Centro versus Periferia na UE

Centro versus periferia na UE

13 de Junho, por Eric Toussaint
{fonte: CADTM}
{tradução para português: Rui Viana Pereira}

Entre 1980 e 2004, a adesão à União Europeia tornou-se muito popular aos olhos de uma grande parte da população dos países envolvidos. Os cidadãos portugueses, gregos e espanhóis, recentemente libertos de regimes ditatoriais1, encaravam a integração europeia dos seus países como um garante de estabilidade democrática, mas também como uma oportunidade bem real de melhoria das suas condições de vida (as transferências de verbas dos países mais ricos da UE para os membros da região mediterrânica foram avultadas durante os primeiros anos)2. A adesão desses países à Zona Euro durante os anos 2000 também beneficiou da simpatia popular por ter sido acompanhada por um aumento do consumo, obviamente suportado pelo crédito. Quanto aos países do ex-bloco de Leste, sucedeu um fenómeno semelhante: empenhamento na estabilidade democrática, expectativa de transferência de verbas, possibilidade de circular dentro da União, que é como quem diz procurar trabalho mais remunerador a oeste e acesso ao crédito financeiro para consumo. No entanto, desde os anos 2000, as verbas transferidas dos países mais ricos para as economias dos novos membros foram reduzidas a uma ninharia e certos sectores produtivos, designadamente no domínio agrícola, foram muito duramente afectados pela concorrência do agrobusiness da parte ocidental da Europa, muito mais industrializada e competitiva.8

Os anos 2008-2010 constituem um ponto de viragem na percepção quer os povos europeus têm da União Europeia. Aos olhos de largos sectores da população esta visão ganha um carácter negativo. As medidas neoliberais impostas pela Comissão Europeia em nome da promoção da famosa «concorrência livre e não falseada», a partir de 2009-2010, combinam com a crise do euro e o forte impacto da crise económica.

Um centro e uma periferia no seio da União Europeia

A relação hierárquica que existe ao nível mundial, com um Centro constituído pelos EUA, a União Europeia e o Japão (a Tríade) e uma Periferia formada pelos países ditos «em desenvolvimento» teve uma réplica no seio dos 27 países da União Europeia. O Centro é constituído pelos países mais poderosos, a começar pela Alemanha e a França, a que se deve acrescentar o Reino Unido, a Itália e o antigo Benelux (Holanda, Bélgica e Luxemburgo). A periferia submetida ao ditame deste Centro hegemónico é constituída principalmente pelos países do sul e leste da Europa, além da Irlanda a oeste. Ao nível mais restrito dos países da Eurozona3, o mesmo fenómeno deu origem, a partir do momento em que certos países deram a conhecer as suas dificuldades, ao acrónimo inglês PIGS (Portugal, Irlanda, Grécia e Espanha), acerca do qual circularam os mais escandalosos jogos de palavras racistas.4

A recusa da União Europeia a desenvolver verdadeiras políticas comuns para ajudar os novos membros a reduzirem as suas desvantagens económicas em relação ao Centro contribuiu largamente para criar disparidades estruturais prejudiciais ao processo de integração europeia.

No decurso dos últimos 10 anos, a Alemanha (mas também os Países Baixos e a Áustria) lançou-se numa política neomercantilista: conseguiu aumentar as suas exportações, especialmente dentro da UE e da Eurozona, comprimindo os salários dos trabalhadores na Alemanha. Neste país, em Setembro de 2010, 7,3 milhões de assalariados tinham apenas um miniemprego a tempo parcial, com 400 euros de remuneração por mês.5 Assim conseguiu ganhar competitividade em relação aos seus parceiros e em particular a países como a Grécia, Espanha, Portugal e até outros como a Roménia, Bulgária, Hungria (que não fazem parte da Eurozona). Nestes países instalou-se (ou aprofundou-se) um défice comercial em relação à Alemanha e a outros países do Centro. Os défices da balança de pagamentos correntes verificados nesses países são o reverso dos excedentes do Centro, principalmente da Alemanha. Estes défices, que podem corresponder a défices financeiros do sector privado ou do sector público, têm de ser cobertos por verbas externas: dívidas (que é como quem diz empréstimos) ou investimentos estrangeiros. O défice da balança corrente resulta principalmente dos défices privados, financiados na sua maioria por bancos do Centro, já que os investimentos foram relativamente débeis (salvo no caso da Espanha) ou foram contrabalançados por enormes saídas de capital sob a a forma de repatriamento de lucros para as multinacionais que fizeram investimentos. É assim que em certos países da Europa de Leste (Hungria, Eslováquia e República Checa) o repatriamento de lucros (saída de capitais) foi superior aos investimentos (entrada de capitais).6

