a esfera sexual estendida da mulher”
Mulheres são de fato puro sexo dos joelhos ao pescoço. Nós homens concentramos nossos aparatos em um único espaço, nós extraímos isso, separadamente do resto do corpo, porque vem pronto. Elas são uma superfície ou alvo sexual; nós temos apenas uma flecha sexual.
(citado em Jeffreys, 1985, p. 138)
A criação da diferença sexual através das práticas de beleza é essencial para dar aos homens a satisfação sexual que eles ganham conforme realizam as tarefas de seu dia quando reconhecem “mulher” e sentem seus pênis se encherem de sangue. Isso pode soar como um exagero da forma de pensar e se comportar dos homens mas alguns estão preparados para expressar isto claramente. J. C. Flugel em seu Psychology of Clothes – Psicologia das Roupas (1930/1950) apresenta ousadamente a razão pela qual se exige que mulheres se vistam de forma diferente dos homens:
A grande maioria do nós sem dúvida irá… admitir francamente que… não podemos encarar a expectativa de abolir o presente sistema de constante estimulação – um sistema que garante que sejamos alertados mesmo à distância sobre o sexo de um ser que se aproxima, para que não precisemos perder a oportunidade de experienciar em qualquer grau os incipientes estágios de resposta sexual.
Parece não haver escapatória da visão de que o propósito fundamental de adotar uma vestimenta distinta para os dois sexos é para estimular o instinto sexual.
(p. 201)

Emmanuel Reynaud, autor de Holy Virility – Santa Virilidade, oferece uma explicação sobre a diferença na vestimenta que apoia a ideia de que ela serve à satisfação sexual masculina, “Ela deve mostrar as pernas e tornar sua vagina acessível, enquanto um homem não tem que revelar suas panturrilhas para oferecer fácil acesso a seu pênis” (Reynaud, 1983, p; 402). Práticas de beleza mostram que mulheres são obedientes, dispostas a fazer seu serviço, e se esforçar nesse serviço. Elas mostram, eu afirmo, que mulheres não são simplesmente “diferentes” mas, mais importante, “deferentes”. A diferença que a mulher deve incorporar é a deferência. A maneira pela qual é exigido que se manifeste diferença/deferência sexual pode variar consideravelmente entre sociedades dominadas por homens, mas não existe evidência de que existam quaisquer sociedades nas quais a diferença/deferência sexual seja irrelevante ou a ordem social da dominância masculina esteja fundada em outra coisa que não essa diferença. Como a dominância masculina teria existência sem um claro sinal de diferença que define quem é a classe dominante e quem não? Em sociedades ocidentais isso é expressado na exigência que mulheres criem “beleza” através de roupas que devem mostrar grandes áreas de seus corpos para a excitação masculina, através de saias (apesar de esta não ter sido uma regra tão universal como era há 20 anos), através de roupas apertadas, através de maquiagem, penteados, depilação, exibição de características sexuais secundárias ou sua criação por cirurgia e através da linguagem corporal “feminina”. Mulheres devem praticar feminilidade para criar a diferença/deferência sexual. Mas a diferença é de poder, e a feminilidade é o comportamento exigido da classe subordinada de mulheres para mostrar sua deferência à classe dominante de homens.

FEMINILIDADE COMO O COMPORTAMENTO DE SUBORDINAÇÃO

As práticas de beleza nas quais mulheres se envolvem, que homens acham tão excitantes, são as de subordinadas políticas. O romance sadomasoquista da dominância masculina, no qual sexo é construído pela dominância masculina e subordinação feminina (Jeffreys, 1990), requer que alguém faça o papel de menina. A teórica feminista de sexualidade e violência sexual, Catharine MacKinnon, argumenta que os “gêneros” da dominância masculina, masculinidade e feminilidade precisam ser constantemente recriados para servir a sexualidade da dominância masculina; isto é, diferença de poder erotizada (MacKinnon, 1989). Essa compreensão ajuda a explicar a existência e persistência da feminilidade. A sexualidade da dominância masculina requer “fems” (uma parte “feminina”) e mulheres são treinadas e pressionadas a facilitas a excitação masculina. Teóricas feministas mostraram que o que é entendido como comportamento “feminino” não é simplesmente construído socialmente, mas politicamente construído, como o comportamento do grupo social subordinado. O trabalho de Nancy Henley sobre a política do corpo é um clássico exemplo dessa abordagem (Henley, 1977). Ela mostra claramente que as formas nas quais os seres humanos são treinados e que se espera que usem seus corpos derivam de seus lugares na hierarquia do poder. Os poderosos expressam seu privilégio de certas formas que são proibidas aos subordinados. Henley mostra que não são apenas homens que reproduzem comportamentos de poder, mas também seres humanos envolvidos em outras formas de hierarquia além de gênero, como empregadores e empregados. Os poderosos ocupam maior espaço. Não apenas empregadores têm escritórios maiores como homens terão mais espaço que mulheres em suas casas e no mundo que é só deles. Eles ocupam mais espaço com seus corpos. Assim, homens podem se alongar em um banco de ônibus ou no sofá. Das mulheres é esperado que mantenham suas pernas e braços grudados em seus corpos e que caibam no espaço que sobrou. Similarmente entrevistados não podem se estatelar enquanto estiverem na posição subordinada em uma entrevista de emprego, enquanto os entrevistadores podem. Homens, Henley mostra, abordam mulheres de uma distância menor do que abordariam homens porque às mulheres é permitido menos espaço ao redor de seus corpos. O toque é outra área na qual os poderosos são privilegiados. Eles podem fazer contato físico enquanto os subordinados não podem. Dessa forma, empregadores podem tocar em estagiários mas o comportamento inverso seria um atrevimento. Homens podem e tocam mulheres mas se mulheres tocam em homens isso pode ser interpretado como uma abordagem sexual e esse é um comportamento perigoso. Contato visual também é uma forma de expressar poder. Homens podem encarar mulheres e mulheres não devem encarar de volta e sim educadamente abaixar o olhar. Mas homens podem não conseguir encarar outros homens sem provocar um agressivo “tá olhando o quê?” em resposta. Esses comportamentos são aprendidos tanto por instruções diretas, como mães dizendo a suas filhas para fechas as pernas, quanto por interação social. Mas é provável que na fase adulta eles sejam vistos por quem os pratica como “naturais”. O processo de aprendizagem é esquecido. Os comportamentos de espaço, toque e contato visual exigidos dos subordinados são então entendidos como os comportamentos “naturais” da feminilidade. É sobre a base formada por esses comportamentos que as práticas de beleza são inseridas, e que saltos altos podem ser algo natural para mulheres porém ridículo em homens. A psicóloga feminista Dee Graham contribuiu significativamente para o entendimento da feminilidade como o comportamento dos subordinados com seu conceito de “síndrome de Estocolmo social” (Graham, 1994). Em Loving to Survive – Amando para Sobreviver ela faz uma analogia entre feminilidade e o comportamento de reféns em situações de sequestro e ameaça que foi chamado síndrome de Estocolmo. Ela explica que a ideia da síndrome de Estocolmo vem de uma situação com reféns em Estocolmo na qual ficou claro que os reféns, ao invés de reagir com rebeldia contra seus opressores, podiam se conectar com eles. Essa ligação, na qual reféns podem identificar os interesses dos sequestradores como seus próprios, vem da real ameaça a sua sobrevivência que os sequestradores representam. Graham estende esse conceito para cobrir o comportamento das mulheres, feminilidade, como uma reação à vida em uma sociedade de violência masculina na qual elas estão em perigo. Feminilidade representa síndrome de Estocolmo social, “Se um (inescapável) grupo ameaça outro grupo com violência mas também – como grupo – mostra alguma gentileza ao grupo vitimizado, um apego entre os grupos se desenvolverá. Isso é o que nos referimos como Síndrome de Estocolmo Social (ou Cultural)” (Graham, 1994, p. 57). Graham afirma inequivocamente que, “masculinidade e feminilidade são códigos para dominação masculina e subordinação feminina” (1994, p. 192). Ela diz que mulheres, como reféns, têm medo, e “usamos qualquer informação disponível para alterar nosso comportamento de modo a tornar a interação com homens mais suave” (p. 160). Uma das coisas que as mulheres fazem é mudar seus corpos para ganhar os homens. Ela lista as práticas de beleza danosas que são consideradas neste livro, como maquiagem, cirurgia cosmética, depilação, sapatos de salto alto e roupas restritivas como exemplos. Ela diz que essas práticas refletem:

(1) A extensão na qual mulheres buscam se tornar aceitáveis para homens, (2) a extensão na qual mulheres buscam se conectar com homens, e dessa forma (3) a extensão na qual mulheres sentem a necessidade de atenção e aprovação masculina e (4) a extensão na qual mulheres se sentem indignas da afeição e aprovação dos homens assim como somos.
(Graham, 1994, p. 162)
Graham também argumenta que, “feminilidade é um plano para se dar bem com um inimigo tentando ganhar o inimigo” (1994, p. 187). O termo “feminilidade”, “se refere a traços de personalidade associados a subordinados e a traços de personalidades de indivíduos que adotaram comportamentos que agradem os dominantes” (p. 187) e “tais comportamentos que a cultura masculina classifica como ‘femininos’ são comportamentos que se esperaria caracterizar qualquer grupo oprimido” (p. 189). Esses comportamentos dos menos poderosos são necessariamente tentativas indiretas de influenciar os poderosos, “como o uso de inteligência, prudência, intuição, habilidade interpessoal, charme, sexualidade, ilusão e evitação”; isto é, comportamentos, exceto talvez inteligência, provavelmente identificáveis como essencialmente femininos.
Graham oferece uma explicação sobre motivo pelo qual muitas mulheres acreditam que sua “feminilidade” é biológica e inerente e por que “nós acreditamos que escolheríamos usar maquiagem, enrolar nossos cabelos e usar saltos altos se homens não achassem mulheres que fazem isso muito mais atraentes” (1994, p. 197). Mulheres acreditam nisso, ela diz, porque “acreditar em outra coisa” demandaria reconhecer que nosso comportamento é controlado por “variáveis externas”; isto é, o uso da força masculina e sua ameaça. Reconhecer isso significaria que as mulheres teriam que “reconhecer nosso terror” (p. 197). Ela diz que “É assustador para mulheres imaginar não ser femininas”. E conclui examinando que o que assusta a respeito de desistir da feminilidade pode levar à decisão de desistir dela.
Construcionistas sociais feministas como Henley e Graham entendem a tarefa do feminismo na destruição e eliminação do que temos chamado “papéis sexuais” ou “diferença sexual” e agora é mais comumente denominado “gênero”. Quando masculinidade e feminilidade são entendidas como os comportamentos de dominância e subordinação não faz muito sentido esperar que quaisquer aspectos desses comportamentos sobrevivam à destruição da dominância masculina. Christine Delphy explica que o conceito de androginia como uma maneira de lidar com a diferença de gênero – que é, tanto homens quanto mulheres poderiam combinar os comportamentos que são hoje tão rigidamente descritos como pertencentes a um ou outro – não é realizável. (Delphy, 1993). Os comportamentos de dominação e subordinação não sobreviveriam a um futuro igualitário para ser combinados de nenhuma forma. Pode haver aspectos de tais comportamentos que não estão associados com diferença de poder e que poderiam ser mais igualmente compartilhados, como o comportamento carinhoso, mas todos os comportamentos de deferência e privilégio seriam inimagináveis.

Eu procurei mostrar o poder da expectativa cultural de que mulheres devem demonstrar feminilidade se envolvendo em práticas de beleza. As forças que exigem esse comportamento incluem uma falta de possibilidades de alternativas, a crença de que a feminilidade e suas práticas são naturais e inevitáveis, educação infantil, bullying na escola, exigências no trabalho, necessidade de aperfeiçoar o corpo odiado incutida pela cultura de dominância masculina e o medo de retaliação masculina. Como Karen Callaghan explica em sua introdução à coleção Ideals of Feminine Beauty – Ideais de Beleza Feminina (1994), o controle social no ocidente contemporâneo não é usualmente imposto aos indivíduos por força bruta mas alcançado através de “manipulação simbólica” que pode incluir coisas como propaganda e revistas femininas e “cria a ilusão de liberdade e escolha” (Callaghan, 1994, p. x.). O fato de que algumas mulheres dizem que sentem prazer com as práticas não é inconsistente com seu papel na subordinação aos homens. Isso poderia talvez ser visto como a capacidade de algumas mulheres de tirar uma virtude de uma necessidade. No próximo capítulo eu argumento que as práticas de beleza ocidentais precisam ser incluídas na definição das Nações Unidas como práticas culturais danosas. Esse conceito é um antídoto útil para o debate da agência versus subordinação que abordei aqui porque é fundado numa compreensão do poder e da imposição cultural de práticas que prejudicam mulheres e crianças. Para práticas que são identificadas como danosas, “escolha” não é defesa.

CAPÍTULO 2 PRÁTICAS CULTURAIS DANOSAS E CULTURA OCIDENTAL

Eu argumento que as práticas de beleza na cultura ocidental devem ser entendidas como práticas culturais danosas. Práticas de beleza ocidentais como maquiagem e cirurgia de implante nos seios envolvem diferentes níveis de dano a mulheres. Cirurgia cosmética que remove partes do corpo é mais obviamente similar a mutilação genital feminina do que a maquiagem, por exemplo. Esse capítulo argumenta, entretanto, que um contínuo de práticas de beleza ocidentais, do batom de um lado à cirurgia cosmética invasiva de outro, se encaixam no critério definido por práticas culturais danosas na compreensão das Nações Unidas, apesar de diferirem na extremidade de seus efeitos. O conceito de práticas culturais/tradicionais danosas foi originado pelas preocupações da ONU em identificar e eliminar formas de prejuízo a mulheres e crianças que não se encaixam facilmente na estrutura dos direitos humanos (ONU, 1995). Está ganhando reconhecimento na comunidade internacional de direitos humanos mas apenas no que se refere a práticas como mutilação genital feminina em culturas não ocidentais. Não há, entretanto, reconhecimento de práticas muito similares, como o corte de genitálias para encaixar pessoas em estereótipos de gênero no ocidente, como danosas. Na verdade é provável que a ideia de que o ocidente tem uma “cultura” que produz “práticas” possa parecer estranha. Práticas danosas no ocidente serão mais comumente justificadas como vindas da “escolha” consumista, da “ciência” e “medicina” ou “moda”; isto é, a lei do mercado. Cultura pode ser vista como algo reacionário que existe fora do ocidente. O ocidente tem a ciência e o mercado ao invés disso. Neste capítulo eu argumento que a cultura ocidental da dominância masculina produz sim práticas, incluindo práticas de beleza, que são prejudiciais a mulheres. Na última década uma particularmente brutal prática de beleza ocidental, a labioplastia, teve sua popularidade aumentada entre cirurgiões cosméticos. Uma pesquisa na Internet do termo “labioplastia” aciona 2,220 websites, a maioria de cirurgiões cosméticos dos EUA oferecendo o procedimento. Um cirurgião de labioplastia descreve a cirurgia como “um procedimento cirúrgico que irá reduzir e/ou remodelar os pequenos lábios” (LabiaplastySurgeon.com, 2002). Os websites listam a prática rotineiramente entre outras cirurgias oferecidas que cortam o corpo feminino para conformá-lo aos desejos masculinos. Também em países ocidentais, a prática da “redesignação de gênero”, na qual homens e mulheres são castrados, e seios, pênis, úteros são removidos ou construídos, é realizada, muitas vezes, pelos mesmos cirurgiões. Mas essas práticas não são entendidas como claramente danosas e evidência de uma cultura reacionária. A cirurgia de castração transsexual, por exemplo, é representada pela profissão médica que lucra com ela como sendo um tratamento para um distúrbio médico de “disforia de gênero”, ao invés de uma norma cultural segundo a qual os que não se encaixam em uma categoria sexual devem ser cirurgicamente transferidos para a outra (Rottnek, 1999). O conceito de práticas culturais danosas é útil para analisar tais práticas no ocidente bem como no não ocidente. Práticas culturais ou tradicionais danosas nos termos da ONU são identificadas como: prejudiciais à saúde de mulheres e meninas; surgidas de diferenças de poder material entre os sexos; em benefício de homens; criando masculinidade e feminilidade estereotipadas, prejudicando as oportunidades de mulheres e meninas; justificadas por tradição. Essa definição se encaixa bem nas práticas de beleza ocidentais como a cirurgia cosmética. O conceito permite que a cultura da dominância masculina na qual mulheres vivem seja colocado em foco e sujeito à crítica ao invés de tido como natural, inevitável ou até mesmo progressivo.

