Porque consentimento não é o suficiente
Publicado em 16 de julho de 2014 por Maria V.
Texto escrito originalmente e em inglês por C.K. Egbert, disponível em: feministcurrent.com/9211/why-consent-is...
Traduzido livremente.
“Consenso é o pó de fada mágico que transforma estupro em sexo e abuso sexualizado, tortura e subjugação em libertação sexual – pelo menos é o que alguns dizem. Muitas feministas “sex positive” reconhecem que o entendimento legal de consentimento (definido como uma falta de resistência ativa) é problemático: é culpabilizante, normaliza a agressão sexual masculina, desenha uma linha arbitrária entre quanta coerção é “de mais” (geralmente não permite coerção física, mas deixa passar coerção social, emocional e econômica) e é irrelevante se a mulher quer se envolver em uma atividade sexual ou apenas se submete a ela.
Para muitos, valorizar a individualide através da permissão para que persigamos nossas preferências pessoais e determinemos por nós mesmos como vivemos é central para a dignidade humana, e é por isso que o consentimento é usado como a linha divisória entre sexo e violência sexual. Mas são as minhas preferências expressões da minha individualidade? Se você foi criado em uma cultura ocidental industrializada e te dessem baratas pra jantar, você provavelmente ficaria com nojo, possivelmente passaria mal. Não tem nada de natural nesta reação afinal baratas são comestíveis e nutritivas. Isto é, mesmo uma reação visceral pode ser, e geralmente é, condicionada socialmente ou criada.
As feministas argumentam que gênero e sexualidade são socialmente construídos, e especificamente que a masculinidade é construída em termos de dominação social e sexual e a feminidade em termos de submissão social e sexual. Nós podemos ver como isso se manifesta nas nossas normas sexuais e sociais: coagir mulheres é sexy, mulheres são mercadorias a serem usadas pelos homens, machucar mulheres é sexy. Essa construção social da nossa identidade é possível porque nossa concepção de nós mesmos bem como nossos desejos e preferências são condicionados e construídos através de interações interpessoais e do nosso ambiente social. Nós nos tornamos quem somos através de como os outros nos tratam, e tem numerosas maneiras bem documentadas demonstrando que normais sociais moldam quem somos e o que fazemos: estereótipos, profecias que se cumprem, preconceito e preferências adaptativas.
Preferências adaptativas, particularmente, mostram ser um problema para a ideia de que perseguir quaisquer preferências pessoais expressa nosso status de seres livres e iguais. Preferências adaptativas surgem quando nós inconscientemente mudamos nossas preferências para que elas se adaptem as nossas circunstancias. As mulheres frequentemente não sentem que tem direito a igualdade para com homens, a integridade corporal, ao prazer sexual ou mesmo a necessidades básicas como comida suficiente porque elas foram colocadas em uma situação onde estas coisas não estão disponíveis a elas ou são sistematicamente negadas a elas. Mas existe um outro, e ainda mais mortal fator psicológico: as mulheres frequentemente não compreendem o abuso que sofrem nas mãos dos homens como abuso (e é por isso que boa parte da “segunda-onda” se foca na criação de consciência).
Jennifer Freyd é uma psicóloga que estudou a repressão de memórias de abuso infantil. Ela argumenta que seres humanos são programados a reagir com o mecanismo de “luta ou fuga” quando são traídos. Porém, em relações onde existe dependência ou desequilíbrio de poder, a pessoa subordinada para de ter consciência do abuso porque ela não tem a opção de “luta ou fuga”. Se adicionarmos a isso o fato de que mulheres são invalidadas ou são sujeitos de vários graus de violência social quando não se conformam as normas do gênero, nós temos um problema sério com a dita “escolha individual”.
Problemas com Consentimento
Rosalind Hursthouse uma vez disse que se alguém lesse toda a literatura sobre ética do aborto, essa pessoa não teria nenhuma ideia de como a gravidez de fato é ou que ela envolve homens fazendo sexo com mulheres. Similarmente, discussões pró-BDSM ou pró-pornografia tendem a se focar nas escolhas das mulheres, não na ação dos homens ou nas experiências de mulheres que se feriram com estas práticas. Eles dizem as mulheres que é sexualmente libertador experienciar abuso físico ou sexual desde que ela “escolha” isso, mas eles nunca se perguntam porque é aceitável que homens inflijam dor ou machuquem mulheres. Em fazer isso eles frequentemente ignoram, invalidam e silenciam mulheres que já foram feridas por estas práticas e normas enquanto endossam a erotização da violência através da defesa do “consenso”.
