Onde dará o fim deste túnel?

Sobre os rumos da violência virtual e o quanto isso distrai as ativistas internautas de questões cruciais e delicadíssimas como a da vigilância nas redes.

O auge de uma era fascista é justamente quando seus mecanismos não são reconhecidos como tal. Quando métodos injustos e impunes são reconhecidos pela massa alienada das intenções de uma verdadeira elite minoritaŕia como meios de justiça social, como ferramentas de manutenção da “integridade” do grupo, integridade esta que vem a ser, geralmente, de cunho muito mais moralista que de qualquer outro.

O inferno são os outros. Vivemos num tempo em que essa frase não poderia fazer mais sentido se pensarmos que ela significa que a alteridade torna-se cada vez mais ameaçadora conforme avança a Santíssima Pós-Modernidade. Na era em que as tecnologias virtuais dominaram o bastante a vida das pessoas a ponto de acreditarem que aí residem suas relações sociais. Passar quase que a integridade do tempo analisando e criticando a postura alheia tornou-se a práxis dos movimentos sociais e inclusive do feminismo “radical”, pois eis a sociedade do espetáculo em seu nível mais terrível, por ser um nível impessoal.

Condenar e linchar alguém virtualmente garante uma segurança unilateral, pois só os que acusam tem o benefício da distância e, muitas vezes, do anonimato… isso quando não sobem na escala interminável e impiedosa da fama e visibilidade nas redes. Entre oprimidas, presenciamos o apedrejamento umas das outras, umas pelas outras. E a máxima feminista para determinar o tipo de gente que deve ser linchada é, ironicamente, quanto mais não-feminina ela for. Quanto mais distante da construção social que o feminismo pretende combater em suas raízes – que é a feminilidade e a submissão à lógica masculina -, maior o risco de tornar-se alvo da justiça virtual feminista. É um mindfuck total já que isso significa simplesmente que quanto mais sapatão, feminista e radical você for, mais será condenada pelo feminismo como comunidade, seja qual for sua “vertente”.

Há tempos atrás imaginei as redes como um espaço que me fazia sentir alívio, pois poderia falar de minhas opiniões e posicionamentos políticos, poderia debater e compartilhar o que penso, já que era tão difícil encontrar pessoalmente outras que me contemplassem e compreendessem, com quem poderia debater o que tinha em mente. Cresci num interior bastante religioso, então acho que você pode imaginar como era o contexto. Mas eu cometi um erro grave e isso custou muito a mim. Lembro-me muito bem de quando comecei a conhecer o feminismo. Foi por volta de 2o11, eu estava também iniciando meus estudos em Psicologia, e mesmo sendo inicialmente uma feminista liberal – coisa que nem eu sabia na época pois nem conhecia as ondas feministas e nem a existência do feminismo radical – eu aprendi, primeiramente como terapeuta e então como feminista – já que eu aderia à máxima “feminismo é a ideia radical de que a mulher é gente” – que a coisa mais importante para fazer as mudanças políticas e sociais necessárias seria ter TOLERÂNCIA umas com as outras.

Comecei a compartilhar o que estava aprendendo sobre feminismo com minhas amigas, tão ou mais leigas do que eu no assunto, e presenciei diversas vezes seus comentários classistas, racistas, etc. Porém, nem passou pela minha cabeça taxá-las de tal forma. Pelo contrário, eu sempre apostava no debate e no diálogo. Eu questionava pessoalmente e a sós cada fala que reconhecia como problemática e reprodutora de opressões estruturais, e com essas amigas consegui atingir mudanças importantes de posicionamento, JUNTAS, e de uma forma saudável.

Mas aí algo engraçado ocorreu. A reação dessas mesmas pessoas no momento em que me radicalizei. No primeiro “tropeção” – que foi criticar assertivamente os movimentos partidários quando me envolvi com o anarquismo – fui taxada sem perdão, exposta e alvo de fofocas. Sem diálogo, sem debates, e sem o benefício da crítica cara a cara, pessoalmente. Misógina, hipócrita e hostil por discordar em assuntos que não eram nada pessoais, como as contradições de um certo partido da estrelinha vermelha, por exemplo.

Resumindo: eu me esforcei para não reagir de forma antiética com essas pessoas, não taxá-las com adjetivos vagos, rasos e descontextualizados, mas elas o fizeram comigo sem pestanejar.