CAPÍTULO 2, PARTE 1 Beleza e Misoginia – Sheila Jeffreys (2005)
PRÁTICAS CULTURAIS DANOSAS
O conceito da ONU de práticas culturais/tradicionais danosas tem como objetivo identificar práticas que são culturalmente toleradas como formas de violência e discriminação contra mulheres. O conceito é conservado na muito importante e única convenção “de mulheres” – a Convenção sobre Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra Mulheres (CEDAW; ONU, 1979). O artigo 2(f) da CEDAW determina que partidários da Convenção irão “tomar todas as medidas apropriadas, incluindo legislativas, para modificar ou abolir leis, regulações, costumes e práticas existentes que constituem discriminação contra mulheres”. O CEDAW também instrui os Estados que fazem parte a adotar medidas como:
Modificar padrões culturais e sociais de conduta masculina e feminina, visando atingir a eliminação de preconceitos e hábitos e todas as outras práticas baseadas na ideia de inferioridade ou superioridade de qualquer um dos sexos ou papéis estereotipados para homens e mulheres
(ONU, 1979, art. 5(a))
A definição de práticas habituais aqui é suficientemente extensa para incluir práticas de beleza. Práticas de beleza são o principal instrumento através do qual a “diferença” entre os sexos é criada e mantida. Elas criam o papel estereotipado de objetos sexuais e de beleza para mulheres, que têm que gastar muito tempo e dinheiro em maquiagem, penteados, depilação, cremes e loções, moda, botox e cirurgia cosmética. Homens se envolvem na maioria das práticas de beleza descritas neste livro apenas pela satisfação sexual que ganham com a travestilidade masoquista. Não é exigido deles que usem maquiagem para trabalhar, ou saltos altos para agradar a classe sexual dominante. Na verdade, como veremos no Capítulo 3, a travestilidade masculina causa consideráveis problemas para mulheres ao invés de estimular a excitação sexual. A não ser que aceitemos que as mulheres são biologicamente programadas para adotar práticas de beleza, estas precisam ser compreendidas como práticas culturais que são exigidas de mulheres. Todas as práticas exigidas de uma classe sexual ao invés da outra podem ser examinadas por seu papel político em manter a dominação masculina.
O conceito de práticas culturais/tradicionais danosas foi refinado em alguns documentos da ONU nos anos 90. Uma definição estendida de práticas tradicionais danosas é oferecida em um documento da ONU de 1995:
Mutilação genital feminina (FGM); alimentação forçada de mulheres; casamentos muito cedo; os vários tabus ou práticas que impedem mulheres de controlar sua própria fertilidade; tabus nutricionais e tradicionais métodos de parto; preferência pelo filho homem e suas implicações no status da menina; infanticídio feminino; gravidez prematura; e dote
(ONU, 1995, pp. 3-4)
Algumas das práticas descritas no documento têm analogias no ocidente. Alimentação forçada, por exemplo, que prepara meninas para o casamento em culturas nas quais corpos gordos são considerados atraentes por homens, carrega algumas semelhanças com as práticas de beleza ocidentais. É instrutivo compará-la com o que o que aparentemente é seu oposto, passar fome, prática mais provavelmente adotada pelas meninas e mulheres ocidentais para se aproximar do padrão cultural de atratividade. Na cultura ocidental mulheres estão sujeitas a restringir a alimentação por semanas ou meses para caber em seus vestidos de casamento ao invés de aumentar o consumo de alimentos. O documento explica de forma útil como tais práticas foram originadas e isso pode iluminar as origens das práticas de beleza também.
Práticas culturais danosas são, de acordo com a definição da ONU, prejudiciais à saúde de mulheres e meninas. Os consequentes danos à saúde de práticas como mutilação genital feminina são bem documentados (Dorkenoo. 1994). O dano resultante das práticas de beleza no ocidente pode não ser tão imediatamente claro ou severo. Entretanto, existe considerável evidência do prejuízo à saúde consequente de práticas de cirurgia cosmética como implante nos seios (Haiken, 1997), comum no ocidente. As consequências psicológicas danosas das práticas de beleza não estão documentadas porque tais práticas não são consideradas problemáticas, mas provavelmente são considerável parte na construção da feminilidade subordinada da mulher.
A concentração nas consequências na saúde de tais práticas surge da tendência do ocidente a querer que o dano seja sujeito a fácil medição. O dano ao status das mulheres como cidadãs iguais é menos fácil de medir mas é um provável resultado de todas as práticas culturais baseadas em subordinação feminina. O trabalho de Ruth Lister sobre cidadania feminina, por exemplo, sugere que o papel de dona de casa e as exigências provenientes dele de que mulheres exerçam várias formas de trabalho não remunerado prejudica severamente o status das mulheres como cidadãs enquanto apoia a cidadania masculina (Lister, 1997). O trabalho extra que mulheres realizam em práticas de beleza e os efeitos dessas práticas nas formas em que elas podem ocupar o espaço público, sentir sobre si mesmas, e intervir na vida pública, podem ser incluídos nesta análise. O trabalho de Nirmal Puwar sobre a experiência de membros femininos no parlamento do Reino Unido mostra que a prática da feminilidade na aparência é vital para elas quando tentam sobreviver naquela cultura extremamente masculina (Puwar, 2004). Uma mulher membro do parlamento que ela entrevistou explica que mulheres são investigadas e marcadas como objetos sexuais e que “a sexualidade das mulheres as acompanha o tempo todo” (Puwar, 2004, p. 76). Os membros do parlamento estão, Puwar argumenta, “sob pressão para reproduzir diferenças de gênero, através de formas materializadas de formas corporais de vestimenta, enfatizando uma forma aceitável de aparência feminina” (p. 176). Um impacto é que elas sofrem constantes comentários, mas é provável que existam efeitos mais adiante, não examinados aqui, de ter que ser tão clara e proeminentemente mulheres, vestindo o estigma desconfortável de sua condição subordinada enquanto procuram ser efetivas no gorverno.
O documento da ONU diz que práticas culturais danosas são, “consequência do valor colocado em mulheres e meninas pela sociedade. Elas persistem em um ambiente onde mulheres e meninas têm acesso desigual à educação, saúde, bens, e emprego” (ONU, 1995, p.5) Em culturas ocidentais o valor colocado em mulheres e meninas é claramente diferente do colocado em homens humanos. Acesso desigual à educação pode não ser um problema tão grande mas acesso desigual a bens e empregos persiste. A média semanal do salário total individual para mulheres no Reino Unido em 2000/1, por exemplo, era £133, comparado a £271 para homens (Carvel, 2002). O valor mais baixo de mulheres e meninas é demonstrado em violência doméstica e todas as outras práticas de violência contra mulheres e meninas, na existência da pornografia e outras formas da indústria do sexo. Práticas de beleza ocidentais, eu sugiro, surgem desse valor menor. Maquiagem e sapatos de salto alto, labioplastia e implantes nos seios são resultado do valor colocado nas mulheres e meninas ocidentais, no qual os corpos das mulheres são modificados e decorados para mostrar que mulheres são membros da classe subordinada que existe para o prazer masculino.
Outro critério que o documento da ONU dá para o reconhecimento de práticas culturais/tradicionais danosas é que elas “refletem valores e crenças mantidas por membros da comunidade por períodos que frequentemente abrangem gerações” e que são “para benefício dos homens” (ONU, 1995, p. 3). Práticas de beleza refletem valores e crenças de longa data sobre mulheres, ainda que as práticas as quais mulheres estão sujeitas mudem com o tempo. A exigência de que mulheres alterem e adornem seus corpos pelo bem da “beleza” não muda, por exemplo, ainda que os corsets como instrumento de modelagem da anatomia feminina para ênfase dos seios tenha cedido lugar para implantes de seios (Summers, 2001). A ideia de “beleza” como algo que mulheres devem incorporar para a excitação sexual masculina, seja natural ou artificialmente, está profundamente engendrada na cultura ocidental.
As práticas de beleza podem razoavelmente ser entendidas como sendo para benefício dos homens. Mesmo que mulheres no ocidente às vezes digam que escolhem se envolver em práticas de beleza para benefício próprio, ou para outras mulheres e não para homens, os homens se beneficiam de várias formas. Eles ganham a vantagem de ter seu status de classe sexual superior demarcado, e a satisfação de ser lembrados de sua superioridade toda vez que olham para uma mulher. Eles também ganham a vantagem de ser sexualmente estimulados por mulheres “lindas”. Essas vantagens podem ser resumidas pela compreensão de que é esperado que mulheres estejam sempre “complementando” e “cumprimentando” homens. Mulheres complementam homens por ser o sexo “oposto” e subordinado. Mulheres cumprimentam homens estando preparadas para fazer o esforço de enfeitar a si mesmas para a excitação sexual masculina. Dessa forma, homens podem se sentir com a masculinidade definida e bajulados pelos esforços das mulheres e, se as mulheres estão usando saltos altos por exemplo, aguentam dor para a satisfação deles. As mulheres que recusam as práticas de beleza não oferecem nem complemento nem cumprimento e sua resistência pode ser profundamente ressentida por membros da classe sexual dominante.
Práticas culturais danosas “persistem” como o documento da ONU nos diz, “porque não são questionadas e assumem uma aura de moralidade nos olhos de quem as pratica” (ONU, 1995, p. 3). Práticas de beleza no ocidente são certamente raramente questionadas. Elas são entendidas como naturais e inevitáveis, justificadas através da história e da cultura como algo inerente à biologia feminina (Marwick, 1988). A rejeição dessas práticas cria raiva e zombaria, como referências a feministas como incendiárias de sutiã, feias, de pernas peludas, que não conseguem arranjar um homem. Práticas de beleza ocidentais possuem a moralidade da natureza. Mulheres que falham em praticá-las podem ser vistas como “perdidas”, vergonhosas, desnaturadas e uma ameaça ao tecido social.
A relatora especial da ONU sobre violência contra a mulher, Radhika Coomaraswamy, explica que as tentativas dos Estados de modernizar suas economias frequentemente deixam intactos os abusos dos direitos das mulheres em forma de práticas tradicionais (Coomaraswamy, 1997). No ocidente houve um considerável desenvolvimento do que, na compreensão ocidental, representa economia, tecnologia e democracia “modernas”, e ainda assim as práticas de beleza que são indiscutivelmente um dano considerável a mulheres e meninas prosperam e formam a base de indústrias muito significativas. Ao invés de a economia moderna diminuir de alguma forma as práticas danosas, ela as explora em cosméticos e moda por exemplo, para gerar lucros muito consideráveis. Dessa forma a economia moderna aumenta muito a dificuldade de eliminar práticas danosas. The Economist estimou que a indústria global da beleza em maio de 2003 valia 160 bilhões de dólares (The Economist, 2003).
Em 2002, Coomaraswamy produziu um novo e longo relatório sobre práticas culturais danosas. De forma geral o relatório segue o discurso ocidental de documentos anteriores, entretanto as práticas de beleza ocidentais têm um parágrafo inteiro dedicado a elas aqui. O relatório diz que “Em muitas sociedades, o desejo pela beleza tem frequentemente afetado mulheres de diversas formas” (Coomaraswamy, 2002, p. 31). Isso enfoca especificamente práticas de beleza no ocidente na forma com que exigem magreza, “No mundo ocidental do século XXI o mito de beleza no qual o tipo físico feminino magro é o único aceito é imposto a mulheres pela mídia por meio de revistas, propaganda e televisão”, e pela propaganda sexista. O que o relatório chama de “cultura de ideais impraticáveis” resulta, segundo ele, em “muitas práticas que causam abusos ao corpo feminino” e separa para mencionar “cirurgia cosmética em toda parte do corpo feminino” que “leva a problemas de saúde e complicações para muitas mulheres”. Essa menção, ainda que apressada, pode ser uma indicação de que a necessidade de incluir algumas práticas de beleza ocidentais entre aquelas que Coomaraswamy descreve como violações aos “direitos humanos das mulheres à integridade do corpo e à expressão, minando valores essenciais de igualdade e dignidade” está sendo reconhecida (2002, p. 3).
Entretanto, ela inclui apenas práticas não ocidentais na categoria que identifica como mais sérias. Essa é a categoria de “práticas culturais que envolvem ‘dor e sofrimento severos’ para a mulher ou criança, que não respeitam a integridade física do corpo feminino” e “devem receber máximo escrutínio e agitação internacional” (Coomaraswamy, 2002, p. 8). Isso inclui “mutilação genital feminina, assassinato por honra, Sati ou qualquer outra forma de prática cultural que brutaliza o corpo feminino” (p. 8).

Existem algumas práticas não ocidentais descritas no relatório que podem ser comparadas a práticas muito similares que estão rapidamente se tornando componentes comuns da beleza ocidental. Por exemplo, nos é dito que “As mulheres Tutsi em Ruanda e Burundi seguem a prática de alongamento dos lábios vaginais com o objetivo de permitir que as mulheres tenham maior prazer sexual” (Coomaraswamy, 2002, p. 12). Isso tem algo em comum com a prática da labioplastia no ocidente. Na cirurgia cosmética de labioplastia, cirurgiões cortam partes dos pequenos lábios para “embelezar” as genitálias femininas. Isso não é uma prática que pode ser explicada ou justificada em termos de tradição, porque é de origem recente, mas em grau de mutilação, dor e potenciais complicações se assemelha a mutilação genital feminina e forma um alarmante contraste com o costume Tutsi. No ocidente, na literatura de propaganda de cirurgiões de labioplastia, é dito que lábios longos inibem o prazer sexual em geram vergonha. Coomaraswamy usa a linguagem da dignidade humana para descrever o dano das práticas tradicionais. É dito que tais práticas violam a dignidade feminina (Coomaraswamy, 1997). O conceito de “dignidade” feminina é importante e a ideia de “dignidade” humana é fundamental para a teoria e prática dos direitos humanos. Essa é uma medida útil com a qual comparar práticas de beleza como labioplastia. Apesar de haver analogias no ocidente a muitas das práticas não ocidentais descritas no relatório (Wynter et al., 2002), elas provavelmente são omitidas na literatura da ONU. Isso se deve, eu sugiro, a um discurso ocidental que identifica práticas culturais danosas no ocidente como um reflexo da escolha das mulheres ao invés de ser reforçadas por ameaça de punição ou decreto religioso.

CAPÍTULO 2, PARTE 2 A CULTURA OCIDENTAL OFERECE “ESCOLHA”?