Consenso baseia-se na presunção que pessoas escolhem pensando nos seus próprios interesses ou pelo menos em maneiras que fundamentalmente não violam sua humanidade. Como demonstrado no caso de preferências adaptativas, isso é simplesmente falso. Mas existe um problema ainda mais fundo: consentimento impede a avaliação política ou ética do ato e ao invés coloca a “culpa” do ato na pessoa que o sofre (a pessoa sendo abusada). Nos defender é extremamente difícil na melhor das circunstâncias, visto que é exaustivo emocionalmente e o desejo por pertencimento pessoal frequentemente passa por cima da autoproteção básica: mesmo, ou talvez, especialmente, homens brancos estão sujeitos a rituais sádicos em trotes da faculdade, grupos de amigos, equipes esportivas ou no exército. Quando mulheres são ensinadas que são objetos para serem machucados ou usados, isto se torna ainda mais difícil. Nós nunca devemos colocar alguém na posição de exigir respeito; isso cria um peso emocional, social e moral na pessoa que está sujeita a um possível abuso ou comportamento de exploração ao invés de no perpetuador da ação.
Um outro problema surge quando consideramos quanta violência o “consenso” pode legitimar. Se o consenso deve ter tal poder transformador, quando o pó de fada para de funcionar? O quanto de dor, dano e lesão são aceitáveis que sejam causadas em uma pessoa para que não sejam mais justificáveis? Em casos de lesões permanentes e mutilações? Assassinato consensual é aceitável? Feministas “sex-positive” e apoiadores de BDSM tem o problema de arbitrariamente determinar o quanto de violência é aceitável antes de se tornar “de mais” (soa mais como a maneira que o patriarcado determina arbitrariamente o quanto de coerção é aceitável antes de ser “de mais”. Hmm…) Nós não podemos pressupor que as pessoas iram simplesmente não consentir a algo danoso, mulheres tem “consentido” a morte quando um aborto poderia facilmente ter salvo suas vidas.
Mas ativistas do BDSM tem um problema em particular. Mesmo enquanto eles se entendem como “o padrão de ouro” do consentimento, não é o consenso que é erotizado: é precisamente a coerção (“bondage”, a sujeição, a dominação) e a violência (o abuso físico, o sexo “selvagem”) que são sexy. Um homem que estupra, tortura e escraviza mulheres tem uma reclamação genuína contra ativistas do BDSM que condenam suas atitudes: como eles podem dizer que o que eles fez é errado quando ele estava simplesmente fazendo o que eles falaram que era sexy?
Talvez eles digam que ele deveria ter obtido o consentimento da vítima anteriormente (mas é uma pergunta aberta se coerção emocional, desequilíbrio de poder ou, por exemplo, convencer uma mulher com baixa autoestima de que ela merece ser abusada contam como consentimento). Todos, as feministas pró-sexo argumentam, deveriam ter o tipo de sexo que desejam – mesmo que isso envolva machucar outra pessoa, desde que seja “consensual”. Vamos ver se esse de fato seria o caso.
Suponha que nós tenhamos um mundo em que definimos consenso como ativo, explícito e contínuo. Em adição, vamos presumir que temos um sistema legal confiável e que lida de forma adequada com casos de abuso sexual. Porém nós vamos manter as outras normas sociais e sexuais intactas (normalização da dor, erotização da violência, e instrumentalização das mulheres). Nesse mundo, Alice é uma fêmea heterossexual que quer a intimidade física e emocional de um relacionamento romântico. Ela não quer participar de nenhuma atividade sexual que seja dolorosa ou degradante para ela; ao invés disso ela quer que o sexo seja mutualmente prazeroso. Quais são as opções dela?
Encontrar um homem que não tenha preferência por erotização da violência. Isso vai ser extremamente difícil porque homens foram socializados dentro de normas que treinam as respostas sexuais dos homens para situações em que a mulher é objetificada e machucada. Já que não machucar mulheres é uma mera preferência não existe nenhuma motivação para homens não teres estas respostas ou para que se preocupem para que sexo seja consensual.
Nunca transar ou se envolver romanticamente com um homem.
Se habituar as normais sexuais-sociais.
