FEMINISMO INDEFINIDO - Denise Thompson

Tradução livre de: THOMPSON, Denise. Radical Feminism Today. Londres: SAGE, 2001. p. 53-58.

O lugar óbvio de se procurar por definições é, claro, um dicionário, e dicionários feministas existem. Mas eles não são muito mais úteis para esclarecer o significado de feminismo que qualquer outro texto. Por seu propósito ser dar uma visão geral o mais abrangente possível, seu principal critério de seleção é qualquer coisa chamada de ‘feminista’. Como consequência, eles tendem a reproduzir os conflitos e contradições sem resolvê-los. As entradas sob o termo feminismo são tão díspares que são de pouca ajuda ao se buscar um sentido coerente do que o feminismo é.

Geralmente essa é uma estratégia deliberada por parte dos compiladores uma vez que seu objetivo é incluir a maior gama possível a respeito do que as mulheres têm a dizer sobre cada tópico designado por um termo. Mas a palavra feminista tem um status diferente de todas as outras entradas. Quando aparece no título ela provê por definição o foco para todo o resto. Assim, o lugar a se procurar pela definição de ‘feminismo’ neste dicionário é a declaração dos objetivos e intenções das compiladoras. Cheris Kramarae e Paula Treichler, por exemplo, inicialmente os declararam largamente em termos de ‘mulheres’, por exemplo ‘documentando palavras, definições, e conceitualizações que ilustram as contribuições linguísticas das mulheres’ (Kramarae e Treichler, 1985:1). Entretanto, elas estão conscientes de que para os propósitos de um dicionário feminista, referências a mulheres somente não eram suficientes. Elas disseram que chamaram o livro de dicionário feminista em vez de dicionário das mulheres porque estavam particularmente interessadas no que tem sido dito ’em oposição à definição, difamação, e ignorância masculina a respeito das mulheres e suas vidas’’ (p. 12). Em outras palavras, elas estavam cientes de que a necessidade de se focar em mulheres vem das condições da supremacia masculina, ainda que, no interesse da diversidade, a consciência não apareça claramente e indubitavelmente sob a entrada ‘feminismo’ no texto propriamente dito.

Usualmente, porém, essa abordagem pluralista significa que o feminismo acaba por ser definido apenas em termos de mulheres. As editoras de uma obra panorâmica do feminismo australiano disseram que ‘sequer tentaram impôr uma definição singular de feminismo … por causa da diversidade, e do constante movimento, no terreno feminista’. Elas, no entanto, oferecem uma definição de feminismo nos termos de uma preocupação com a opressão das mulheres e com como mudar isso em relação à cidadania das mulheres e a sua participação na vida social (Caine et al., 1998: x). Maggie Humm, também, definiu o feminismo em grande parte em termos de mulheres — ‘direitos iguais para as mulheres’, ’em geral, o feminismo é a ideologia da libertação das mulheres, a teoria do ponto de vista da mulher’, etc. (Humm, 1989). O feminismo também é caracterizado em termos de mulheres no Prefácio: ‘a teoria feminista é fundamentalmente sobre a experiência das mulheres’ (p. xi). Sob o título ‘Dominação’, ela reconhece que ‘Uma parte distinta da teoria feminista contemporânea é sua análise da dominação masculina e toda a teoria feminista é feita de modo a mostrar como a dominação masculina sobre as mulheres pode ser encerrada’’ (p. 55); e há uma entrada para ‘dominação masculina’. Mas essa consciência não é incluída na definição de feminismo.

Sei de apenas um texto que explicitamente aponta a questão de se definir o feminismo. Karen Offen (1988) apresenta o feminismo nos termos da dominação masculina como uma questão crucial das políticas feministas. O feminismo seria ‘uma análise crítica do privilégio masculino e da subordinação das mulheres dentro de qualquer sociedade dada’, e ‘um desafio político à autoridade e à hierarquia masculina em seu mais profundo sentido’’ (pp. 151, 152). Mas sua principal preocupação era porque a palavra ‘feminismo’ tão frequentemente evoca antagonismo. Ela sugere que foi a ênfase individualista que alienou muitas mulheres (e homens), porque desconsiderava a experiência tradicional das mulheres e as diferenças das mulheres em relação aos homens. Ela argumenta que a solução seria reconhecer o importante papel ‘relacional’ que o feminismo desempenhou historicamente. ‘Feminismo relacional’, ela diz, ‘enfatiza os direitos das mulheres enquanto mulheres (definidos principalmente por suas capacidades férteis e nutridoras) em relação aos homens. Ele insiste nas contribuições distintas das mulheres nesses papéis na sociedade de forma ampla e faz reivindicações na comunidade com base nessas contribuições’’ (p. 136 — ênfase da autora). Ela reconhece que argumentos em favor da ‘diferenciação das mulheres e complementariedade dos sexos’ têm sido constantemente apropriados ‘para novamente sancionar o privilégio masculino’ (p. 154). Mas ela acredita que um feminismo que valoriza as capacidades tradicionais das mulheres para amparo e relacionamento terão mais apelo para as mulheres do que um que se baseie somente nos conceitos abstratos (e definidos por homens) de direitos individuais e autonomia pessoal.