Práticas culturais danosas são vistas como existentes em culturas nas quais mulheres não têm escolha. A ideia de que práticas tradicionais danosas “escolhidas” podem ser distintas das forçadas não se encaixa bem na compreensão das Nações Unidas do que constitui tais práticas. A noção de práticas culturais danosas é baseada na ideia de que a cultura pode coagir e que mulheres e meninas não são agentes livres capazes de escolher. Nos anos 90, no ocidente, entretanto, a ideologia do liberalismo ocidental e os sistemas econômicos de livre mercado do capitalismo individual defendidos por ele, foram forças potentes na transformação de críticas políticas que reconhecem desigualdade e opressão como limites à escolha e à oportunidade (ver Jeffreys, 1997b). Essa ideologia é tão abrangente que afetou a discussão de Radhika Coomaraswamy sobre práticas danosas fora do ocidente em seu relatório de 2002. O relatório inclui códigos de vestimenta que impõem roupas que cobrem o corpo de mulheres como a burca como práticas culturais danosas. Elas são danosas porque “restringem o movimento das mulheres e seu direito de expressão” e porque são prejudiciais à saúde, “Tais vestimentas podem causar asma, aumento da pressão sanguínea, problemas na audição ou visão, assaduras na pele, queda de cabelo e um declínio geral na condição mental” (Coomaraswamy, 2002, p. 28). Recentemente outra preocupação com a saúde surgiu. Médicos escreveram em Lancet sobre o aumento da incidência de raquitismo, condição na qual os ossos ficam fragilizados devido a falta de vitamina D, explicando que, no oriente médio, existem “muitas mães com a forma adulta de raquitismo e crianças com raquitismo também” como resultado de mulheres sendo obrigadas a cobrir seus corpos, ficando sem receber luz natural do sol em sua pele. (Lichtarowicz, 2003). No entanto, Coomaraswamy comenta, tais códigos de vestimenta só são um problema quando são “impostos sobre as mulheres e se a punição é autorizada para quem não usa a incômoda vestimenta” porque nesse caso “os direitos de escolha e expressão são claramente negados” (2002, p. 29). A noção de escolha que ela emprega não engloba os tipos de pressão para vestir roupas restritivas que é discutido mais tarde neste capítulo, como assédio em locais públicos que só pode ser aliviado dessa forma. Cobrir-se pode reduzir este tipo de atrito mas não é consequentemente um sinal de liberdade como é uma acomodação à opressão. A introdução de Coomaraswamy à noção de “escolha” é preocupante pois dilui um dos aspectos mais úteis da noção de práticas culturais danosas, a irrelevância de tais noções ocidentais onde expectativas e práticas culturais agem como executores. Mesmo a bem respeitada filósofa política feminista estadunidense, Martha Nussbaum, usa o argumento da “escolha” para distinguir práticas de beleza ocidentais, as dietas em particular, das de fora do ocidente. Nussbaum argumenta que práticas como mutilação genital feminina (FGM) não podem ser vistas como “moralmente equivalentes a práticas de dieta e modelagem corporal na cultura americana” (Nussbaum, 2000, p. 121). Ela afirma que as diferenças entre a FGM e dietas são tão consideráveis que invalidam tal discussão. As distinções que ela faz se relacionam a questão da escolha, o que ela considera prevalecer no ocidente em relação a dietas, e ao grau de prejuízo à saúde envolvido nas práticas. Ela diz que FGM é “forçada, enquanto dietas em resposta a imagens culturalmente construídas são uma questão de escolha, mesmo que a persuasão seja sedutora” (2000, p. 122). Ela argumenta que a FGM é irreversível enquanto as dietas não são. Ela diz que a FGM é feita em condições perigosas e insalubres, diferente das dietas, e considera que os problemas de saúde ligados à FGM, que podem incluir a morte, são tão mais severos que a comparação é inapropriada. Nussbaum também diz que porque a FGM é usualmente feita em crianças, consentimento não é uma questão. Ela detalha as distinções no grau de instrução feminino nos Estados Unidos e em alguns países da África como base para argumentar que mulheres africanas não têm acesso à escolha e consentimento da mesma forma que mulheres dos Estados Unidos têm. Ela diz que FGM significa “a perda irreversível da capacidade para um tipo de função sexual” que é, presumivelmente, uma perda maior do que a ligada a dietas. Ela argumenta, finalmente, que FGM está “inegavelmente ligada a costumes de dominação masculina” aos quais ela indica que dietas não estão. Ela tem outros argumentos mais gerais para enxergar a FGM como um abuso mais significativo dos direitos das mulheres em comparação a práticas de beleza. Ela diz que feministas nos Estados Unidos têm criticado desproporcionalmente práticas de beleza ocidentais enquanto dão menos atenção à FGM, e que é dever das feministas preocupar-se com o destino de suas irmãs fora da cultura ocidental ao invés de apenas consigo mesmas. Seria difícil discordar de Nussbaum que feministas deveriam se preocupar com os direitos humanos de suas irmãs em outros países. Eu argumentaria, entretanto, que as críticas feministas ocidentais às práticas culturais danosas em outras culturas precisam ser fundamentadas em uma profunda crítica a tais práticas em sua própria cultura. Os argumentos de Nussbaum a respeito do motivo pelo qual a dieta não deveria ser comparada a FGM não são convincentes. A dieta ocidental causa danos duradouros à saúde, particularmente quando é levada ao extremo em distúrbios alimentares que podem causar a morte. Um estudo de 2001 reportado em Lancet, por exemplo, conclui que cinco (2%) das pacientes com distúrbios alimentares que foram entrevistadas no começo da pesquisa morreram durante o período seguinte de 5 anos (Bem-Tovim et al., 2001, p. 1254). Similarmente, práticas de cirurgia cosmética podem levar a sérios problemas de saúde, como Elizabeth Haiken documenta no caso de implantes de seios (1997). Labioplastia, assim como FGM, pode levar a dificuldades na funcionalidade sexual. O argumento de Nussbaum sobre o grau de “escolha” das mulheres pode ser visto como revelador de um discurso ocidental de acordo com o qual mulheres no ocidente são tão favorecidas que podem “escolher” e dessa forma quaisquer práticas culturais impostas a elas não são tão severas como as impostas em algumas culturas africanas. Este é um problema fundamental no pensamento feminista liberal de que relações de poder em culturas ocidentais são colocados como simples “pressões” que mulheres têm a educação para rejeitar (Jeffreys, 1997b). Algumas feministas liberais individualistas podem encontrar evidência da “escolha” das mulheres mesmo nas situações mais improváveis. Uma delas é a prática da cirurgia de reparação do hímen no ocidente. A cirurgia de reparação do hímen é feita para criar uma virgindade artificial em mulheres de culturas nas quais sangrar é um requisito na noite de núpcias para evitar a vergonha que seria para uma noiva e sua família a perda da “honra”. A penalidade para a perda da honra pode ser uma “execução por honra” na qual a mulher é morta por membros homens da família. Imigrantes no ocidente provenientes de tais culturas podem obter a reparação do hímen pelos mesmos cirurgiões que realizam labioplastia em mulheres influenciadas pela pornografia a considerar seus lábios vaginais feios. Em seu artigo sobre a prática da reparação do hímen na Holanda no século XXI, Sawitri Saharso argumenta que meninas que fazem a cirurgia de reparação do hímen são “agentes morais que podem escolher” (Saharso, 2003, p. 20). Feministas deveriam, ela diz, respeitar “as escolhas de outras mulheres, mesmo que não concordemos com elas. Isso por sua vez significa que disponibilizar a reparação do hímen é um ato de multiculturalismo e bom feminismo” (p. 21). As meninas são “agentes moralmente competentes que fazem uma escolha e são capazes de afirmar suas preferências” (2003, p. 21). A reparação do hímen está atualmente disponível gratuitamente no serviço de saúde da Holanda e Saharso considera isso como “uma medida política culturalmente sensível que reconhece o sofrimento culturalmente informado” (p. 21). O conceito de “escolha” que Saharso coloca é tão empobrecido que é difícil conceber o motivo pelo qual qualquer pessoa o chamaria de “escolha”. Por exemplo ela cita como base para seu argumento sobre meninas “escolhendo” a cirurgia de reparação de hímen uma escritora holandesa que diz que pode-se dizer que elas podem escolher porque elas têm outras opções como deixar a comunidade: Ela sugere que deixar a comunidade não necessariamente significa tornar-se uma prostituta, pois existem abrigos na Holanda para meninas e mulheres que fugiram. Dessa forma, é somente quando as meninas querem permanecer na família e na comunidade, e presumindo que a família da menina é impiedosa somo ela pressupõe, é que a operação é a única solução disponível.

(citado em Saharso, 2003, p. 19)

Meninas de comunidades imigrantes provavelmente precisam do apoio de famílias e comunidades mais do que as que pertencem a cultura dominante. Dessa forma, a afirmação casual de que meninas seriam capazes de fazer uma escolha razoável entre o status de banidas no qual elas podem ter que se esconder por uma vida inteira de uma família procurando vingança pela vergonha causada, e fazer uma cirurgia que as possibilitará permanecer, é bastante surpreendente. Essas “escolhas” não são equivalentes em suas implicações e a sugestão de Saharso de que elas deveriam ser consideradas como tal demonstra a lógica estranha que pode resultar da fetichização da escolha na teoria liberal ocidental.

CAPÍTULO 2, PARTE 3 MAQUIAGEM E VÉU: MESMA COISA?

Ao invés de serem dois lados da mesma moeda de opressão a mulheres, o véu e a maquiagem são mais usualmente vistos como opostos. A maquiagem pode até mesmo ser vista como a alternativa liberal ao uso do véu. Existe aparentemente uma diferença, que é, espera-se que mulheres respeitadas na cultura islâmica cubram suas cabeças e corpos para que homens não se sintam sexualmente tentados, enquanto no ocidente espera-se que mulheres se vistam e usem maquiagem para que os homens se sintam sexualmente tentados e para criar um banquete para os olhos deles. Isso pode parecer uma conexão. Tais expectativas refletem o dualismo tradicional que diz respeito à função das mulheres sob dominação masculina. Mulheres, tradicionalmente, mesmo no ocidente, devem se encaixar nas categorias virgem/vadia. Virgens estão fora dos limites até que se casem e sejam possuídas sexualmente por homens individualmente, enquanto vadias existem para servir homens em geral. Infelizmente até mesmo estudiosas do feminismo são algumas vezes incapazes de pensar a respeito de si mesmas fora desse dualismo para imaginar uma forma de vida autônoma para mulheres que não caia nessas categorias. Lama Abu-Odeh, por exemplo, em escritos sobre a readoção do véu em alguns países muçulmanos, diz que suas conclusões como feminista árabe são que “Mulheres árabes podem ser capazes de se expressar sexualmente, para que possam amar, brincar, provocar, flertar e excitar… Nelas, vejo atos de subversão e libertação” (Abu-Odeh, 1995, p. 527). Mas o que ela considera prazeroso, as mulheres que adotaram o véu viram como “mau”. Ao escolher para mulheres o papel de excitar homens ao invés de se cobrir, Abu-Odeh se prende na dualidade que é oferecida para mulheres sob dominância masculina, objeto sexual ou coberto, prostituta ou freira. Existe uma terceira possibilidade: mulheres podem inventar para si mesmas algo novo e fora dos estereótipos da cultura patriarcal ocidental e não ocidental. Mulheres podem ter acesso aos privilégios possuídos por homens de não ter que se preocupar com aparência e poder sair em público sem nada no rosto ou na cabeça. Tanto o véu quanto a maquiagem são frequentemente vistos como comportamentos voluntários das mulheres, adotados por escolha, que expressam agência. Mas em ambos os casos existe considerável evidência das pressões surgidas da dominância masculina que causam esses comportamentos. Por exemplo, a historiadora do comércio Kathy Peiss coloca que a indústria de produtos de beleza decolou nos EUA nos anos 1920/1930 pois nessa época as mulheres estavam entrando no mundo público de escritórios e outros ambientes de trabalho (Peiss, 1998). Ela enxerga que mulheres tiveram que se inventar como um sinal de sua nova liberdade. Mas existe outra explicação. Comentadoras feministas da readoção do véu por mulheres em países muçulmanos no final do século XX sugeriram que mulheres se sentem mais seguras e livres para ocupar e se movimentar no mundo público quando cobertas (Abu-Odeh, 1995). Pode ser isso que usar maquiagem signifique, que mulheres não tem o direito automático de se arriscar na vida pública da mesma forma que homens. Maquiagem, assim como o véu, assegura que elas estão mascaradas e não cometendo a afronta de se mostrarem como as cidadãs reais e iguais que deveriam ser em teoria. Maquiagem e véu podem revelar a falta de direitos das mulheres. Em alguns casos a adoção do véu é claramente o resultado de força e ameaça de violência. No Irã, cobrir-se é compulsório e forçado pelo Estado. Como Haleh Afshar explica “A desobediência aberta ao hijab e a aparição pública sem ele é punível com 74 chibatadas” (Afshar, 1997, p. 319). Não há sugestão de que mulheres podem “escolher” usar o véu, já que a imposição é tão clara e brutal, “Esses homens (membros do partido de Deus, os Hezbollahis) atacam mulheres que consideram estar inadequadamente cobertas com facas ou armas e elas têm sorte se sobreviverem a tal experiência.” (Afshar, 1997, p. 320). Maquiagem não é imposta com tamanha brutalidade em culturas ocidentais. Entretanto, como Homa Hoodfar aponta, o véu pode ser usado por diferentes razões em diferentes países e até em um mesmo país (Hoodfar, 1997). Em algumas situações nenhuma força óbvia é aplicada. Lama Abu-Odeh descreve a readoção do véu. Ela diz que nos anos 1970 mulheres “andavam pelas ruas de cidades árabes usando trajes ocidentais: saias e vestidos abaixo dos joelhos, saltos altos e luvas que cobriam o braço no verão. Seus cabelos geralmente eram expostos e elas usavam maquiagem” (1995, p. 524). Nos anos 1980 e 1990 muitas, mesmo algumas das mesmas mulheres, adotaram o véu, definido aqui como uma cobertura ou lenço na cabeça. Abu-Odeh nos diz que “seus corpos pareciam ser um campo de batalha” entre os valores do ocidente, a “construção capitalista na qual corpos femininos eram ‘sexualizados, objetificados, coisificados’ e a tradicional na qual os corpos femininos eram ‘transformados em bens, em propriedades’ e aterrorizados como garantias da honra (sexual) da família” (p. 524). As mulheres que adotaram o véu eram aquelas que precisavam usar o transporte público para trabalhar ou estudar. Elas estavam menos sujeitas a ser assediadas sexualmente por homens. Em ocasiões em que eram assediadas elas se sentiriam mais confortáveis a contestar se estivessem com o véu, pois não poderiam ser culpadas por ter incitado esse comportamento masculino abusivo. Era mais fácil para as mulheres e meninas que usavam véu se sentirem ofendidas e para os outros se sentirem ofendidos em apoio a elas se fossem vistas como inocentes vítimas que não mereciam tal tratamento. A adoção do véu pode, dessa forma, ser vista como uma forma de aliviar os danos sofridos por mulheres como resultado da dominância masculina. A escolha, todavia, surge da opressão ao invés de indicar agência. Hoodfar explica a readoção do véu no Egito onde não existe ameaça de punição brutal. Mulheres que, como Hoodfar coloca, “readotam o véu” tendem a ser de classe média baixa, educadas em universidades e trabalhadoras de colarinho branco no setor público e governamental. As razões dadas por Hoodfar para “readotar o véu” não sugerem que as mulheres tiveram alternativas razoáveis para tomar essa decisão. Uma mulher entrevistada por Hoodfar expressou resistência a ideia de usar o véu antes de se casar, mas na véspera de seu casamento encontrou considerável pressão por parte da família de seu futuro marido contra sair para trabalhar como professora, o que ela foi treinada para e esperava fazer. Seus futuros parentes argumentaram que se ela saísse para trabalhar “as pessoas iriam falar, e sua reputação poderia ser questionada” (Hoodfar, 1997, p. 323). Além disso ela sofreu assédio sexual, “Em ônibus lotados, homens que perderam seu respeito tradicional por mulheres podem molestá-la e claro que isso irá prejudicar seu orgulho e dignidade, bem como de seu marido e irmãos” (p. 323). Para resolver essas pressões ela decidiu se tornar muhaggaba (mulher que usa véu). Isso agradou a família do marido. As razões que Hoodfar oferece relacionam-se claramente com as tentativas das mulheres de se acomodar à dominância masculina. O véu, ela diz, demonstra a lealdade da mulher às regras da dominância masculina, “comunica alto e claro à sociedade em geral e a maridos em particular que a que veste está ligada à ideia islâmica de seu papel sexual” (Hoodfar, 1997, p. 323). Mulheres de véu podem trabalhar porque estão demonstrando que ainda respeitam “comportamentos e valores tradicionais”. Mulheres que usam o véu “diminuem a insegurança de seus maridos” e mostram a eles que “como esposas, não estão competindo, mas sim em harmonia e cooperação com eles” (p. 324). Em troca de todos esses sinais de obediência o véu “coloca mulheres numa posição de esperar e exigir que seus maridos honrem e reconheçam seus direitos islâmicos”. Dessa forma os maridos podem deixar que suas mulheres mantenham o dinheiro que ganharem e seu lado na barganha por “prover para a família de acordo com suas melhores habilidades” (p. 324). Nenhuma das razões dadas aqui sugere que a atividade é escolhida pois dá à mulher qualquer satisfação separada da que vem do alívio das forças da dominância masculina. Para ter o direito que homens possuem de trabalhar no mundo público, mulheres têm que se cobrir e preencher outros estereótipos e expectativas a respeito do papel subordinado da mulher. Outra mulher entrevistada por Hoodfar adotou o véu diretamente para evitar o assédio sexual enquanto trabalhava até tarde após estudar e tinha de pegar ônibus para chegar em casa, “As pessoas me tratavam mal tão frequentemente que eu chegava em casa a noite e chorava”. Ela decidiu pelo véu para que “as pessoas soubessem que eu sou uma boa mulher e que minhas circunstâncias de vida me forçaram a trabalhar até tarde da noite” (1997, p. 325). Procurar uma estratégia de evitar os ataques nas ruas por homens não é um exercício de livre escolha pois é acompanhado de opressão. Os homens normais que a assediariam no Egito podem ser vistos como o equivalente civil dos Hezbollahis que açoitam mulheres no Irã. Abu-Odeh explica os tipos de assédio sexual aos quais mulheres têm sido tradicionalmente expostas em cidades árabes quando não usam véu:

Infalivelmente sujeitas a atenção nas ruas e nos ônibus em virtude de ser mulheres, as encaram, assoviam para elas, se esfregam nelas e as beliscam. Comentários de homens como, “Que belos peitos você tem,” ou “Como você é linda,” são frequentes…Elas estão sempre conscientes de que olham para elas.
(Abu-Odeh, 1995, p. 526)

Mas Abu-Odeh lembra a feministas que pensam que mulheres devem recusar o véu que isso poderia ser “suicídio social” (1995, p. 529). Mulheres muçulmanas não estavam em posição de se manifestarem contra o véu porque elas seriam vistas como defendendo o ocidente. Ela adiciona a influência de pregadores islâmicos como outra razão para readotar o véu: “Uma mulher que decide usar o véu é usualmente sujeita a uma certa doutrinação ideológica (por um pregador fundamentalista), na qual é dito a ela que toda mulher muçulmana precisa cobrir seu corpo para não seduzir homens, e assim obedecer a palavra de Alá” (p. 532). Isso pode ser visto claramente como doutrinação religiosa mas pode ser razoável questionar se esta é necessariamente mais poderosa em influenciar meninas a se cobrirem com o véu do que revistas e moda e a cultura de beleza no ocidente são em conseguir que meninas se cubram com maquiagem.

CAPÍTULO 2, PARTE 4 Beleza e Misoginia – Sheila Jeffreys (2005)
IMPERIALISMO CULTURAL OCIDENTALEXPORTANDO PRÁTICAS DANOSAS PARA O NÃO OCIDENTE

Mulheres no Afeganistão supostamente recentemente libertas da regra do Talibã, estão presas na dualidade patriarcal de virgem/vadia por terem sido apresentadas a apenas duas escolhas de aparência, cobrir-se com a burca ou usar maquiagem. Práticas de beleza ocidentais são vistas como tão obviamente naturais, inevitáveis e boas para mulheres que têm sido mantidas como o melhor para mulheres do Afeganistão. Após anos de terrível opressão nos quais elas eram permitidas fora de casa apenas se usassem a burca que cobre o corpo inteiro, viajavam apenas na companhia de homens, eram privadas de educação e emprego e poderiam apanhar nas ruas por guardiões homens da integridade islâmica sem direito a reparação, poder envolver-se em práticas de beleza ocidentais, especialmente para rosto e cabelo, não parece uma necessidade urgente. Contudo é dessa forma que tais práticas estão sendo promovidas. A indústria de beleza americana avançou em 2002 em consequência da guerra para se infiltrar no Afeganistão sob o disfarce de um “auxílio” de beleza urgentemente necessitado. Isso foi representado na mídia ocidental como uma ajuda positiva ao invés de imperialismo cultural americano e empreendimento capitalista. Foi oferecido a mulheres o papel de cobrir-se com maquiagem e ser sexualmente objetificada, ao invés de cobrir-se com a burca para prevenir que fossem vistas como objetos sexuais por homens. A perspectiva do New York Times sobre isso é que apesar de duas décadas de guerra “Mulheres afegãs mantiveram seu desejo de parecer lindas, mas existe uma “lamentável escassez de esteticistas. Além disso, elas não têm ninguém para ensiná-las e nenhum lugar onde podem ter acesso a um pente decente, ainda mais à coleção de géis, cremes, pós, delineadores e cores que transbordam das prateleiras de qualquer drogaria americana” (Halbfinger, 2002, p. 1). Em resposta a essa oportunidade de mercado, e à oportunidade de mostrar suas companhias lidando com um socorro emergencial, a maioral da indústria de beleza americana logo “correu ao resgate” liderada pela editora da Vogue. O resultado dessa generosidade foi que uma escola que ensinaria práticas de beleza estava para abrir em acordo com o Ministério Afegão de Assuntos Femininos, como se práticas de beleza fossem de fato uma questão crucial de direitos humanos para mulheres, junto com educação, segurança e trabalho. Os fabricantes de produtos de beleza americanos ofereceram manuais e mercadorias para auxiliar a empreitada. A editora da Vogue, Anna Wintour, disse que a indústria da beleza é “incrivelmente filantrópica” e que a escola de beleza “não apenas ajudaria mulheres do Afeganistão a ser e sentirem-se melhor mas também as empregaria”. Aparentemente a situação nos 20 salões de beleza que reabriram após a remoção do controle do Talibã constituem uma crise de saúde porque as condições eram insalubres e perigosas. Como uma emigrante afegã que viu a situação reportou: Elas estão usando tesouras enferrujadas, têm um pente barato para o salão inteiro e não o limpam, não há água corrente ou creme de barbear, e existe um problema real com piolhos. Elas usam varas de madeira e elásticos para fazer permanentes. E não há algodão, de modo que a solução de permanente escorre pelo rosto da cliente.

(Halbfinger, 2002, p. 1)
Permanente capilar poderia ser considerada uma prática cultural danosa por si só dado que a química envolvida é tóxica independente de escorrer pelo rosto (Erickson, 2002), mas nos interesses do capitalismo transformou-se em uma demanda de direitos humanos. Simplesmente traduzir manuais educacionais de beleza não era suficiente no Afeganistão porque muitas mulheres eram analfabetas, então um curso em vídeo de instruções de maquiagem estava sendo preparado.
Apesar de as corporações de cosméticos lutarem entre si para fazer doações à escola de beleza em um almoço da Vogue foi dito que não estavam competindo por vendas, um executivo disse que “a escola de beleza não pode ser julgada um sucesso se não criar uma demanda por cosméticos americanos assim que possível” (Halbfinger, 2002, p. 1). Não foi apenas no Afeganistão que corporações de cosméticos dos Estados Unidos viram uma oportunidade de mercado. Eles rapidamente entraram na União Soviética após a queda do regime comunista para oferecer seus serviços para mulheres antes em privação, e estão alcançando a China também. Como a historiadora dos negócios Kathy Peiss coloca, até mesmo nas “Florestas tropicais da Amazônia, mulheres vendem Avon, Mary Kay e outros produtos de beleza” (Peiss, 2001, p. 20). Mas Peiss, como muitos dos envolvidos em vender ideais de beleza ocidentais no Afeganistão, esconde a opressão dessa atividade colonizadora ao enfatizar que ela fornece empregos para mulheres que precisam muito deles. Como ela diz, “como foi o caso há cem anos nos Estados Unidos, esses ‘micronegócios’ deram a algumas mulheres um apoio na economia de mercado em desenvolvimento” (Peiss, 2001, p. 20).

COBRINDO MULHERES NA RELIGIÃO PATRIARCAL

Apesar de a objetificação sexual requerida das mulheres no ocidente poder ser distinta do ato de se cobrir exigido por regimes islâmicos, é instrutivo considerar a base cultural idêntica a partir da qual tanto a cultura ocidental quanto a islâmica se desenvolveram. Cobrir as cabeças de mulheres é uma prática cultural de tribos do oriente médio que encontraram caminhos, via religiões monoteístas originárias daquela região, para outras partes do mundo. Cobrir as cabeças e os corpos era imposto sobre algumas mulheres cristãs no ocidente até pouco tempo atrás. Em minha infância em Malta nos anos 1950, onde meu pai foi colocado pelo exército, eu lembro dos avisos em ônibus que instruíam mulheres a “usar vestido Marylike”. Ainda era obrigatório que mulheres que entrassem em igrejas em muitas partes da Europa cobrindo suas cabeças. A religião cristã, como o islã, e a outra religião patriarcal monoteísta, o judaísmo, tem suas raízes em culturas patriarcais antigas que existiam no oriente médio. Nessas culturas antigas, era exigido que mulheres respeitáveis se cobrissem como no código babilônico de Hamurabi. Gerda Lerner explica em The Creation of Patriarchy, que o código, que precede as três religiões, exigia que mulheres que não eram prostitutas se cobrissem para indicar que eram propriedade de homens individuais (Lerner, 1987). As mulheres prostituídas, geralmente escravas, não se cobriam para indicar que eram propriedade de homens em geral. No início da cristandade um código similar foi imposto. Dessa forma, na carta de Paulo aos Coríntios no Novo Testamento ele define a regra. Ele explica que “a cabeça de todo homem é Cristo; e a cabeça da mulher é o homem; e a cabeça de Cristo é Deus”. Isso pode ser demonstrado através de cobrir a cabeça desta forma: Todo o homem que ora ou profetiza, tendo a cabeça coberta, desonra a sua própria cabeça. Mas toda a mulher que ora ou profetiza com a cabeça descoberta, desonra a sua própria cabeça, porque é como se estivesse rapada. Portanto, se a mulher não se cobre com véu, tosquie-se também. Mas, se para a mulher é coisa indecente tosquiar-se ou rapar-se, que ponha o véu. O varão pois não deve cobrir a cabeça, porque é a imagem e glória de Deus, mas a mulher é a glória do varão. Porque o varão não provém da mulher, mas a mulher do varão. Porque também o varão não foi criado por causa da mulher, mas a mulher por causa do varão.

(Coríntios, 1957, 11: 3-15, p. 181)
A cobertura da cabeça da mulher poderia mostrar que ela era propriedade do homem. Outras práticas danosas da cristandade antiga acompanharam o código de vestimenta. Mulheres não podiam falar na igreja, mas podiam perguntar a seus maridos sobre qualquer coisa que não entendessem quando chegassem em casa e eram obrigadas a “submeter-se a seus próprios maridos, como a Deus” (Efésios, 1957, 5: 22, p. 200).
Um ramo da religião cristã hoje vai além de simplesmente cobrir mulheres. Mulheres estão de fato excluídas de todo o Monte Athos na Grécia, coberto por monastérios ortodoxos, para que os monges estejam protegidos de ter que vê-las. Em 2002 essa prática cristã antiga recebeu apoio influente pela visita, divulgada na mídia, do Príncipe Charles a um monastério na montanha (Smith, 2004). A montanha tem excluído mulheres desde o século XI e com o status de uma república teocrática independente pode impor penalidades legais a quem desafiar o banimento. Charles visitou o lugar diversas vezes desde morte de sua ex esposa, Diana, e é dito que ganha ótimo consolo de seu refúgio, um lugar onde as leituras no refeitório “são frequentemente baseadas no (…) mal causado pelas mulheres com a queda de Eva” (Smith, 2004, p. 3). A contínua existência dessa zona de exclusão apesar de tentativas da União Europeia de revogar o banimento é um lembrete dos valores misóginos que estão na base do cristianismo patriarcal.

O QUE CONSTITUI UMA PRÁTICA CULTURAL DANOSA?

Eu sugeri neste capítulo que tanto as culturas ocidentais influenciadas pelo cristianismo quanto as influenciadas pelo islã reforçam práticas culturais danosas sobre mulheres. Apenas uma determinação para ignorar as origens políticas, funções e consequências das práticas de beleza ocidentais permitiriam a crença de que a cultura ocidental é claramente superior nas liberdades dadas a mulheres em relação à aparência. Considerando que todas as três culturas religiosas patriarcais originadas no antigo oriente médio começaram forçando mulheres a se cobrir, isso mudou no ocidente para a aparentemente muito diferente prescrição para mulheres exercerem seu papel sexual em espaços públicos. Em algumas áreas do oriente médio e da Ásia onde cobrir-se foi uma regra desafiada ou está morrendo existe uma reforço renovado da regra. O resultado final é uma aparentemente divergência cada vez maior entre as regras de aparência para mulheres no oriente e no ocidente. Ambos os conjuntos de regras de aparência, entretanto, requerem que mulheres devam ser “diferentes/deferentes”, e ambos exigem que elas sirvam as necessidades sexuais dos homens, seja fornecendo excitação sexual ou escondendo os corpos femininos para que homens não fiquem excitados. Em ambos os casos, é exigido que mulheres satisfaçam as necessidades masculinas em espaços públicos e não tenham as liberdades que homens possuem. O conceito de práticas culturais danosas em relação à aparência, portanto, não é restrito a culturas não ocidentais. Todas as práticas culturais ocidentais consideradas neste livro, de maquiagem a labioplastia, se encaixam no critério para identificação de práticas culturais danosas. Eu argumento que elas criam papéis estereotipados para os sexos, são originadas da subordinação da mulher e são para benefício dos homens e justificadas por tradição. É certamente possível argumentar, como demonstro no capítulo 6 sobre maquiagem, que mesmo práticas que aparentam ter menos efeito na saúde de mulheres e meninas, como o uso de batom, podem ser prejudiciais. Apesar de práticas de beleza ocidentais serem raramente forçadas por violência física, elas são todas culturalmente reforçadas. Falhar em usar maquiagem e em depilar as pernas e axilas pode não ser “suicídio social” em culturas ocidentais mas irá, como sugiro no capítulo sobre maquiagem, afetar a habilidade de mulheres em conseguir e manter emprego e nível de influência social. Era exigido que as mulheres do parlamento britânico que mencionei usassem roupas femininas e que mostrassem as pernas se quisessem ter qualquer legitimidade na legislatura e era improvável que sobrevivessem se permitissem que os pelos das axilas aparecessem nas blusas ou que pelos das pernas aparecessem em suas coxas. Entretanto estou consciente de que o grau de dano inflingido por práticas como cirurgia cosmética e uso de batom não é igual. A implicação de reconhecer práticas de beleza ocidentais como práticas culturais danosas é que os governos irão, como requerido pela Convenção da ONU sobre Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra Mulheres, precisar alterar as atitudes sociais que os baseiam. Em caso de algumas práticas de cirurgia cosmética as consequências são suficientemente severas e a regulação tão facilmente efetuada por penalidades legais sobre praticantes médicos que poderiam ser terminadas através de meios legais. O uso de batom e a depilação, entretanto, não devem ser consideradas práticas isentas de ser consideradas danosas e requerem medidas, apesar de medidas legais não serem apropriadas. Elas marcam mulheres como subordinadas e claramente demonstram os papéis estereotipados dos sexos mesmo não sendo tão severas em seu impacto na saúde das mulheres. O papel dos governos comprometidos com o fim de tais práticas, ou mesmo o simples alívio do impacto da exigência culturais que devem cumprir, deve portanto ser de combater a criação de diferença sexual, em ideias e atitudes, práticas de negócios, que inscrevem essa noção na fundação da cultura ocidental. Em capítulos posteriores eu examino as práticas de maquiagem, salto alto e cirurgia cosmética em mais detalhes para mostrar como são reforçadas e quais são suas consequências para a saúde das mulheres e acesso a prerrogativas comuns que homens em sociedades ocidentais provavelmente nem valorizam: aparecer no espaço público com a cara lavada, correr, ter tempo de lazer livre da necessidade de manutenção do corpo. Leitores poderão tirar suas conclusões sobre incluir essas práticas na compreensão da ONU. No próximo capítulo eu amplio as definições de práticas de beleza femininas na cultura ocidental através da travestilidade/transsexualismo. A performance de práticas de beleza por homens mostra que esse comportamento não é biologicamente conectado a mulheres. Mas faz mais do que isso. Como eu procuro demonstrar aqui, praticantes masculinos obtém prazer sexual de tais práticas porque elas demonstram status subordinados. Isso apoia a compreensão de práticas de beleza como comportamentos de deferência de um grupo subordinado.