De maneira geral, o endividamento dos países da Periferia deve essencialmente ao comportamento do sector privado no quadro da União Europeia. Incapazes de rivalizarem com o Centro, os sectores privados endividaram-se junto dos bancos do Centro, mas também junto de agentes internos; a economia dos países periféricos tornou-se maioritariamente financiada após a adopção do euro. O consumo teve nesses países um boom e nalguns deles (Espanha, Irlanda, Hungria, Roménia, Bulgária) desenvolveu-se uma bolha imobiliária que acabou por rebentar.

As taxas de juro progressivamente mais altas pagas pela Periferia a cada novo empréstimo realizado depois de estalar a crise aumentaram mais ainda a sangria de capitais em favor do Centro (as instituições financeiras privadas do Centro que compram títulos da dívida emitidos pelos países da Periferia, ou os governos do Centro que participam nos «planos de ajuda» emprestando dinheiro a 5,2% no caso da Grécia). A Alemanha, a França e a Áustria, por exemplo, pedem emprestado a 2% e emprestam a 5,2%. É uma operação altamente rentável. Os mercados financeiros exigem taxas de juro duplas ou triplas das que pediam em 2007-2008 e os montantes emprestados são muito avultados. O dinheiro emprestado pelos países do Centro à Grécia, à Irlanda ou a Portugal retorna aos bancos privados do Centro que emprestam a 10% ou mais. Existe uma clara sangria de recursos que vão da Periferia para o Centro.

Por outro lado, a par das vantagens em termos de produtividade da Alemanha e de outros países do Centro relativamente aos países da Periferia, ocorre igualmente uma sangria por via das trocas comerciais, segundo o mecanismo da desigualdade de troca descrito por Marx em O Capital: «Os capitais colocados no comércio exterior alcançam uma taxa de lucro mais elevada, porque vendem mercadorias que os outros países não produzem com as mesmas facilidades, de tal forma que o país mais avançado vende mercadorias abaixo do seu valor, a melhor preço que os países concorrentes. […] A mesma situação pode ocorrer num país donde se importa e para o qual se exportam mercadorias. Este país pode fornecer mais trabalho materializado do que aquele que recebe, e receber entretanto as mercadorias a melhor preço do que pagaria se as produzisse ele próprio.»7

Fundar democraticamente outra União Europeia baseada na solidariedade

Muitas das disposições dos tratados que regem a União Europeia, a Eurozona e o Banco Central Europeu têm de ser revogadas. Por exemplo, é preciso suprimir os artigos 63 e 125 do Tratado de Lisboa que proíbem terminantemente o controle dos movimentos de capitais e a ajuda a um Estado em dificuldades. É preciso abandonar igualmente o Pacto de Estabilidade e Crescimento. Além disso é preciso substituir os actuais tratados por no quadro dum verdadeiro processo constituinte democrático, a fim de alcançar um pacto de solidariedade dos povos para o emprego e a ecologia.

É preciso rever por inteiro a política monetária, bem como o estatuto e as práticas do Banco Central Europeu. A incapacidade do poder político para controlar a criação de moeda através no BCE é um handicap muito pesado. Ao colocar um Banco Central Europeu acima dos governos e portanto acima dos povos, a União Europeia fez uma escolha desastrosa – a de submeter o humano à finança, em vez de fazer o inverso.