Porém, enquanto ela está certa de que há muito o que se valorizar nas capacidades tradicionais das mulheres, ela entende erroneamente a origem do antagonismo relativo ao feminismo. O feminismo irrita, não porque seja muito abstrato e individualista, mas porque identifica a dominação masculina. O problema do feminismo com os papéis tradicionais femininos não é que as mulheres de fato os desempenhem, mas que eles asseguram a subserviência das mulheres aos homens. O problema não é que mulheres sejam nutridoras e cuidadosas (caso sejam), mas que se requeira que as mulheres nutram homens sem reciprocidade. É a perspectiva de as mulheres se recusarem servir aos homens que é tão alienante, para os homens porque irão perder seu reconhecimento não recíproco às mulheres do status ‘humano’, e para as mulheres porque perderão seu único acesso à intimidade e ao status ‘humano’ permitido dentro das condições da supremacia masculina. Mas Offen não reconhece que é a própria oposição do feminismo à supremacia masculina, uma oposição que ela mesma não achou problemática, a origem do antagonismo.

Muito frequentemente os textos feministas se equivocam na questão da dominação masculina, até mesmo, curiosamente, onde ela é explicitamente nomeada. Sandra Harding, por exemplo, reconhece claramente a existência da dominação masculina, uma vez que define ‘sexo/gênero’ como ‘um sistema de dominação masculina tornado possível através do controle masculino do trabalho produtivo e reprodutivo das mulheres’ (Harding, 1983: 311). “Dominação masculina” é sinônimo a ‘sistema sexo/gênero’ ao longo do artigo. Ela nos diz que é provavelmente imprudente ‘assumir que qualquer coisa que conheçamos como sistema sexo/gênero seja um aspecto universal da vida social humana’’, e então restringe o escopo de sua generalização à ‘vasta maioria de culturas às quais temos acesso histórico’’ (p. 323 n. 10 — ênfase da autora). Assim quaisquer culturas (hipotéticas) que não sejam dominadas por homens, ao que parece, não teriam o ‘sistema sexo/gênero’. Mas se a dominação masculina é a característica comum e invariável do ‘sistema sexo/gênero’, por que há a necessidade de se substituir ‘sistema sexo/gênero’ por ‘dominação masculina’? Dado o quão prevalente é a evasão em se nomear a dominação masculina, essa substituição não é inocente. Muitas vezes ela funciona como uma negação eufemística das relações de poder desafiadas pelo feminismo. Porque ela deveria aparecer em um texto que, ao contrário, identifica claramente as relações de poder, é intrigante.

Enquanto a maioria dos textos auto-identificados feministas que falham em reconhecer a dominação masculina como o principal antagonismo do feminismo o faz implicitamente ou por omissão, há alguns textos que explicitamente argumentam contra isso. Por exemplo, há o argumento de Judith Butler contra o que ela caracteriza como ‘a noção de que a opressão das mulheres tem uma forma singular discernível na estrutura universal ou hegemônica do patriarcado ou da dominação masculina’’. Ela continua dizendo:

A noção de um patriarcado universal tem sido amplamente criticada nos últimos anos por sua falha em considerar as atuações da opressão de gênero nos contextos culturais onde ela existe. Onde esses vários contextos foram consultados dentro dessas teorias, têm sido para encontrar ‘exemplos’ ou ‘ilustrações’ de um princípio universal que é assumido desde o princípio. Essa forma de teorização feminista tem sido objeto de crítica por seu esforço em colonizar e apropriar culturas não-ocidentais para apoiar noções altamente ocidentais de opressão, [e] porque tendem também a construir um ‘Terceiro Mundo’ ou até mesmo um oriente no qual a opressão de gênero é sutilmente explicada como sintomática de um barbarismo essencial, não-ocidental. A urgência do feminismo em estabelecer um status universal para o patriarcado no sentido de fortalecer a aparência das próprias demandas do feminismo de ser representativo ocasionalmente tem motivado um atalho para uma universalidade categorial ou fictícia da estrutura de dominação, feita para produzir uma experiência comum de subjugação das mulheres. (Butler, 1990:3–4)