Eu não estou dizendo que existe uma dívida relacional para com Alice. Mas é Alice coagida? A resposta é sim, pois é negada a ela uma oportunidade igual de buscar uma relação que satisfaça suas necessidades de intimidade emocional e física. Se nós requerêssemos, por exemplo, que todas as pessoas negras primeiramente sofressem um abuso físico antes de poderem conseguir um diploma universitário, isso claramente seria injusto. Similarmente, uma relação sexual ou emocional para Alice – algo que as pessoas frequentemente pensam que é uma necessidade humana genuína ou pelo menos um benefício pessoal importante – vem a um custo que homens não têm que pagar, e o custo é seu sofrimento e o risco de sua integridade física. Alice não seria mais coagida se ela se habituasse a participar de comportamentos sexuais dolorosos ou degradantes para conseguir a intimidade que ela deseja? Parece que isso é uma forma ainda maior de coerção; uma coerção que se torna tão impregnada, arraigada que ela não consegue mais ver ela mesma como qualquer outra coisa além de merecedora de dor e abuso.
E é isso precisamente que acontece. Consenso é vulnerável a defesa “Wal-mart”: um entendimento robusto de consentimento talvez seja capaz de lidar com certos tipos de coerção em pequena escala, mas uma vez que a coerção se torna tão profunda e universal que constitui a norma social ela de repente se torna “grande demais para falhar” (expressão usada no capitalismo quando uma empresa, mesmo em tempos de crise, é salva devido a sua importância, sua interconectividade). Consenso turva, ao invés de atacar, uma das raízes da causa da igualdade de gênero: que machucar mulheres é sexy.
Respondendo Objeções
“Você não pode fazer as pessoas se sentirem envergonhadas por suas preferências ou orientações sexuais”
Primeiro, eu já coloquei que preferências são frequentemente condicionadas socialmente. Segundo, o mero fato de ter uma preferência, uma orientação ou identidade não carrega nenhum peso. Nós podemos e devemos fazer críticas sobre o conteúdo de preferências e identidades. Algumas pessoas se identificam fortemente como supremacistas brancos ou neo-nazis. Alguns consideram que sua orientação sexual envolve pedofília, estupro ou assassinato. O fato de eles considerarem estas coisas como orientações sexuais não torna pedofília, estupro ou assassinato aceitáveis.
“Você não fala por todas as mulheres. Estas mulheres não enxergam isso como prejudicial”
Eu não nego que mulheres talvez genuinamente sintam que dor e subjugação são sexy. Isso é precisamente por que fomentar consciência é um componente necessário do projeto de política feminista. Como feminista, eu posso validar a experiência de uma mulher sem endossar o conteúdo, que foi moldado por condições de desigualdade. Por exemplo, eu não nego que mulheres sentem vergonha dos seus corpos e sentem a necessidade de serem impossivelmente magras, mas eu não apoio que elas devam sentir vergonha dos seus corpos ou que elas devam passar fome.
Dano não é subjetivo e não pode ser meramente um produto dos sentimentos de alguém. Primeiro porque nós sabemos que pessoas, devido a socialização, invalidação e desigualdade não estão sempre conscientes de que dano é dano. Segundo, porque nós não diríamos, por exemplo, que homens sofrem “danos” se eles não podem transar com qualquer mulher que quiserem ou que Cristãos sofrem “danos” por causa da homessexualidade – mesmo que muitas claramente sintam-se dessa forma.
“Você está negando as mulheres sua agência em não valorizando suas escolhas individuais”
Nunca é uma questão de agência de uma mulher. Em um nível trivial e metafísico, nós sempre somos livres para escolher o que fazemos a menos que estejamos inconscientes, sobre o efeito de alucinógenos ou fisicamente inválidos. Eu não estou julgando ou argumentando contra o que mulheres estão escolhendo quando elas “consentem” mas o que homens (e algumas mulheres) escolhem fazer com elas. O que é importante são as normas sociais, práticas e condições que tornam aquela escolha possível. Prostituição não poderia ser uma escolha se não houvesse demanda e se nós não pensássemos que pessoas fossem coisas que podem ser vendidas e compradas.
“E se nós fizéssemos pornografia com homens no papel submisso?”
Equiparar violências não cria condições iguais. Nós não resolvemos o problema de desigualdade racial fazendo com que a polícia prenda e viole as liberdades civis de um número igual de pessoas brancas; nós erradicamos a desigualdade através da erradicação de condições de subordinação e criando mudança material e positiva que de fato valorize todas as pessoas como livres e iguais.”