CAPÍTULO 3, PARTE 1 TRANSFEMINILIDADE

Homens “montados” revelam a nua realidade do poder masculino. Práticas de beleza e feminilidade caminham juntas mas não são essencialmente propriedades das mulheres. Neste capítulo eu analiso a feminilidade praticada por homens para iluminar os significados culturais desse comportamento. O fato de que homens podem ser expoentes mais ardentes da prática da feminilidade do que mulheres tem se tornado mais claro em décadas recentes conforme a profissão médica, a pornografia e a internet espalharam um culto massivo à feminilidade entre homens na forma do transsexualismo, transgenerismo e travestismo. Feminilidade é sexualmente excitante para homens que a procuram porque representa status subordinado e dessa forma satisfaz interesses sexuais masoquistas. A feminilidade masculina é bem diferente da feminilidade que é uma exigência do status subordinado das mulheres, porque as mulheres não escolhem a feminilidade mas tem que se curvar a ela. Feminilidade não é uma forma de fantasia sexual para mulheres mas sim o difícil e frequentemente ressentido trabalho requerido daquelas que ocupam o status social subordinado. Entretanto as formas que a feminilidade aparente tomam são bastante similares em ambos os casos e as práticas de beleza são idênticas. Enxergar o que homens fazem dela irá mostrar que a feminilidade, ao invés de ter qualquer conexão com biologia, é socialmente construída como o comportamento de subordinação.

DEFINIÇÕES DE TRAVESTISMO/TRANSSEXUALISMO
A prática da “feminilidade” por homens tem sido, e ainda é largamente definida e corroborada pela medicina. Sexólogos do século XIX deram nomes e diagnósticos para comportamentos que não se encaixavam nas compreensões de masculinidade e feminilidade “corretas” (Jeffreys, 1985). Eles estavam envolvidos em controle social do comportamento desviante que era visto como ameaça à família heterossexual que está na base da dominância masculina. No século XX esses comportamentos “anormais” se tornaram domínio da psiquiatria. Até recentemente a medicina tem tendido a afirmar que existem claras e identificáveis diferenças entre travestis, que simplesmente gostam de se vestir com roupas femininas ocasionalmente e transexuais, que querem viver como mulheres. A criação dessa distinção foi necessária para que médicos pudessem identificar os que mereciam cirurgia e os que não eram entendidos como transexuais “reais”. Transexuais foram identificados como os que sofriam de uma condição médica de transtorno de identidade de gênero no qual se consideravam mulheres e isso foi explicado como uma primariamente biológica, ou ao menos uma distinta e essencial, condição.
Feministas construcionistas sociais não aceitaram essa explicação biológica. Na primeira e ainda assim mais compreensiva crítica feminista à construção da medicina do fenômeno do transexualismo (publicada primeiramente em 1979), Janice G. Raymond explica que a “causa primeira” do fenômeno é a ideia política de que devem haver dois gêneros distintos que fundam a sociedade patriarcal (Raymond, 1994). Ela enxerga transsexualismo como uma construção da ciência médica feita para atingir três propósitos: lucro para cirurgia, experimentações com objetivo de se dominar a construção de partes do corpo e propósito político de alocação em categorias aceitáveis de gênero dos rebeldes de gênero que são vistos como perturbando o sistema de dois gêneros da dominância masculina. O transexual, ela argumenta, simplesmente troca um estereótipo pelo outro e dessa forma reforça o tecido social sexista. Transsexualismo, nesta análise, é profundamente reacionário, uma forma de prevenir a ruptura e eliminação de papéis de gênero que estão na base do projeto feminista, e “A solução médica transforma-se em um ‘tranquilizador social’ reforçando o sexismo e sua fundação de conformidade com o papel sexual” (Raymond, 1994, p. xvii).
A crítica feminista não tem, infelizmente, feito com que os sexólogos parem de dominar e reforçar as categorias de transfeminilidade. A distinção que sexólogos fazem entre travestismo e transsexualismo tem sofrido uma grande tensão no tempo da Internet com materiais, grupos e revistas na web espalhando uma proliferação de práticas e fronteiras rompidas (McCloskey, 1999). Os que podem uma vez ter se classificado como travestis – ou seja, homens heterossexuais que permanecem com suas esposas e ocasionalmente se travestem para seu prazer – agora podem ter acesso a hormônios e mais facilmente passar para o transsexualismo. Alguns desses homens agora dizem a médicos que querem ser metade transsexuais, ganhando seios mas mantendo seus pênis (Blanchard, 1993). Eles então retém a habilidade de experienciar a excitação do masoquismo associada a ter seios, através de seus pênis. O aumento de seios, ou ginecomastia, pode ser alcançado por meio de tratamento hormonal.
Apesar de alguns crossdressers sustentarem que existe uma clara distinção porque eles não querem ser tentados pela homossexualidade, outros ficam felizes em dizer que existe uma pequena diferença. Charles Anders, autor de The Lazy Crossdresser (2002), nos diz que existe uma diferença bem pequena entre crossdressers e transsexuais, “Existe uma piada comum na comunidade transsexual: ‘Qual a diferença entre um crossdresser e um transexual? Dois anos.’ Às vezes a parte final é ‘um ano’. Muitos, talvez a maioria de transsexuais homem-para-mulher começam como crossdressers, então tendem a ver travestis como seu estado larval” (Anders, 2002, p. 5). Peggy Rudd, autora de um manual de instruções para esposas de crossdressers, cita uma pesquisa na qual crossdressers foram perguntados se fariam cirurgia se pudessem pagar (Rudd, 1999, p. 91). Aparentemente 24% “deixaram a questão em aberto” e o que determinou sua resposta foi quanto apoio têm de duas esposas e famílias para ser crossdressers; isto é, nada a ver com se eram “realmente” mulheres. Rudd diz, “Então mulheres devem aceitar ou homens farão cirurgia” (1999, p. 91). Biologia não é vista como tendo muito a ver com isso. Os homens estão fazendo escolhas sobre o quão longe querem ir.
Nos anos 1990 um movimento transgênero surgiu no qual homens e algumas mulheres alegaram que a operações de ressignificação de gênero não eram necessárias àqueles que “transicionaram” de um “gênero” para outro (Bornstein, 1994; Raymond, 1994) porque eles poderiam ser transgêneros em suas mentes, e por assumir a aparência do gênero oposto enquanto mantinham suas partes do corpo intactas. A vasta maioria dos que agora estão sob o guarda-chuva de políticas “transgênero”, entretanto, fizeram cirurgia ou tomam hormônios para que seus corpos mudem de alguma forma. Alguns ativistas transgêneros alegam que sua prática era revolucionária porque estavam mostrando que “gênero” era socialmente construído ao invés de “natural” ao adotar o gênero feminino como fisicamente inteiramente homens biologicamente e vice versa. De fato, como eu argumentei em outro lugar, a ideia de “gênero” transitando é essencial ao reforçar a necessidade da feminilidade e masculinidade (Jeffreys, 1996). Bernice Hausman (2001) fornece uma crítica efetiva ao que ela vê como defesa “queer” do transsexualismo como atividade revolucionária que transgride o gênero. Ela diz que Kate Bornstei e outros teóricos queer da prática:
Sugerem um certo essencialismo de gênero: que gênero como uma forma de organização identitária é central para o projeto humano, que cada indivíduo tem um gênero ou acredita em si como um gênero, ou que o gênero em alguma tendência (como binário ou plural) é necessário para ou ao menos inevitável parte do tecido social.
(Hausman, 2001, p. 473)
Feministas que querem destruir o gênero, porque o enxergam como um produto da dominância masculina, não “transicionam” de gênero, elas simplesmente passam por cima dele. Transgêneros são tão apegados a noção de gênero, mesmo que de um diferente do que vieram, que gastam enormes quantias de tempo, energia e dinheiro para obter seu gênero escolhido. Políticas transgênero são fundamentalmente conservadoras, dedicadas a reter os comportamentos das classes dominante e subordinada da supremacia masculina – masculinidade e feminilidade.
O movimento transgênero pede por reformas legais, médicas e sociais e para ser isento de análise política, sobre a base de que transgêneros são uma maltratada minoria biologicamente distinta. Como minoria, argumenta a organização americana, Aliança Nacional de Advocacia Transgênera (NTAC), eles sofrem:
Injúria, perda de emprego, dificuldade de ser recontratados, perda de seguro, divórcio e perda da visitação dos filhos, ligações telefônicas obscenas e outros tipos de violência de ódio, rejeição dos pais e irmãos, corte em lugares de adoração, aborrecimentos causados pela polícia entre outros.
(Aliança Nacional de Advocacia Transgênera, 2000)
NTAC faz campanha para que homens que “se constroem mulheres” (MTFs) e mulheres que “se constroem homens” (FTMs) sejam capazes de ter casamentos “gay” e não ter que revelar seu status genital para ser legalmente aceitos como membros de seu “gênero” escolhido, ou seja, tomar hormônios sem cirurgia é suficiente.
Por trás da escolha pela feminilidade por parte de homens está sua fascinação por exercer o papel subordinado de “mulher” para a satisfação sexual masoquista que isso oferece. Para um numero que crescente de homens, a julgar pela pornografia, sites, lojas e serviços que os servem, os comportamentos e privilégios da feminilidade são um tipo de brinquedo sexual. Neste capítulo eu analiso esses recursos da internet para mostrar que as práticas masculinas de feminilidade não são sobre ser “mulheres” mas sobre adotar os comportamentos prescritos socialmente para o grupo subordinado para aproveitar a satisfação sexual masoquista. Eu argumento aqui que o transgenerismo por parte de homens precisa ser entendido como originado em uma fantasia sexual socialmente construída ao invés de um constituinte de condição biológica. Travestismo, transsexualismo e transgenerismo podem ser vistos como sendo práticas sexuais ao invés de tornar aqueles criados como “homens”, “mulheres”. De fato ser criado como “homem” pode ser uma precondição necessária a prática da feminilidade por homens. Eles perseguem a “feminilidade” porque ela representa a oposição subordinada à masculinidade e oferece os prazeres do masoquismo. Essa busca pode ter significado apenas para homens que entendem que seus prazeres masoquistas se dão em contradição a seu status masculino. Masculinidade produz o comportamento “feminino” de homens ao invés de estar em contradição a ele.
Existe um certo apoio da medicina à compreensão da prática da feminilidade por homens como uma fantasia sexual. Ray Blanchard, um psicólogo no Instituto Clarke em Toronto, um dos dois lugares que realizam cirurgia transsexual no Canadá, cunhou o termo “autoginofilia” para descrever “a propensão do homem a ser excitado sexualmente por pensar em si mesmo como uma mulher” (Blanchard, 1989, p. 616). Blanchard desenvolveu pesquisas com homens que foram à clínica reportando disforia de gênero e procurando por cirurgia transsexual. Ele, de certa forma arbitrariamente, divide esses homens em heterossexuais e homossexuais de acordo com o objeto primário de seu interesse sexual. Disfóricos heterossexuais são homens que procuram permanecer com suas esposas ou parceiras mulheres e estão propensos a definir a si mesmos como “lésbicas” se fizerem a cirurgia. Homossexuais ou androfílicos disfóricos de gênero são aqueles que são sexualmente atraídos por homens e permanecem dessa forma se realizam a cirurgia. Os homens que se identificam como heterossexuais são colocados em categorias de “autoginófilos” Os que procuram cirurgia transsexual exibem a forma mais extrema do comportamento autoginófilo. Eles são excitados sexualmente pela fantasia de si mesmos em corpos femininos.
Em formas menos extremas, autoginófilos se excitam sexualmente por coisas como vestir roupas “de mulher” ou envolver-se em atividades “de mulher”. Em um caso que Blanchard descreve o homem teve “fantasias masturbatórias iniciais” ao “ajudar a empregada a limpar a casa ou que estava sentado em uma aula de meninas na escola (…) suas atuais fantasias masturbatórias eram fazer tricô em companhia de outras mulheres e estar no salão de beleza com outras mulheres” (Blanchard, 1991, p. 236). Outro paciente “ficou sexualmente excitado ao depilar as pernas e contemplar o resultado” (p. 237). A infindável corrente de relatos autobiográficos de suas motivações por crossdressers orgulhosos que tem sido publicada nos últimos anos torna claro que a excitação sexual é o que os motiva (McCloskey, 199; Anders, 2002; Miller, 1996). O crossdresser heterossexual “Rachel Miller” escreve “Se homens percebem algo como sexy em uma mulher, por que não poderiam ver isso como sexy em si mesmos? Parece razoável para mim” (Miller, 1996, p. 55). Isso parece razoável para mim também, que homens também podem projetar as roupas e o comportamento que representa a subordinação de mulheres para sua excitação, ou pegar um atalho no processo ao adotar isso em si mesmos. Ele entende que mulheres representam “sexo” e o que é “sexy”, perguntando “Querer ser sexy é algo exclusivo para mulheres?” (p. 55).
Mas essa compreensão, de que o interesse masculino pelos enfeites da posição subordinada da mulher é sexual, é controversa. Muitos transsexuais homem-para-mulher e seus profissionais médicos rejeitam isso porque consideram desrespeitoso a sua experiência. A medicina tem encorajado transsexuais a desenvolver complicadas histórias sobre como eles sempre souberam que eram mulheres presas em corpos masculinos. As histórias orais requeridas são modeladas pelas histórias dadas por homossexuais homens para sexólogos no final do século XIX e no início do XX (Weeks, 1977). Os “invertidos” entrevistados por Havelock Ellis, por exemplo, eram identificados como pessoas que, por algum processo misterioso, tinham cérebros de mulher aprisionados em corpos de homem (Ellis, 1913). Naquele tempo a homossexualidade era entendida como biologicamente determinada por uma falha no desenvolvimento sexual. Homossexuais homens eram vistos como essencialmente femininos e lésbicas como essencialmente masculinas. Cirurgia transsexual não estava disponível. Quando tal cirurgia se tornou disponível nos anos 1950, histórias de ter uma alma de mulher em um corpo de homem foram interpretadas como critério para diagnosticar uma nova categoria de pessoa construída pela ciência médica, o transsexual.
Aspirantes a cirurgia transsexual no presente têm de contar a história correta, como de ter sentido que eram “realmente” mulheres desde que eram crianças pequenas, para que se determine que merecem a cirurgia: para ser vistos como os “reais” (Jeffreys, 1990). Entretanto alguns homens têm ficado impacientes com o controle da medicina. Eles querem cirurgia sob demanda e não ter que inventar histórias para merecer. Donald (Deidre) McCloskey diz que teve que “mentir” para os médicos, para se encaixar na história requerida para que obtivesse a cirurgia. Mas ele desdenha as tentativas da medicina de manter o controle. Sua atitude era “Oh, sim, doutor, qualquer coisa que sua lista diga” (McCloskey, 1999, p. 145). Ele cita em apoio a este conteúdo a declaração de Pat (agora Patrick) Califa de que a cirurgia deveria ser um “direito inalienável” e transsexuais não deveriam ter que recitar um catálogo de sintomas (2002, p. 144).
Nem os médicos que acreditam que existem transsexuais “reais”, nem os transsexuais que querem a cirurgia têm procurado ver o transsexualismo como uma simples forma de desvio sexual derivado do desejo por excitação sexual masoquista. Em alguns países a cirurgia transsexual está disponível em planos de saúde do Estado ou privados sob os argumentos de que isso é um tratamento necessário para a doença de ter uma mente de sexo diferente do corpo no qual reside. Se o transsexualismo é entendido como uma forma de fantasia sexual então os planos de saúde não pagariam. Como resultado muitos transsexuais e seus grupos ativistas rejeitam a noção de que o transsexualismo é sobre qualquer outra coisa que não homens “realmente” sendo mulheres.
A pesquisa de Blanchard dividiu a rede transsexual internacional. Um influente homem-para-mulher, Anne Lawrence, psicoterapeuta, acredita que o conceito de Blanchard de autoginofilia caracteriza sua experiência muito bem, e também a de centenas de outros MTFs, muitos dos quais têm sua história em seu site (Lawrence, acessado em 2002) Lawrence enxerga a si mesmo como um dos membros do grupo heterossexual “que são atraídos por mulheres, que tiveram bastante sucesso como homens, e que não parecem notavelmente femininos”. Que força, ele pergunta, poderia ser poderosa o suficiente para fazer com que tais homens “desistissem de seu lugar no mundo”; ou seja, dominante status masculino. Isto é, ele concorda com Blanchard, “desejo sexual – nosso desejo sexual de feminilizar nossos corpos”. Outros MTFs tem sido menos intensos sobre autoginofilia. “Dr. Becky” diz que o conceito pode ser usado para apoiar a ideia de que transsexuais são apenas envolvidos em uma escolha de estilo de vida e isso poderia “negar nossa validade” e criar “mais dúvida e culpa”. Se o conceito de autoginofilia fosse aceito poderia ser mais difícil obter cirurgia já que transsexuais poderiam der vistos com “mais ceticismo”. Poderia haver menos chance de proteção legislativa dos direitos dos transgêneros e poderia ser mais difícil fazer com que planos de saúde cobrissem o processo de transição (Dr. Becky, 1998).
Muitos transsexuais, como Dr. Becky, frisam que sua decisão de ser cirurgicamente mutilados não foi resultado de um desejo sexual mas de uma condição biológica. Lawrence responde a esse ponto dizendo que certamente a vasta maioria dos transsexuais heterossexuais começam com poderosa excitação sexual com relação a ser uma mulher, mas quando chegam ao ponto da cirurgia, isso pode ter se aquietado virando algo que apenas parece natural e não é mais tão urgentemente excitante. Donald McCloskey apoia essa noção ao afirmar que no momento em que decidiu que não seria apenas um crossdresser heterossexual mas queria “transicionar,” “A parte sexual começou a sumir, algo novo em seu crossdressing, que ele não notou” (McCloskey, 1999, p. 20). Lawrence também aponta que grandes porcentagens, até um terço, dos homens classificados por Blanchard como andrófilos (que se relacionam com homens sexualmente antes e depois da cirurgia) também têm histórias de achar os trajes femininos e a ideia de ter um corpo de mulher sexualmente excitante. A criação de limites rigorosos entre transsexuais “heterossexuais” e “andrófilos” pode ser uma batalha perdida em si mesma. As autobiografias de crossdressers e seus websites certamente sugerem que muitos são interessados em homens tanto quanto mulheres, ou interessados em homens enquanto vestem roupas femininas, em qualquer taxa.
O entusiasmo pela feminilidade na cultura gay masculina requer maiores explicações. A busca por excitação sexual masoquista ao praticar os comportamentos da classe subordinada de mulheres é provavelmente uma força condutora, mas a homossexualidade masculina tem sido associada com feminilidade na sexologia ao longo da história de tal ciência. Homens homossexuais nos séculos XIX e XX provavelmente se consideravam de alguma maneira “femininos” por sua deslealdade à masculinidade heterossexual. Isso foi interrompido nos anos 1960 pelo butch shift, inspirado pelo sucesso da liberação gay, que permitiu que homens gays escapassem do estereótipo a afeminação e aspirassem a entrar na categoria de homens “reais” através do emprego do comportamento e estilos masculinos (Jeffreys, 2003). Esse butch shift é mais evidente no desenvolvimento da prática do sadomasoquismo gay, descrito por críticos e praticantes (Levine, 1998; Preston, 1993) como um “teatro de iniciação” no qual homens gays eram admitidos na masculinidade. Como a afeminação não era mais um requisito para homens amarem homens, a busca pela afeminação no travestismo e no transsexualismo precisa ser explicada. O dano causado pelo abuso sexual de crianças e pela prostituição é uma explicação. Isso pode fazer com que alguns garotos procurem sair dos corpos nos quais foram abusados ou possivelmente cair de volta na categoria padrão de feminilidade uma vez que seu caminho para o poder masculino foi bloqueado por ter sido subordinados por agressores homens (Webb, 1996). Outra explicação é que o bullying e o assédio aos quais alguns jovens homens, suspeitos de ser insuficientemente masculinos são submetidos na escola e na infância danifica suas chances de entrar no status político superior de masculinidade e pode fazer com que recorram ao suposto oposto (Plummer, 1999). Na cultura gay, bem como na cultura heterossexual, a ideia de que existe uma alternativa ao gênero dominante ou ao gênero subordinado ainda não é bem compreendida.
As indústrias que cresceram para servir travestis/transsexuais, quer se identifiquem como heterossexuais ou gays – tais como de roupas e sapatos especialmente desenhados, transformações, treinamento em movimento e voz, todas criadas para treinar e vestir homens na feminilidade tradicional – sugerem que a “feminilidade” que procuram é uma construção social. Não existem industrias similares para mulheres que procuram a masculinidade. O fenômeno do transsexualismo mulher-para-homem, que tem crescido consideravelmente nos anos 1990 graças a internet, não parece ser sobre fantasia sexual mas tem diferentes causas. Tais mulheres são em grande maioria lésbicas antes de buscar pela cirurgia. O fenômeno de mulheres transicionando e querendo permanecer com seus maridos que então têm de se reclassificar como homossexuais, não parece existir. As causas da transição de mulher para homem não parecem estar na excitação envolvida em vestir roupas “de homem.” Como expliquei em outro lugar, as causas estão na opressão de mulheres e lésbicas (Jeffreys, 2003). A primeira causa parece ser a inabilidade de ser feliz amando outra mulher tendo um corpo de mulher, como resultado de um ódio internalizado absorvido de uma cultura de ódio a mulheres e lésbicas. Outra causa está em histórias de abuso sexual e físico por homens que fazem com que mulheres queiram sair de seus corpos, que associam com a vitimização, e ganhar segurança ao se identificarem com o abusador. Algumas mulheres que transicionam querem ter acesso aos privilégios com os quais os homens nascem em virtude de seu status de dominação masculina. Algumas procuram a transição ao chegar na menopausa, o que pode ser um evento traumático para lésbicas que estão tão desesperadas para evitar se tornar mulheres mais velhas socialmente desprezadas que escolhem se tornar “homens” alterados cirurgicamente (Devor, 1999). A indústria da transformação não visa essas mulheres.