Esse único parágrafo compromete toda a crítica de Butler no texto. A escassez do argumento indica tanto a crença de Butler na natureza auto-evidente da crítica, e seu desprezo pela ‘forma de teorização feminista’ que ela está rejeitando. Nenhuma evidência ou exemplos de ‘universalidade fictícia’ são dados, logo a acusação é impossível de se avaliar nessa instância em particular. Não nos é dito onde ‘a noção de patriarcado universal aparece’, nem onde ela foi criticada. Não podemos então decidir por nós mesmos se há ou não alguma forma de teorização feminista que ‘coloniza e apropria culturas não-ocidentais’ e as constrói como ‘bárbaras’, nem de que formas elas devem ser.

Seu argumento é uma instância da acusação de ‘falso universalismo’, e funciona da mesma maneira que todas as acusações do tipo contra a teoria feminista funcionam, ou seja, negando a dominação masculina. Ela caracteriza o ‘patriarcado’ como uma ‘noção altamente ocidental’. Ela insiste que ele não é apropriado quando aplicado às ‘atuações da opressão de gênero’ e ‘experiência de subjugação das mulheres’ em culturas diferentes das ‘ocidentais’, negando assim que o conceito de ‘patriarcado’ é relevante para culturas outras que não do ‘ocidente’. No entanto, ela reconhece que a ‘opressão de gênero’ e ‘subjugação das mulheres’ existe em culturas outras que não do ‘ocidente’. Mas se a subjugação das mulheres não é resultado da dominação masculina, de onde ela vem? Parece que o ‘universalismo’ só é falso quando o que está sendo ‘universalizado’ é a dominação masculina. Não há problema, ao que parece, em ver a opressão das mulheres como ‘universal’ no sentido de que ela existe em outras culturas que não o ‘ocidente’. O que é proibido sob o risco de ser acusado de ‘falso universalismo’ é nomear o inimigo.

Localizar a causa da subordinação das mulheres na dominação masculina não é ‘universalizar’ uma noção peculiar do ‘ocidente’ e aplicá-la a ‘outras culturas’. Identificar a dominação das mulheres pelos homens (e de alguns homens sobre outros homens) não é afirmar que há somente uma forma singular de dominação masculina. Mesmo no ‘ocidente’, ela tem a multiplicidade de diferentes formas. Onde quer que os interesses dos homens prevaleçam às custas das mulheres, e os interesses de alguns homens prevaleçam sobre os de outros homens, a dominação masculina existe, seja que forma tome. Enquanto algumas vezes ela é violenta e descaradamente desumanizadora, ela também é multifacetada e pervasiva na vida cotidiana. Ela toma diferentes formas em diferentes culturas sob diferentes condições históricas, contanto que a existência ‘humana’ continue a ser definida nos termos dos homens, e que a existência ‘humana’ de alguns homens exista às custas de outros homens, ela continua sendo dominação masculina, em todas as suas ‘infinitas variedades e monótonas similaridades’ (Fraser and Nicholson, 1990:35).1

Essa relutância entre muitas das que se identificam como feministas em nomear e identificar a dominação masculina requer explicação. Uma razão reiterada com frequência é a relutância em se caracterizar as mulheres como ‘vítimas’. Focar na dominação masculina, assim se argumenta, faz dos homens mais poderosos do que realmente são, e só faz as mulheres se sentirem acuadas e indefesas. Insistir na extenção do poder masculino, vê-lo como amplamente pervasivo, vê-lo a todo momento nos violando, invadindo nossas vidas, penetrando nos recôncavos profundos da nossa psique, enraizado nos nossos atos mais íntimos, é retratar as mulheres como nada mais que vítimas passivas e indefesas dos homens, ou assim se diz.