Uma Europa baseada na solidariedade e na cooperação deve permitir voltar as costas à concorrência e à competição, que puxam «para baixo». A lógica neoliberal conduziu à crise e revelou a sua falência. Puxou para baixo os indicadores sociais: menos protecção social, menos emprego, menos serviços públicos. Os poucos que tiraram proveito da crise fizeram-no espezinhando os direitos da maioria dos outros. Os culpados ganham, as vítimas perdem! Esta lógica, que sustenta todos os textos fundadores da União Europeia, com o Pacto de Estabilidade e Crescimento à cabeça, tem de ser abatida – não é sustentável. O objectivo prioritário deve ser o da construção de uma outra Europa, baseada na cooperação entre os Estados e na solidariedade entre os povos.

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notas

1 Rgimes de Salazar e Caetano (1933-1974) em Portugal, ditadura franquista (1939-1975) em Espagne, ditadura dos coronéis gregos (1967-1974).

2 A popularidade da adesão europeia foi nitidamente mais baixa nos países ricos do norte da Europa (Grã-Bretanha, países escandinavos).

3 A Zona Euro foi criada em 1999 por onze países: Alemanha, Áustria, Bélgica, Espanha, Finlândia, França, Irlanda, Itália, Luxemburgo, Holanda, Portugal. A estes se juntaram de seguida a Grécia em 2001, Eslovénia em 2007, Chipre e Malta em 2008, Eslováquia em 2009, Estónia em 2011

4 Em inglês «pigs» quer dizer «porcos».

5 Frédéric Lemaître in Le Monde, 17 Maio 2011.

6 Ozlem Onaran, «Fiscal Crisis in Europe or a Crisis of Distribution?», Department of Economics, SOAS.

7 Karl Marx, Livre III, reedição Gallimard, La Pléiade, 1963, p.1021.

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notas do tradutor

8 Compreende-se bem o que o Autor pretende aqui dizer e ao que se refere. No entanto é preciso levantar uma suspeita colateral: muitos sectores da economia dos países hegemónicos talvez não fossem assim tão competitivos…
Esta hipótese permitiria explicar a «estranha» agressividade das negociações para a integração de países como Portugal, que incluíram o desmantelamento de todo o sector das pescas e indústria conserveira, a produção alimentar artesanal de elevadíssima qualidade (e portanto de elevado preço no consumidor), a maior parte da indústria agrícola, a contenção da produção de lacticínios (o leite dos Açores foi deitado ao mar), etc.; e ainda a apropriação de territórios (abertura dos pesqueiros aos países ricos da Europa, que rapidamente os exauriram), a apropriação de industrias rentáveis, etc.
Por outras palavras, feitas as contas é possível que a transferência de verbas não tenha sido apenas uma forma de «comprar» politicamente os países periféricos, mas sobretudo um investimento de negócio que não só renderia chorudos lucros aos países investidores, como permitiu eliminar concorrência duma forma quase militar, queimando barcos e colheitas, à maneira de Gengiscão.

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Éric Toussaint,

docteur en sciences politiques des universités de Liège et de Paris VIII, président du CADTM Belgique, membre du Conseil international du Forum social mondial et de la Commission présidentielle d’audit intégral de la dette (CAIC) de l’Équateur, membre du Conseil scientifique d’ATTAC France, auteur des livres Un coup d’œil dans le rétroviseur. L’idéologie néolibérale des origines jusqu’à aujourd’hui (Cerisier, 2010), Banque du Sud et nouvelle crise internationale (CADTM-Syllepse, 2008), Banque mondiale : le coup d’Etat permanent (CADTM-Syllepse-Cetim, 2006), La finance contre les peuples (CADTM-Syllepse-Cetim, 2004). Co-auteur avec Damien Millet des livres La Crise, quelles crises ? (Aden-CADTM-Cetim, 2010), 60 questions 60 réponses sur la dette, le FMI et la Banque mondiale (CADTM-Syllepse, 2008) et Les tsunamis de la dette (CADTM-Syllepse, 2005). Ouvrage le plus récent (paru en juin 2011) : La Dette ou la Vie, Aden-CADTM, 2011 (livre collectif coordonné par Damien Millet et Eric Toussaint).