A INDÚSTRIA DA TRANSFORMAÇÃO E SEUS CLIENTES

Os centros comerciais que existem especificamente para servir homens não fazem rodeios para afirmar que irão satisfazer as fantasias de seus clientes. Eles não se enxergam servindo uma condição biologicamente determinada mas sim fantasias sexuais masculinas assim como bordéis e clubes de strip fazem, e estes são frequentemente gerenciados por mulheres ex prostitutas que procuram sair da prostituição mas ainda usam suas habilidades para atender as demandas sexuais masculinas. Alguns são gerenciados por esposas de homens que fazem a transição, que foram treinadas para entender e apoiar os interesses sexuais de seus maridos e de outros homens de mentes similares. Outros são gerenciados por travestis. A indústria da transformação é um mercado crescido. A internet oferece centenas de estúdios de transformação para aspirantes a travestis/transsexuais escolherem. Um deles é o “Hidden Woman” (Mulher Escondida) em Reno (Hidden Woman, 2002). Essa loja de transformação e salão de beleza como muitos outros especialistas da vida real e lojas online, vende toda a parafernália que homens precisam para se transformar: lingerie, perucas, enchimentos para colocar em sutiãs e adesivos para mantê-los no lugar, equipamentos para esconder os pênis e calçados de fetiche. A mulher fantasiosa que homens travestidos têm em mente, de acordo com as fotos nesses sites e com o que está disponível na loja, incorpora a exagerada, extrema feminilidade da pornografia. Os sapatos de salto alto tornam andar praticamente impossível. Extremamente pontudos e ridiculamente altos, eles parecem com, e sem dúvida são criados para ser, instrumentos de tortura. Os saltos stiletto têm mais de 15 centímetros. Os lucros a ser conquistados na indústria da transformação são indicados pela etiqueta de preço que indica $1.725, anexada a sessão diária oferecida por Veronica Vera em seu estúdio (Miss Vera, 2002). Veronica Vera tem sido uma ativista e porta-voz de prostitutas. O site ABGender.com se descreve como “O Mais Popular Diretório de Rede e Loja Transgênero da América” (ABGender, 2002). Ele possui uma grande quantidade de estabelecimentos de transformação com títulos como “Escola de Finalização da Miss Erica” e “FemmeFever”. “La Maison de L’Espirit Feminine” (A Casa do Espírito Feminino) anuncia no site que cria “uma atmosfera onde você pode explorar os maravilhosos prazeres normalmente disponíveis somente para (…) o gênero feminino.” Mas esses “maravilhosos prazeres” estão provavelmente apenas disponíveis para homens que decidem incorporar o “gênero feminino”. A prazerosa satisfação sexual masoquista advinda dos equipamentos da feminilidade não é a usual experiência de mulheres que irão frequentemente achar que as práticas de beleza são rotineiras e entediantes. La Maison diz que vai transformar “fantasia em realidade” e assim permitir a satisfação sexual de homens de “se vestir” em um ambiente seguro. “A Woman’s Touch” (Um toque feminino) vai treinar homens para “andar e se movimentar com o equilíbrio da mulher que você se tornou verdadeiramente”. Na “Transformações Incríveis” eles vão criar “O Look da Secretária Sexy” que muitos de seus clientes tem “muito prazer com”. “Transformação no Reino Unido” vende: “Seios realistas, seios de silicone, silhueta de ampulheta, lingerie sexy, vaginas realistas, perucas, calçados femininos, roupas coladas e de sadomasoquismo, meias, baby dolls, cobertura de barba, transformações, joias, unhas pintadas, cílios postiços, luvas, vídeos de transformação, vídeos de sadomasoquismo TV/TS (travesti/transsexual), diversão sadomasoquista, hormônios femininos, desenvolvimento de seios, tratamentos hormonais combinados, terapia de discurso feminino para estudar em casa.” O suprimento de hormônios sugere que não existe uma demarcação rígida entre crossdressers e transsexuais como uma vez existiu. Homens podem adquirir partes do corpo femininas bem como acessórios e roupas. Embora seja crucialmente necessário para muitos travestis/transsexuais ver a si mesmos como muito distintos de drag queens, que se identificam como homossexuais, a distinção não é sempre clara. A lista de estabelecimentos de transformação inclui um Software de Transformação Drag Queen que faz com que homens sejam “Drag Queens por um dia”. Outro aspecto da indústria que se desenvolveu para servir crossdressers é a depilação a laser. A “Rocky Mountain Laser Clinic” oferece “Remoção de Pelos Permanente Para Transgêneros” com fotos de antes e depois (Rocky Mountain Laser Clinic, 2002). Os fornecedores da indústria transgênero também oferecem “Cobertura da Sombra da Barba”, “Cartão de Identificação Pessoal Transgênero” e perucas grandes (Tgnow, 2002). “Frederick’s of Hollywood”, a famosa companhia de roupas íntimas de renda sob encomenda, anuncia no site Tgnow como “Crossdresser Friendly” e diz, “Uma porcentagem muito grande dos clientes da Frederick’s é de Crossdressers!” (Tgnow, 2002). Fredericks oferece calcinhas com abertura na virilha para homens, “babydolls transparentes”, saltos altos e perucas e muito mais. É claro que se o desejo feminino de escapar da vestimenta degradante da feminilidade fosse uma ameaça aos lucros de tais fornecedores de feminilidade fetichista como Fredericks, a demanda de homens facilmente compensaria. As oportunidades de lucro desse interesse sexual de homens são cada vez mais variadas. Um trabalho paralelo lucrativo para um cirurgião cosmético é operar nos rostos de transsexuais para torná-los mais femininos. Douglas Ousterhout de San Francisco diz a seus clientes em potencial que “Parecer feminino é, sem dúvidas, extremamente importante para você. Primeiras impressões são frequentemente baseadas apenas no seu rosto” (Ousterhout, 1995). Ele não apenas faz os tradicionais lift na testa e remoção de gordura, mas também muda os contornos faciais modificando a estrutura óssea, e vai operar nos ossos da testa, queixo, nariz, bochechas e mandíbula, e no pomo de Adão. Ele também realiza implantes capilares e de seios. As fantasias femininas que a travestis/transsexuais da internet tendem a experienciar retornam aos anos 1950 ou a indústria do sexo. Crossdressers frequentemente vestem deliberadamente roupas que associam com prostitutas. Essas são as roupas mais sexistas que se pode imaginar. Charles Anders nos diz que “Garotas recém criadas gravitam ao redor do look sexy por todo tipo de motivos (…). Ou talvez associem vestir-se com uma excitação sexual, então querem vestir roupas que gritem ‘menina safada’” (Anders, 2002, p. 85). As fantasias femininas incorporam ideias extremamente tradicionais e muitas vezes ofensivas do que ser uma mulher pode ser. Vicky Valentine, por exemplo, no site “Transgender Galaxy” é a Miss Setembro de 2002. Seu anúncio pessoal é o seguinte: “Sou uma simpática, divertida garota de 30 e poucos anos vivendo e saindo em Londres. Eu gosto de me vestir o mais feminina que posso e amo saltos altos e meias, vestidos clássicos, e parecer uma vadia às vezes também!” (tggalaxy.com, 2002). O site Transgender Galaxy é fortemente relacionado a indústria do sexo e oferece diversos links onde seus clientes homens podem acessar homens e meninos em pornografia e prostituição. O site parece ser especializado em estereótipos sexuais de raça oferecendo “Transsexuais brasileiros” ou “www.black-tgirls” ou “ladyboy”, que possui “she-males da Ásia” e é ilustrado com o bumbum magro e nu de um jovem asiático que olha sobre o ombro para o espectador. A imagem de feminilidade que alguns travestis adotam é colhida da pornografia. Dessa forma o website “Transformação Travesti” oferece “Volta Às Aulas”, no qual o travesti se veste com um uniforme escolar de menina. O homem senta em um banco com as pernas abertas mostrando a calcinha em um frame e em outro se inclina para que a calcinha apareça claramente (Transformation, 2002). A imagem representa a fantasia heterossexual pornográfica comum de usar sexualmente uma jovem garota mas transposta nesse caso para um corpo masculino. O website “Transsexual Magic” oferece uma definição da pessoa transsexual a qual muitas mulheres rejeitariam como uma definição de feminilidade: “Ela deixa o cabelo crescer e veste roupas sexy e lindas, depila as pernas e tira as sobrancelhas. No dia a dia, ela usa maquiagem e fala com voz feminina” (Transsexual Magic, 2002). Esse website parece ser direcionado a homens que parecem indubitavelmente homens mesmo quando vestidos como mulheres. Aconselha tais homens a desenvolver auras femininas que fazem com que sejam percebidos como mulheres apesar de sua aparência. Eles podem adquirir as auras com afirmações e rituais com velas, “Comece a afirmar que ‘Eu sou perfeita. Eu sou uma mulher. Eu sou linda.’ E as pessoas vão começar a te ver na mesma luz.” Diz, “A maioria dos homens adultos não podem ‘se passar’ por mulheres. Mesmo se a maioria de nós pudermos pagar a cirurgia de ressignificação de sexo e sobreviver, nós não iríamos arrebatar o mundo com beleza radiante.” A autoginofilia desse travesti é clara em sua admiração de si mesmo no espelho. Ele obtém uma boa satisfação ao olhar seu “magnífico par de pernas” e destaca “Embelezado com um par de saltos altos sexy, você vai glorificar o Divino criador de tudo o que é lindo.” Para ter pernas “modeladas e femininas” ele as depila deixando-as “suaves e limpas”. Em alguns websites homens trocam suas dicas de beleza com prazer, já que para eles essas práticas geram excitação sexual. No website “Fórum Transgênero” um homem escreve, “Eu reaplico o batom constantemente durante o dia”, e “Demoro mais ou menos 10 minutos para aplicar toda a minha maquiagem” e “Eu também descobri que aplicar maquiagem líquida em minhas pernas e braços quando uso vestido ajuda a esconder imperfeições” (Transgender Forum, 2002). Ele diz “Eu uso esmalte vermelho nas unhas dos pés porque acho muito sexy.” A maioria dos travestis/transsexuais que acessam esses websites são heterossexuais e procuram permanecer com suas esposas e se denominarem lésbicas. As esposas nem sempre ficam felizes quando seus maridos embarcam na feminilidade como fantasia sexual e os websites falam disso. Um novo termo para travestis que procuram permanecer com suas esposas é t-girls (meninas-t). No site de Renee Reyes ele fornece um “guia de sobrevivência para meninas-t” – isto é, como manter esposas e fazer com que aceitem a prática do crossdressing (Reyes, 2002). Ele diz que “as meninas-t mais felizes e equilibradas que conheci ao longo dos anos eram casadas com mulheres geneticamente” em casamentos “tradicionais”. Ele oferece uma lista dos benefícios para mulheres de ter um “homem transgênero” como parceiro para ganhar a complacência das esposas. Um dos “benefícios mais convincentes” é que as meninas-t “apreciam a beleza interior da feminilidade – muitas vezes ainda melhor do que suas parceiras mulheres”. Existe um fundo de verdade nisso. Muitas mulheres não veem beleza interior nas extremas práticas da feminilidade na qual esses homens se envolvem. Elas podem ver os saltos muito altos, as saias curtas e a maquiagem como degradantes e uma perda de tempo. Travestis/transsexuais estão envolvidos com a ideia antiquada, desconfortável e degradante ideia de feminilidade que muitas mulheres rejeitam no presente. Eles representam um arquivo de práticas obscuras e estão propensos, infelizmente, a sustentar uma feminilidade fossilizada no futuro porque é o que os excita. A ideia de Reyes sobre feminilidade é que ela significa uma obsessão trivial com compras e novos vestidos, uma visão dos anos 50. Dessa forma, “pequenos bônus” são maridos travestis/transsexuais que irão passar o tempo fazendo compras com suas esposas e “a esposa ganha um novo vestido – cada vez que ‘ela’ compra