“Revolução Sexual”, Retorno ao gênero, pós-modernismo e despolitização
13 de abril de 2014 às 06:19
Os anos 80 são, nos Estados Unidos, marcados pela crise econômica e o reforçamento do moralismo mais conservador, simbolizado pelo desenvolvimento do movimento “Pró-vida” (anti-abortista, mas também anti-feminista e extremadamente lesbofóbico). É a época do auge do movimento lésbico (feminista, separatista ou radical), e ao mesmo tempo de uma “segunda revolução sexual” que desde este mesmo movimento lésbico, se pode ler mais precisamente como um retrocesso teórico e prático, com um retorno ao pensamento masculino-gay e uma releitura despolitizante do conceito de gênero.
No interior do movimento feminista, estala um forte debate, cujo ponto álgido é a Conferência anual de Barnard College de 1982, que se propunha analisar a “política sexual” do movimento. Por um lado, se desenvolve uma linha “liberal” em torno à sexualidade, com reflexões como a de Gayle Rubin. Segundo sua análise, o problema radica na hierarquização das sexualidades, situando-se arbitrariamente no ápice a heterossexualidade reprodutiva e monogâmica, enquanto que as sexualidades “desviadas” são discriminadas e condenadas. Desde este ponto de vista, o importante é conseguir uma aliança de todas as “minorias sexuais” que de uma ou outra maneira subvertem a heterossexualidade (Rubin, 1984). Este análise reduz uma vez mais o lesbianismo à sexualidade, e a sexualidade lésbica a uma sexualidade “diferente” entre muitas. Ou seja, se desvincula totalmente o questionamento político global da sociedade originalmente proposto desde o lesbianismo feminista, radical ou separatista.
Indo ainda mais longe nesta direção “pró-sexo” liberal, algumas lésbicas como Pat Califia e o grupo S/M Samois não duvidam em reivindicar abertamente o sadomasoquismo lésbico como uma maneira de empoderar-se por meio da sexualidade (Califia, 1981 y 1993 ; Samois, 1979 y 1981). Numerosas lésbicas e feministas denunciaram vigorosamente esta tendência como anti-feminista, por basear-se na tradicional erotização patriarcal da violência e da dominação. Audre Lorde por exemplo afirma : “Como mulher pertencente a uma minoria, sei perfeitamente que a dominação e a submissão não são temas próprios do dormitório.” (Lorde, 1984). Sem recusar nem a sexualidade, nem a busca do prazer, nem o erotismo (Lorde, 1993), com ela, várias autoras consideram que voltar a reger-se novamente por padrões de conduta sexual típicamente masculinos — e gays — apresentados como o “verdadeiro sexo quente”, demonstra uma queda da auto-estima das lésbicas, que há anos se propunham muito mais uma busca sexual diferente, e congruente com suas aspirações feministas. Colocam que o uso da pornografia e prostituição, embora sejam “lésbicas”, somente reforçam um imaginário patriarcal e multiplica as ambições da indústria do sexo, conduzindo por fim à exploração de mulheres e lésbicas por outras lésbicas (Jeffreys, 1996).
A esta primeira tendência, se une outra, com origens distintos — não a análise da sexualidade senão que do gênero — mas com bastante concordâncias: o pensamento queer (estranha/estranho), popularizado pela norte-americana Judith Butler e a italiana estabelecida nos Estados Unidos Teresa de Lauretis.
Com forte influência pós-modernista e do pensamento gay e psicaanalítico, Butler afirma que o gênero seria uma “performance”, algo fluido, modificável e múltiplo, o que permitiria às mulheres “jogar” sobre um registro identitário variado e modificável (Butler, 1990). As e os “transgêneros”, as e os travestis, as e os transsexuais, os drags-kings e as drags-queens 12, e inclusive as e os heterossexuais dissidentes viriam a romper a trágica bipolaridade dos gêneros e a questionar sua “naturalização” 13. Existem algumas confluências entre parte do movimento queer e as contribuições das lésbicas e feministas não-brancas, na medida em que ambas correntes possuem interesse na crítica pós-modernista do sujeito “universal” do pensamento “moderno”, que esconde exclusivamente os interesses dos homens brancos, heterossexuais e economicamente privlegiados (hooks, 1990). De Lauretis, por sua vez, faz uma reflexão desde a semiótica da imagem cinematográfica, e conceitua neste marco às lésbicas como "sujeitos ex-cêntricos ", capazes de lançar um olhar novo sobre o mundo. Na França, o primeiro grupo queer, o ZOO, formado en 1998, se inspira em Butler e trabalha a sua difusão e tradução ao francês (Bourcier, 2001 ; Preciado, 2000).
Embora o movimento queer em si não se destaque por seu caráter militante ou de rua, tem um duvidável eco ideológico, por exemplo se medimos pela multiplicação das lésbicas que querem lutar com outras “minorias sexuais”, como o atestam as referências cada vez maiores a um movimento “LGBT” (Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transgênero ou Transexuais). Porém, existe uma forte crítica feminista, como a que expôe magistralmente Sheila Jeffreys, que assinala que a perspectiva queer, bastante influenciada por imaginários sexuais e sociais masculinos e sua concepção da “liberação sexual”, tem conotações profundamente individualistas e idealistas que deixam incólumes as bases materiais da exploração, em especial da exploração das mulheres (Jeffreys, 1996).
Como o escreve Barbara Smith:
“As e os ativistas queer trabalham sobre questões queer e os temas do racismo, opressão sexual, e exploração econômica não parecem interessar-lhes, apesar do fato de que a maioria das pessoas queerssejam gente de cor, mulheres e de classe trabalhadora. Quando mencionam outras opressões ou outros movimentos, é para construir um paralelismo que sustente a validez dos direitos lésbicos e gays, ou para pensar em alianças com organizações “respeitáveis” mainstream.Construir coalições unificadas hoje, que desafiem o sistema e em última instância preparem o caminho para uma mudança revolucionária, simplesmente não é o que as e os ativistas queer têm em mente.” (Smith, 1998).
- jules falquet, trecho do livro ‘breve resenha de algumas teorias lésbicas’