Ser feminista não significa ser um ser etéreo e perfeito. Sem temporalidade, sem passado, sem construção, sem crescimento, sem PROCESSOS, sem resquícios subjetivos de nossos contextos sócio-historicos patriarcais ou relacionais. Somos humanas. imperfeitas, não somos ideais, somos reais. Sentimos, temos mecanismos de autodefesa naturais como a agressividade ou o ódio, a raiva, o medo. Podemos errar, acertar, podemos ter agressividade, não somos SANTAS como muitas feministas querem que mulheres sejam. Isso sim, a demanda dessa performance, muito ligada a cobrança de maternidade e feminilidade, é misoginia. Querer que mulheres sejam santas. Separar mulheres entre santas e putas.
A cultura de julgamentos e cobranças excessivas sobre mulheres, assim como a de exposições, essa sim é misoginia. A violência virtual contemporânea do ódio virtual, os linchamentos virtuais, eles são misoginias, pois exigem que mulheres sejam santas virginais, um ideal cristão, do ascetismo, da pureza. A pessoa que não erra ou que não está em construção. A pessoa que não sente é a única que pode aí, não ser exposta ou ser pura, santa. Mulheres para deixarem de ser pecaminosas, no cristianismo que é o legado que nos socializa, elas devem deixar de ser corpo, se aproximar do espírito, por meio de renunciar à carne, logo às emoções, à seu ser real que sente, elas devem reprimir o ódio, a raiva, a agressividade, forças vitais segundo a feminista Mary Daly, que foram colocadas conveniente pela Igreja como pecados capitais dentre outros 1 .
O ideal que o feminismo cria, por meio dessa política higienista e de caça as bruxas do apontamento obcessivo de mulheres que saiam da linha da feminilidade como ‘agressivas’, ou ‘abusivas’ (e outros termos vagos da banalização do debate sobre violência), a política subjacente é a da feminilidade compulsória, é forçar por meio do medo e da moralidade, do policiamento, mulheres a performarem feminilidade. Não pode se irritar, não pode se exaltar, não pode sair do controle, não pode ter insegurança, não pode ter medo, não pode ter se autodefendido, se uma atitude lesiva levou a raiva e à autodefesa veemente de uma, o ‘tom’ é análisado, se o ‘tom’ não é comedido, cordial, passivo, neutro, emfim, feminino, ele é ‘agressão’.
A agressividade existe, a raiva existe, a irritação com a outra, o ódio por alguém, existem na natureza humana, todo animal tem instintos de autodefesa e de defesa da vida, de seu espaço vital. Outra questão é o exercício da tirania, da força, por meio da violência. Porém aí, não se pode queimar a algumas como bode expiatório: nessa sociedade todos/as somos tiranos, todos exercemos Poder, exercemos até pelo nascimento com alguns privilégios, é essa uma sociedade desigual. Se formos queimar alguém na fogueira, deveria ser queimada a sociedade toda, o poder nos constrói desde sempre. Não defenso uma postura de comodismo no entanto, mas sim de fugirmos à essa socialização cristã que lida com “O Mal” em termos clássicos de expiá-lo em um alvo para se redimir e ganhar seu lugar no Céu Moral do feminismo/outras ideologias idealísticas.
A irritação, a agressividade, ela surge quando há um excesso, quando é preciso barrar esse excesso, quando precisamos nos diferenciar da outra, quando precisa-se do espaço vital.2
Não devemos querer eliminar o lado Sombra que nos acompanha, pois isso daria apenas no fingimento moral, numa falsidade do politicamente correto. Devemos acolher nosso lado sombra e entendê-lo, entender que o Poder está em nós, a agressividade, etc. Entender o que nos compôe, e dar um destino criativo e assertivo, saudável, à essa energia seja de agressividade, de irritabilidade, do que seja. Entender os limites que negamos pra chegar a esse ponto e poder evitá-lo então. Só isso pode fazer com que se possa trabalhar de forma mais sincera em torno a relações melhores. Mas duvido que assim mesmo chegaremos a sermos Jesus Cristos sem pecados, sem raivas, sem ‘erros’, sem imperfeições, açoitadas passivamente crendo que assim estamos a salvar e redimir a humanidade toda.
Referencias na discussão:
1 Mary Daly fala isso em seu livro Pure Lust assim como outros, ao citar que a Igreja definiu como pecados capitais justamente as pulsões que nos vitalizam. Agressividade, ambição, etc…. Pecar e ser mulher são palavras próximas segundo analisa a autora na raíz das palavras em latim.
2 Dinamica explicada pelas psicólogas Susie Orbach e Luise Eichenbaum no livro Agridoce – O Amor, a Inveja e a Competição na amizade entre mulheres. As psicologas nesse livro estudaram e analisaram, realizaram grupos de apoio para mulheres, em torno a essas questões das relações entre mulheres. Entenderam que o enfado com a outra surge como tentativa de diferenciação – à semelhança com o que Winnicott diz sobre a agressividade da mãe com o bebê como um sentimento saudável de querer barrar aquele excesso de um outro que toma sua vida, uma agressividade saudável para romper a relação de fusão e estabelecer ambos como seres diferentes e individualidades próprias. A amizade entre mulheres assim como os relacionamentos lésbicos tendem a ter um elemento de fusão e identificação muito fortes, o que muitas vezes leva a uma consequente sensação de necessidade de se tornar própria e ter seu espaço, isso pode surgir como uma hostilidade na relação. Analisam a inveja como sendo a dificuldade que mulheres possuem de admitir que possuem desejos e ambições de desenvolvimento pessoal, de autoafirmação, daquela que se tornou individualidade, devido ao ideal feminino de renuncia que nos socializa. As mulheres sentem que serem individuais é egoísta, são os seres-para-outros, que devem se dedicar aos demais, a dedicação ou escuta de si é ‘pecado’. Tratando esses sentimentos com honestidade e dando destino a essas pulsões e desejos, por meio da comunicação sincera, podemos ter relações melhores e nos reconciliarmos em nossos conflitos. Conflito como diferença, diversidade, não-facismo.