um”. Esposas são aconselhadas a “se envolverem” na “brincadeira” com maridos travestis/transsexuais na qual o casal viaja entre estados para um lugar onde travestis se encontram para se vestirem com privacidade. Alternativamente a esposa pode mandar o marido para fazer crossdressing enquanto fica em casa. Esposas devem se entregar ao crossdressing dos maridos, como é dito a elas, porque esses homens não escolhem seu comportamento e não podem se controlar, então quer a esposa goste quer não “a natureza seguirá seu curso”. Mulheres devem se envolver ou seus maridos farão “algo estúpido que vai resultar em vergonha para a unidade familiar” ou “voltar para casa com uma doença venérea fatal” ou “desenvolver um novo relacionamento amoroso com alguém que aceite o transgenerismo”. Todas essas ameaças são feitas para ganhar a cooperação forçada de esposas. É dito as esposas que seus maridos seguirão em frente de qualquer forma e irão envergonhar, infectar ou deixá-las se não forem coniventes. A internet criou uma nova classe de transsexuais. Eles creditam a rede por inspirar seu desejo pela transição. Donald (Deirdre) McCloskey é um conservador professor americano de economia. Ele se vê como um homem heterossexual crossdresser e tem “se vestido” desde os 11 anos. Ele era casado, com dois filhos (McCloskey, 1999). Quando tinha 53 anos ele encontrou os recursos disponíveis sobre travestis/transsexuais na internet e decidiu que era na verdade uma mulher: “Aqui era uma biblioteca especialmente criada para a excitação sexual de crossdressers, e excitado ele estava” (1999, p. 20). Ele explica dessa forma: “Parece haver dois padrões: ou você sempre soube que tinha o gênero errado ou você construiu uma barragem psicológica contra a compreensão, que de repente rompe, geralmente na idade adulta” (p. 79). Donald considera que tinha tal barragem. Ele não está preparado para ver a si mesmo como simplesmente fazendo uma escolha. Sua esposa não podia cooperar então ele disse a ela que ela era “uma falha como esposa” e não “sabia o que o amor significa”, enquanto era confortado por suas “unhas pintadas de vermelho” (p. 61). Ele já tinha atingido o auge das realizações como professor e sua decisão de se identificar como “mulher” não danificou sua carreira, ele foi simplesmente redefinido como mulher e estava apto a ganhar pontos de oportunidade extra em sua universidade pois havia poucas mulheres professoras em economia. Para homens como McCloskey, submeter-se a cirurgia transsexual é um privilégio de sua classe e status de gênero. Muitos homens que transicionam atingiram prosperidade e segurança através do privilégio masculino e queriam algo um pouco diferente. Os travestis/transsexuais heterossexuais podem ser pilares do poder. Um artigo de jornal sobre o studio de transformação “Escola de Meninas da Rebecca” nos diz que os clientes são majoritariamente do grupo de lobby Transgender Education Association (TGEA), que representa os interesses de crossdressers, drag queens e transsexuais antes e depois da operação (Vitzhum, 1999). Na festa de halloween do TGEA no Studio, um terço dos homens sentou ao lado de suas esposas e namoradas. Eles eram considerados como um “grupo conservador”. “Debbie”, por exemplo, é um coronel aposentado. Muitos desses homens conhecidos parecem ter interesse na feminilidade como um hobby na aposentadoria. Alguns dos homens estavam na força policial. O status desses homens na estrutura de poder e dominância masculina pode explicar o motivo pelo qual sua visão de feminilidade é tão conservadora. Também pode explicar o porquê de eles terem o poder e influência marcantes que o lobby transgênero conseguiu em países ocidentais. Eles têm influência para mudar leis e proteger seu hobby, e sistemas legais de muitos países agora incorporaram a proteção aos direitos dos transgêneros – isto é, de ser aceitos como mulheres e não discriminados. De fato um dos grupos de lobby transgêneros nos Estados Unidos, GenderPAC, que dá conferências sobre “gênero” todo ano, afirma como missão “GenderPAC acredita que o gênero deve ser protegido como um direito civil básico” (GenderPAC, n. d.). Isso é um grande problema para feministas que desejam eliminar o gênero ao invés de protegê-lo.

TRANSFEMINILIDADE COMO MASOQUISMO

A internet tem facilitado muito a busca por esse hobby. Alguns homens, ao que parece, agora se tornaram transsexuais porque descobriram o quão excitante é fingir ser mulher em salas de bate-papo de sexo. Dessa forma, Peter diz que “Como muitos transsexuais atualmente”, teve uma “experiência de conversão no cyperespaço”. Ele começou a fazer sexo virtual como Trina ou Gina, e descobriu que “a proporção homem-mulher era favorável, e ser procurada por homens era tão emocionante como Peter tinha sonhado. Em 1996, ele começou a usar a internet para pesquisar hormônios e cirurgia de ressignificação de sexo” (Vitzhum, 1999). Peter se diz “lésbica”. Ele é bem aberto sobre o fato de que ser uma mulher significa masoquismo para ele, e diz: Nós nem falamos sobre masoquismo. Eu acho, sexualmente, que existe um desejo de ser punido, e parte daquilo é a ilusão do que as mulheres são. Que elas estão lá pare ser objetos sexuais e para ser objetos de punição. Isso tudo meio que caminha junto… Existe um aspecto de degradação nisso, em abrir mão do controle. Parte de toda a experiência transsexual é viver aquela fantasia de abrir as pernas e ser fodida.

(Vitzhum, 1999)
O autor crossdresser Charles Anders observa:

Pode ser politicamente incorreto, mas estou supondo que muitos caras associam usar enchimentos e meia calça com um papel passivo, receptivo no sexo(…) Para alguns caras, se tornar feminino pode ser parte de uma fantasia de submissão, na qual outra pessoa os amarra e espanca, ou os veste como uma empregada francesa chamada Fifi e os faz servir cannolis de joelhos.

(Anders, 2002, p. 10)
A pornografia transgênera sugere fortemente que a excitação de travestis/transsexuais é o masoquismo. O site Transgender.Magazines.co.uk vende 17 revistas, das quais 11 contêm temas masoquistas claros, a julgar pelas descrições. Os títulos incluem “Feminização Forçada”, “Travesti Empregada Servente”, “Loja de Sexo Forçado”, “Travesti Humilhada”, “Travesti Escrava Sexual”, “Travestis Escravizadas” (Revistas Transgêneras, 2002). Um tema constante na pornografia transgênera é de homens tendo maquiagem e roupas femininas colocados neles a força. Os editores de Best Transgender Erotica (Blank e Kaldera, 2002) dizem que eles procuram especificamente por algo diferente para colocar em sua publicação que não é apenas sobre homens sendo forçados a colocar roupas “femininas” e maquiagem por outros: “Em nossa chamada por inscrições, nós desencorajamos ativamente escritores de inscrever quaisquer exemplares de histórias tradicionais de feminização forçada (…) Mãe feminiza filho a força, Tia feminiza sobrinho a força… e por aí vai” (p. 10).
O masoquismo que está na raiz do crossdressing é claro nos vários sites de fetiche com batom também, porque na cosmologia do fetichismo dos homens, o batom é associado ao sadomasoquismo. Batom é uma importante parte do arsenal das dominatrixes da indústria do sexo que atendem esse aspecto da sexualidade masculina. Mas, mais importante ainda, uma parte crucial desse sadomasoquismo com batom é que os clientes homens são forçados a usar batom e isso simboliza sua humilhação e submissão. Um site chamado “Bomis: The Lipstick Fetish Ring” (Bomis: O Ringue do Fetiche com Batom) tem links que levam a sites tais como “O Lounge de Amantes dos Lábios e do Batom, Fórum de Fetiche de Buster, Batom dos Anjos/Site de Fetiche com Calcinhas, Boquetes de Batom, Sexo de Batom e Maquiagem, Granadas Pintadas, shots em Adolescentes (Imagens de meninas adolescentes de maquiagem)” e muitos outros (Bomis: The Lipstick Fetish Ring, 2004). A “Livraria Batom e Couro” (associada a Amazon.com) reproduz o som de um chicote estalando quando se entra no site e toda vez que escolhe um item (Lipstick and Leather Books, 2002). Esse site fornece fotos de um grande número de dominatrixes, que usam uma boa quantidade de batom e o aplicam. Cada “amante” tem um website a ser visitado e listas de material sadomasoquista para leitura que se conecta a Amazon. Em uma página está a instrução “para outro beijo do chicote por favor clique nos lábios com batom”. Os clientes homens claramente exigem riqueza de detalhes sobre batom já que cada amante identifica seu batom favorito e mostra nos lábios.
No mesmo site está uma página chamada “Amores de Batom da Deusa Tika” (Goddess Tika Lipsticked Luvs, 2002). Tika é uma dominatrix. O site contém histórias criadas para estimular a ejaculação nos clientes homens e dá uma boa indicação do que os clientes submissos buscam em uma amante quando visitam bordéis. As histórias têm basicamente dois ingredientes. A dominatrix faz o homem submisso babar enquanto ela aplica o batom, ou ele é forçado por uma mulher a passar batom em si mesmo, ou a se submeter a ter batom passado em sua boca. Esse é o momento de máxima humilhação e, presumivelmente, ejaculação. Em um conto chamado “O ‘poder do lábio’ de uma Deusa!”, a dominatrix escreve, “Eu sou uma ‘Deusa Cruel’, torturo meus escravos com meus lábios”, e “Eu às vezes passo meu batom na frente dos meus escravos enquanto eles assistem. Eu os ordeno a assistir meus lábios de Deusa e imaginar que são ‘Homens o suficiente’ para tocar tais lábios cheios e macios.” Em um conto chamado “O Golpe da Maquiagem” um homem submisso descreve seus sentimentos ao ser maquiado como mulher: “Você continua a delinear minha boca com força. Eu sabia que agora estava em um vermelho vivo. Meu pau começou a pulsar (…) Ondas de emoção subiram e desceram pelo meu pescoço e cabeça (…) indo e voltando entre admiração e terror” (Goddess Tika’s Lipsticked Luvs, 2002). Ele então é ameaçado com a aplicação de blush e rímel e diz “Eu estava tão humilhado por querer tanto tudo isso que poderia sofrer até o ponto de respirar com dificuldade”, e então ele tem mais ondas de emoção. Ele termina “usando mais maquiagem do que a vendedora”! Em outro conto na seção “4 contos de submissão” um narrador homem escreve que a amante “começa a provocar meus lábios com sua caixa de batom (…) Eu quase não consigo me controlar”. Essa página contém um teste de personalidade do batom no qual homens podem olhar oito diagramas do formato no qual os batons ficam danificados depois que eles usam, e descobrir qual personalidade se encaixa em seu perfil. É difícil imaginar mulheres que usam batom porque é obrigatório em seu ambiente de trabalho, ou pelo hábito enraizado desde a infância, tão encantadas com detalhes, mas os fetichistas do batom não são mulheres. O papel da mulher é dar prazer ao fetichista homem ao usar o fetiche ou aplicá-lo em clientes homens em bordéis. O fato de que o uso de batom é deliciosamente “humilhante” para homens torna claro que o batom representa, para eles, o status inferior de mulheres. O batom não eleva o status da mulher, ao menos que estejam na indústria do sexo como dominantes, mas simboliza a subordinação.
Para homens conservadores que querem obter as excitações sexuais do masoquismo pode parecer impossível permanecer “homens” porque eles associam a masculinidade com a dominância. Mas mulheres e lésbicas não baseiam sua autodefinição no masoquismo sexual. Isso não é o centro da compreensão de nós mesmas como é para autoginófilos como Peter do TGEA. Há uma arrogância na pressuposição da parte de tais homens que seu interesse sexual na subordinação os torna mulheres, e concomitantemente fazer campanha para reformar a legislação de discriminação sexual para que seu entendimento peculiar de si mesmos como mulheres seja protegido pela lei como feminilidade.