Assim, me vi num efeito dominó. Afastando-me de coletivos que eu ajudei a iniciar e a construir e que, aliás, modéstia à parte, sem meu esforço não teriam sequer existido. Assim, me vi decepcionada e temerosa o suficiente para de alguém visível e de opinião relativamente considerada nas redes e entre os grupos ativistas da minha região tornar-me um fantasma, anônima e invisível.

Não responsabilizo inteiramente esses eventos e essas pessoas por isso, afinal na mesma época em que fui rechaçada comecei a, também, estudar sobre cultura de segurança, e aí percebi que a hipocrisia da internet era muito maior do que eu poderia antes ter imaginado. Resolvi, então, desaparecer…

Como lésbica isso dói e, sinceramente, não sei mais muito bem como agir ou como dar o próximo passo. Honestamente há um lado meu cansado de estar na sombra e outro querendo tocar o foda-se ainda mais radicalmente do que já estou fazendo… Há momentos em que me sinto grata, inclusive, por ter saído do enredo antes, afinal vejo que o feminismo das redes mainstream, fachobook e afins está cada vez mais bizarro e antiético. Já fui exposta como racista por criticar o conceito pós-moderno de privilégio cis, por exemplo, e hoje assisto lésbicas e mulheres que amo e prezo serem expostas como se fossem um homem molestador e violento simplesmente por terem uma postura firme e convicta em sua radicalidade e lesbiandade, por ousarem ser pensadoras.

Eu ainda não sei muito bem como esse texto termina.. é apenas um brainstorm e uma angústia de que senti necessidade de compartilhar de alguma forma, em algum lugar. Talvez isso me ajude a pensar em como interagir, como caminhar daqui pra frente. É difícil e duro construir uma vida como artista balanceando isso com o anonimato, e como lésbica a dificuldade dessa situação triplica. Creio que temos que ter cuidado e cautela, e que talvez a visibilidade não passe de uma ilusão nesse mundo hostil em que estamos. Eu não sei mais discernir muito bem quem eu mais temo: se são as corporações e a elite que usa nossas próprias ferramentas tecnológicas e podem fazer atrocidades contra nós a qualquer momento ou se são as pessoas, nossas semelhantes, pessoas como quaisquer outras com as quais nos encontramos no dia-a-dia, que podem acabar com nossa reputação simplesmente por serem tão imaturas a ponto de não conseguirem sustentar um simples debate, uma discordância política.

Fascismo… Estamos vendo por aqui. E não cheira nada bem. Onde dará o fim deste túnel?

 

Excelente texto parça. Pois é, me ressoou isso de “O feminismo é a ideia radical de que a mulher é gente”, ou seja, de que mulher é pessoa, ser humano. Mas não é verdade, é cobrado que sejamos mulheres-maravilha da desconstrução e bailarinas estilo cisne-negro da prática política. Não podemos ser humanas, e nem ter um tratamento humano, é legítimo desumanizar uma mulher quando há um erro ou sequer isso, se uma discordância teórica ou politica é tomada como uma violação política grave comparável com atrocidades de nazistas ou policiais cometendo genocídio da juventude negra. Você diz que estamos avançando para o facismo. Eu acho que já crescemos com ele dentro de nós.
E não existe democracia, hoje não é nem o DOI-CODI que nos tortura por uma opinião ou debate, são as próprias pessoas que agem como torturadoras. E se parece exagerado falar assim, eu digo que não posso chamar a destruição da minha saúde mental do que menos que uma tortura, este é o nome preciso do que se é vivido e considero um trauma da dimensão de outros traumáticos, pois possui mesmos aspectos de insistência do tema, essa necessidade de elaboração e a constância da lembrança além da dor emocional. Ser sobrevivente de violência coletiva é isso mesmo, uma sensação de desamparo e não reconhecimento desse debate, afinal como questionar ou responsabilizar um grupo pelos seus abusos?
A gente retorna aos textos de Freud sobre Psicologia das Massas, pois é exatamente isso. A legitimidade auto-concedida das massas na violação de alguém, o contágio da ação impensada e até mesmo a certa coerção e indução a que o coletivo julgue, agrida, apredeje, que ele observou ao analisar o facismo em ascensão no seu tempo, pelo qual teve que estar exilado no momento de escritura desses artigos vitais pra Psicologia de Grupos.

 
   

Sim, é verdade. O discurso ilusório de democracia é só mais uma das ferramentas do fascismo em que vivemos. E é toda gente que sustenta essa ilusão. A cereja do bolo é a pós-modernidade seduzindo as pessoas para que acreditem que são livres. Mas aí há um impasse: que liberdade pode existir sem responsabilidade, sem AUTO-NOMIA, consciência de escolha?