Esse tipo de argumento é comum nos círculos ‘feministas acadêmicos’. Lois McNay, por exemplo, diz que a ‘tendência de se considerar mulheres como vítimas impotentes e inocentes das estruturais sociais patriarcais … impede muitos tipos de análises feministas’ (McNay, 1992: 63, 66). Ela diz que isso falha em ‘considerar o potencial da criatividade das mulheres e sua agência sob restrições sociais’. Isso também é opressivo a algumas mulheres porque não reconhece ‘que gênero não é a única influência determinante na vida das mulheres’, e porque ‘toma as experiências das mulheres brancas como norma e as generaliza’. Ela não dá nenhum exemplo de obra feminista que supostamente exiba tais características porque, ela diz, isso é ‘bem documentado’’ (pp. 63–-4). Ela ainda diz também que há ‘indubitavelmente … estruturas de dominação, em particular construções de gênero, que asseguram a posição subordinada geral das mulheres na sociedade’ (pp. 66-7). Ela não percebe as contradições em se rejeitar ‘estruturas patriarcais sociais’ em conjunto à ‘vítimas impotentes e inocentes’ por um lado, e se aceitar ‘estruturas de dominação de gênero’ e ‘subordinação geral’ das mulheres por outro. Não está claro que tipo de distinção está sendo desenhada aqui.

Argumentos como esse cometem o mesmo erro que supostamente encontram em outros lugares. Eles interpretam as referências à dominação masculina em termos de ser algo monolítico e inevitável. Mas a exposição feminista da vitimização das mulheres tem a intenção de combatê-la, não de mantê-la. Se ela não pode ser nomeada, não pode ser enfrentada. E o projeto das mulheres de criarmos para nós mesmas formas não exclusivas e não opressivas de ser humanas é evidência suficiente de que o feminismo não define as mulheres como somente vítimas. Esse tipo de objeção falha em levar em conta o senso de poder, triunfo ou alívio que vem com uma visão de mundo clara. Falha em levar em conta a necessidade imperiosa que temos de ver o quão ruins realmente estão as coisas, e o senso de libertação que vem com esse conhecimento. Ignora a necessidade política de se saber contra o que estamos lutando, se estamos dispostas a fazer algo. Aqueles com medo de confinar as mulheres à vitimização perpétua parecem ter esquecido (ou nunca tiveram conhecimento) do alívio de se ouvir a respeito de uma opressão como opressão, em vez de uma falha meramente pessoal e idiossincrática. É toda uma libertação em si mesma dar-se conta de que a culpa recai, não sobre as falhas próprias de alguém, mas em uma realidade onde é possível dizer ‘não’. Esse é um passo vital no processo de se desembaraçar de condições opressoras. Todas nós provavelmente chegamos a um ponto de ruptura, um ponto em que já é o bastante e a angústia supera o alívio. Mas a angústia não é aliviada ao se recusar ver a dominação masculina quando ela é manifestadamente presente, ao se chamá-la de algo menos horrendo (como ‘gênero’), ou ao se retratar mulheres como poderosas quando elas não o são. Reconhecer as amarras ao qual se está sujeita é parte intrínseca de se ter consciência da própria agência moral sob opressão (Hoagland, 1988). Agência moral requer uma habilidade de se decidir não apenas o escopo mas os limites da responsabilidade de alguém, a medida em que alguém é ou não responsável, quando se pode agir, quando não se pode.

Assim, nomear a dominação masculina não é retratar as mulheres como nada além de vítimas. As mulheres também podem ser colaboradoras, podem abraçar os significados da supremacia masculina e valorizá-los como seus e os defender vigorosamente. O sistema oferece benefícios e vantagens limitadas, mas não por isso insignificantes. Ele atrai e seduz enquanto oprime. As mulheres também podem ser resistentes corajosas e perspicazes. Há um sentido no qual o desafio do feminismo à dominação masculina não é em nada ‘sobre’ as mulheres. Se refere ao sistema social que certamente opera em detrimento das mulheres, mas ao qual qualquer um pode ser cúmplice e contra o qual qualquer um pode resistir. Mas é importante esclarecer que as mulheres são as suas principais vítimas. Evitar nomear a vitimização é uma falha em se nomear a opressão. Pela mesma lógica, também não poderíamos nomear qualquer uma das grandes opressões na história. Deveríamos evitar falar sobre o Holocausto ou sobre colonialismo? Essas grandes maldades produziram incontáveis milhões de vítimas inocentes e impotentes. Por que essas vítimas podem ser nomeadas assim, mas não as mulheres vítimas da supremacia masculina? Como podemos saber o tamanho do dano feito às mulheres se estivermos proibidas de nomear esse dano? À medida em que o ‘feminismo acadêmico’ suprime qualquer referência às mulheres enquanto vítimas, ele está em conluio com a dominação.

Nota

1. Essas autoras utilizam a expressão ‘opressão das mulheres’, e não ‘patriarcado’ ou ‘dominação masculina’.