CAPÍTULO 3, PARTE 2 O CONSERVADORISMO DO CROSSDRESS

Quando homens são “travestidos” a nua realidade da dominância masculina torna-se clara. Esse comportamento masculino surge do poder e privilégio dos homens e cria graves problemas para esposas. As esposas de crossdressers acham o comportamento dos homens profundamente perturbador e sofrem para manter seus casamentos porque terminar o casamento e tornarem-se mulheres pobres e solitárias parece, para muitas, uma alternativa pior. Como homens que se travestem tendem a ser conservadores em seus valores, assim são, ao que parece, suas esposas. As esposas se sentem traídas e usurpadas quando seus maridos de repente começam a reproduzir feminilidade. Peggy Rudd é a autora de My Husband Wears My Clothes (Meu Marido Veste Minhas Roupas) (1999), que é um manual de instruções para as esposas infelizes de como podem reprimir sua apreensão e seus próprios interesses e servir generosamente a excitação de seus maridos. Ela diz que crossdressers provavelmente são homens tradicionais de muitas conquistas. Peggy absorveu a ideologia do movimento transgênero que esse interesse sexual masculino em particular é transgressor e revolucionário. Ela diz “Eu acredito que crossdressers são uma geração à frente da sociedade na evolução da verdadeira identidade de gênero” (Rudd, 1999, p. 25). Eles estão à frente, aparentemente, porque podem reproduzir tanto a feminilidade quanto a masculinidade. Porém sua prática não parece mudar muito o mundo quando examinada de perto. Rudd nos diz que crossdressers, “De dia, podem comandar uma corporação com centenas de empregados. De noite podem ver os traços positivos da feminilidade emergindo” (1999, p. 43). Esses homens mantém o status que a dominância masculina fornece a eles e podem aproveitar as excitações do masoquismo ao adotar roupas “de mulher” quando chegam em casa. Mulheres não estão em posição de estar tão “à frente”. Elas pouco provavelmente estarão comandando corporações em primeiro lugar, e não têm maridos devotados que irão carinhosamente frequentar sua secreta prática da masculinidade. Rudd descreve crossdresser como uma prática de travestilidade de fim de semana: “Após um final de semana se vestindo como mulher, seus pés a estavam matando e ela parecia ansiosa para voltar para casa para sua rotina de usar um terno de negócios, camisa engomada e sapatos confortáveis” (1999, p. 111). Peggy explica que, “Muitos crossdressers são muito bem sucedidos como homens” e mulheres podem ajudá-los em seu sucesso, como esposas têm tradicionalmente feito: “Eu conheço crossdressers que são pilotos, contadores, médicos, psicólogos e geólogos. Muitos são profissionais muito bem sucedidos (…) A esposa pode ajudar seu marido ao dar apoio em sua carreira e a cobranças que a carreira faz dele” (p. 120). “Para muitos crossdressers”, ela diz, “ser feminino é uma boa liberação das pressões sentidas no trabalho. Por causa disso, ser afeminado o ajuda a ter mais sucesso como homem” (p. 120). As esposas podem até mesmo, ela diz, ajudar seus maridos a exercer papéis de liderança em organizações de apoio a crossdressers. Peggy, e as esposas as quais ela aconselha, não parecem ter carreiras, bem sucedidas ou não. Elas são esposas tradicionais que apoiam as carreiras de seus maridos. Rachel Miller, que se identifica como um crossdresser heterossexual e um homem de família bem casado, cristão, orgulhosamente afirma o conservadorismo dos crossdressers, “Eu descobri bem educados, brilhantes, atenciosos, espirituais homens de família que compartilham sentimentos similares. Eram tantos de nós que éramos cidadãos sólidos de acordo com qualquer definição razoável, que era inconcebível que pudéssemos ser todos pervertidos” (Miller, 1996, p. 54). Ele, como muitos crossdressers, é firme em não ser visto como transsexual ou homossexual. Ele não é um pervertido. É um quebra-cabeças que a prática desses homens seja interpretada como transgressora ou revolucionária pelo movimento transgênero quando é tão americano médio. Peggy Rudd estima que o número de homens que fazem crossdress nos Estados Unidos seja 15 milhões. Se isso estiver correto então não é uma atividade de minorias mas uma mera parte dos valores tradicionais da família americana. É designado que mulheres sejam femininas mas homens podem ser masculinos para ganhar dinheiro e status, e femininos em casa quando suas esposas servem suas fantasias sexuais de masoquismo e fornecem uma audiência. A prática da feminilidade por homens mantém o sistema de dois gêneros e dessa forma firmemente mantém a dominância masculina em seu lugar ao invés de exterminá-la.

O EFEITO NAS ESPOSAS

Peggy usa sua fé cristã para permitir que sacrifique seus interesses para servir a excitação sexual do marido. Em abnegação ela diz “Eu sabia que era errado julgar meu marido” (Rudd, 1999, p. 54). Entretanto sua motivação parece ser a falta de alternativa para uma mulher de meia-idade cujos interesses sempre foram subordinados aos do marido. O conselho que ela dá em sua “Carta aberta à esposa de um crossdresser” torna claro o motivo pelo qual é difícil para uma mulher simplesmente ir embora: “Deixe-me dizer enfaticamente que a grama não é mais verde do outro lado da cerca. É um mundo de homens lá fora (…) A vida não é fácil para uma mulher sozinha” (Rudd, 1999, p. 69). As oportunidades para mulheres no mundo fora de seus casamentos são restritas pela dominância masculina mas é um mundo de homens dentro de seus casamentos também, no qual é exigido que sirvam os interesses sexuais de seus maridos não importando o quão perturbadores elas os achem. Uma dificuldade das esposas é que seus maridos, após “sair do armário” como crossdressers, apenas façam sexo quando vestidos com roupas de mulher e esperem que suas esposas se refiram a eles como mulheres. As esposas não necessariamente querem ser “lésbicas” como são chamadas, apesar de a real experiência do lesbianismo seja bem diferente de ser forçada a se relacionar com um homem de vestido. É exigido de esposas que abandonem seus próprios desejos sexuais, que provavelmente erotizam a subordinação feminina e responder a dominância masculina já que essa é a forma para a qual mulheres são treinadas para ser sexualmente e essas mulheres são conservadoras em seus gostos (ver Jeffreys, 1990). Seus maridos não exercem mais a dominância masculina no quarto ou ao cortejar suas esposas mas esperam que elas se ajustem para servir sua nova “feminilidade”. Uma carta à Peggy mostra até onde uma mulher pode ser preparada para ir para superar seus próprios interesses e continuar a servir seu marido:

Estou fazendo todo o possível para ajudá-lo. Por exemplo, quando ele volta do trabalho para casa após um dia cansativo, suas roupas femininas já estão prontas para ele (…) Eu sei em meu coração que ainda há espaço para melhorar minha atitude (…) Ele precisa de algum tipo de adereço para ficar excitado sexualmente (…) ele precisa estar vestindo algum tipo de roupa feminina quando fazemos amor (…) Eu não sou lésbica. Eu não gosto que me façam sentir como uma.
(Rudd, 1999, p. 59)
Até mesmo Peggy acha o papel sexual invertido esperado dela pela nova persona de seu marido muito difícil. “Esposas”, ela diz, “têm dito que se sentem traídas sexualmente. Em nosso relacionamento isso foi verdade. Uma vez que Melanie chegou não havia mais como fazer amor com Mel (…) Descobrir que eu teria que fazer amor com Melanie foi realmente o grande choque” (1999, p. 118). Crossdressers cujas esposas não são coniventes, provavelmente, ao que parece, gritam e batem nelas. Peggy aconselha maridos contra esses comportamentos se querem que suas mulheres aceitem suas práticas (p. 81) – ela faz com que as esposas se sintam culpadas ao dizer a elas “se ela resiste ao desejo do marido de fazer crossdress ela pode experimentar uma dor insuportável. O desejo pelo crossdress não vai embora. Não há cura!” (p. 81) Dessa forma as esposas devem aceitar.
O papel feminino sob a dominância masculina requer muitas variedades de serviço a homens; isto é, trabalho doméstico e cuidado de crianças, trabalho emocional e serviço sexual, bem como a performance da feminilidade para a excitação do homem. Os crossdressers apenas querem a parte da “feminilidade” no papel feminino e não fazem isso para o prazer das mulheres, muito pelo contrário. Dessa forma, esposas reclamam que seus maridos passam horas se arrumando enquanto elas fazem o trabalho doméstico como sempre. Peggy registra o que chama de um comentário parafraseado de esposas que ela frequentemente ouve “Ele diz que quer ser feminino e lindo, então se arruma na frente do espelho enquanto eu limpo a casa. Ele sai do quarto parecendo a Miss América e eu pareço com uma mulher que aparece no comercial de Ajax” (Rudd, 1990, p. 76).
Outra grande dificuldade que as esposas têm de enfrentar é o fato de que seus maridos usurparam seu papel. As esposas foram treinadas desde a infância para exercer a feminilidade e podem sentir que dominam esse comportamento muito bem. Elas esperam as recompensas que vêm com isso, tais como serem tratadas romanticamente pelo marido “masculino”. Isto é, afinal, como a heterossexualidade tradicional deveria funcionar. Mas quando o marido começa a fazer crossdress ela está em risco de perder seu senso próprio e papel na vida. Peggy explica, “Eu tenho ouvido sobre esposas se sentindo invejosas quando o marido sai do closet mais bonito que ela” (Rudd, 1999, p. 122). Charles Anders diz que uma de suas parceiras mulheres “queria ser ‘a menina do relacionamento’ e eu tive medo de usurpar seu lugar” (Anders, 2002, p. 132). “Feminilidade” pode ser uma perda de tempo e entediante mas provavelmente é, após uma vida inteira de trabalho, a base da identidade da mulher e de seus sentimentos de valor próprio. Quando o marido o faz melhor ela perde o significado de sua existência. Ela se torna supérflua, e a prática da feminilidade na qual ela esteve envolvida durante toda a vida pode parecer vazia. Após 50 anos de feminilidade ela pode se perguntar sobre o sentido de tudo isso. As gratificações que a feminilidade deveria trazer desaparecem enquanto “Ela pode imaginar a vida sem mais jantares românticos com danças e sem mais noites fora com o homem de sua vida” (Rudd, 1999, p. 119). Algumas esposas, de acordo com Peggy, sofrem com humilhação extra por ver seus maridos continuarem a fazer o papel masculino na relação com outras mulheres na vida social ou profissional enquanto a esposa têm de lidar com calcinhas da Fredericks of Hollywood. Isso pode parecer muito injusto.

TRANSFEMINILIDADETRANSGREDINDO OU MANTENDO O GÊNERO?

Mulheres não estão, como homens, em posição de “escolher” a feminilidade. Ela é forçada nas mulheres e uma marca de seu status inferior. Não é um brinquedo sexual para mulheres e sim a maneira pela qual é exigido que modelem seus corpos, suas emoções e suas vidas. Não é fácil ou mais “natural” para mulheres aprender as práticas de feminilidade do que é para homens. Meninas aprendem que devem se envolver em tais práticas enquanto, geralmente na adolescência, entendem que devem ser “femininas” e desistir de atividades de garoto em favor de sentar discretamente e esconder seus músculos. Carole Bouquet, a face francesa da Chanel no final dos anos 1990 e atriz de filmes, descreve o início da “feminilidade” como algo difícil que de repente acontece e interrompe sua carreira como tomboy, “Ela era uma tomboy com cabelo curto. Sua feminilidade apenas apareceu, ela diz, na adolescência, e então ela se sentia estranha sobre isso – uma massa de autoconsciência e nervos” (Swain, 1998, p. 6). A feminilidade é representada como algo natural que se sobressai através da camada de jeito de garoto. O resultado de passar por essa transição é que ela é descrita por homens como o que escreveu seu perfil como alguém que exerce “magnetismo” sobre homens e “ela pode ser selvagem e sofisticada, ostentosa e austera”. Para ser “magnética” ela teve que parar de subir em árvores e andar de bicicleta. Muitas lésbicas relatam sobre ter sido tomboys na juventude, mas também a maioria das mulheres que acabam sendo heterossexuais (Rottnek, 1999). O processo de transição entre a condição na qual uma menina pode brincar com meninos, usar seu corpo forte em atividades físicas e não pensar sobre a própria aparência para a “feminlidade” na qual ela deve aprender a andar em sapatos que deformam e roupas que a apertam e constantemente pintar e checar o rosto para ter certeza de que o rímel está intacto, é algo agressivo e propenso a causar, como causou a Bouquet, “autoconsciência e nervos”. Suas mães, revistas para meninas e mulheres, e suas amigas, as treinam e há muito o que aprender. Meninas têm estúdios de transformação também, mas estes provavelmente são os quartos de parentes e amigas ao invés de estabelecimentos comerciais acessados via internet. Meninas têm de praticar a feminilidade até que pareça “natural” para criar a “diferença sexual”. Apesar de a nua realidade da dominância masculina parecer claramente revelada pelo exame da transfeminilidade, a prática tem sido apoiada e até proclamada progressiva na última década pelos pesos pesados da teoria queer. A maior diferença entre o projeto de gênero queer e o feminista está no que deve ser feito com o gênero após a revolução. Teóricas feministas como Monique Wittig (1996), Janice Raymons (1994), Catharine MacKinnon (1989), esperam que o gênero seja abolido, ou simplesmente inimaginável em um futuro igualitário. As estrelas da teoria queer, por outro lado, procuram manter o gênero com o objetivo de obter excitação sexual. Uma delas é a teórica queer Judith Halberstam. Judith Halberstam promove o valor da “masculinidade feminina” e do direito das mulheres de acessarem este, na visão dela, bem social. Halberstam não faz uma análise política que a permitiria ver que a masculinidade é produto da dominância masculina, na verdade ela repudia tal noção e diz que homens pode, fazem, e têm historicamente feito isso tão bem quanto homens. Ela odeia a feminilidade, entretanto, e é muito consciente do quanto as vidas de jovens mulheres são reduzidas e oprimidas por essa aquisição. O único propósito que ela vê para a feminilidade é sexual: “Me parece que pelo menos no início da vida, meninas podem evitar a feminilidade. Talvez a feminilidade e seus acessórios possam ser escolhidos mais adiante, como um brinquedo sexual ou um penteado” (Halberstam, 1998, p. 268). Pat Califa é outro expoente da masculinidade feminina que argumenta que “gênero” deve ser mantido como um brinquedo sexual (Califa, 1994). A prática de Califa da masculinidade começou no sadomasoquismo mas agora se estendeu para o transsexualismo e ela se renomeou como Patrick. A teórica transgênera e ativista Kate Bornstein argumenta que o sadomasoquismo em si é a mais extrema e excitante maneira de fugir da diferença de poder entre gêneros (Bornstein, 1994). A teoria queer tem, compreensivelmente, sido utilizada para apoiar a prática da feminilidade por homens. No fim das contas tanto teóricos queer que promovem o transgenerismo quanto os homens que acessam o pornô travesti na internet têm um interesse parecido no “gênero”. Eles estão todos interessados em absorver a performance do comportamento de gênero em suas excitações sadomasoquistas. A feminilidade é excitante porque é o comportamento de subordinação que não pode ser preservado. Ao final deste capítulo cabe retornar aos pensamentos de Janice Raymond que fornece as ferramentas para a análise feminista do transsexualismo em The Transsexual Empire (1994). Ela explica o motivo pelo qual a análise do transsexualismo é tão útil para feministas, dizendo que coloca “estereótipos de gênero no palco (…) para que todos vejam e examinem em um corpo de natureza diferente” (Raymins, 1994, p. 184). Mas, ela diz, é possível descuidar do fato “de que esses estereótipos, comportamentos, e descontentamentos de gênero são vividos todos os dias por corpos ‘nativos’ (…) eles deviam ser confrontados na sociedade ‘normal’ que criou o problema do transsexualismo para começar” (p. 185). O resto deste volume se concentra no problema da feminilidade no que Raymond chama de corpos “nativos”