Balanço da residência de 30-31 Julho 2011

Residência sobre dívida e soberania

Fim-de-semana de 30-31 de Julho – 25 activistas de diversas áreas reuniram-se numa residência de trabalho durante dois dias. O local escolhido foi o Projecto270 – uma quinta de permacultura situada perto da Costa da Caparica, a cerca de 20 km de Lisboa. A iniciativa foi do Rossio Contra a Dívida, mas os trabalhos foram participados e orientados por elementos de vários movimentos cívicos.
O programa original já aqui tinha sido publicado.

A residência correu de forma produtiva e com bastante entusiasmo – tanto que, apesar de a praia estar apenas 200 metros de distância e fazer um belo tempo de Verão, os trabalhos levaram a melhor. Só os mais radicais conseguiram dar um mergulho tardio, depois da última sessão de trabalho e já sem sol.

O programa abarcava temas aparentemente tão díspares como as crises financeiras, a dívida soberana, a soberania alimentar, a evolução da Grécia ao longo dos últimos anos, soluções refundadoras para o euro, acções mobilizadoras.

A exposição e os debates demonstraram que a disparidade dos temas era apenas aparente.
Por um lado, tornou-se claro que vamos encontrar sempre os mesmos dois actores (ou será apenas um e o mesmo?) no centro dos acontecimentos que provocaram as grandes crises mundiais: o poder financeiro privado; as grandes multinacionais da indústria agropecuária e química. Esta situação já era visível num dos filmes usados durante a residência para animar o debate sobre a história das crises capitalistas: As Vinhas da Ira, de John Ford.
Por outro lado verifica-se que a evolução da crise da dívida soberana em países tão diferentes como a Argentina, Grécia e Portugal (para nomear apenas 3) obedece sempre às mesmas linhas mestras. As condições de endividamento impostas são idênticas em toda a parte, embora possam vir em pacotes com nomes variados: «ajuste estrutural», Consenso de Washington, «ajuda ao desenvolvimento»… Estas medidas são propostas por um conjunto de entidades que se apresentam sob diversas cores e formatos (Banco Mundial, FMI, Troika, agências para o desenvolvimento, etc.), mas não diferem na substância – apenas improvisam nos pormenores derivados da especificidade local (por exemplo, na Grécia a Troika exige a privatização das ilhas e das praias, ao mesmo tempo que empresta dinheiro ao Governo grego para este comprar dezenas de milhões de euros de equipamento militar à França e à Alemanha).

Em todos os casos, existe um denominador comum: um gigantesco processo de transferência:

  • transferência da propriedade da terra para a banca privada, graças às manobras de multinacionais como a Monsanto
  • transferência dos custos das crises financeiras para os trabalhadores de todo o Mundo e para os governos da Periferia (ou seja, para os países dominados)
  • transferência das indústrias de alta produtividade para o Centro (ou seja, para os países ricos dominantes) e das indústrias de baixa produtividade para a Periferia
  • transferência dos capitais financeiros da Periferia para o Centro
  • transferência da propriedade dos recursos naturais, da água e até dos recursos bioquímicos da Natureza, para as multinacionais
  • transferência dos recursos culturais para o Centro (os bancos privados alemães chegam ao ponto de pedir o Parténon como garantia hipotecária)
  • transferência das soberanias, num processo de neocolonialismo descarado – o facto de os poderes públicos portugueses governarem actualmente sob custódia dos supervisores da Troika não é novidade – grande parte do Terceiro Mundo vive nesse regime há décadas, sem verdadeira autonomia e soberania.

Conclusões práticas da residência

  • urgência de promover plataformas mínimas de acção. Não é novidade nenhuma a urgência de unir grupos e movimentos cívicos espalhados por todo o país em acções comuns (não existe qualquer necessidade imperativa de se unirem programaticamente); mas isso depende da capacidade de criar projectos de acção motivadores, claros, unificadores, capazes de gerarem mobilização social
  • um dos temas ou plataformas mínimas de acção comum pode ser a investigação da dívida soberana por parte dos cidadãos – ou, por outras palavras, a auditoria cidadã
  • todas as grandes linhas de acção futuras devem ter em conta que sem acções de solidariedade e coordenação internacionais todas a lutas contra a crise da dívida e o saque irão desembocar num beco sem saída.

Propostas concretas

Investigar a dívida

Um dos seminários da residência foi inteiramente dedicado à auditoria cidadã, a partir de uma primeira versão-rascunho de um manual intitulado Investiguemos a Dívida.

O manual propõe a investigação da dívida soberana como plataforma mínima de acção comum a todos os movimentos cívicos e baseia-se em três perguntas basilares:

  • quanto devemos?
  • a quem devemos?
  • porque devemos?

A oportunidade desta proposta resulta das seguintes razões:

  • o processo de endividamento português é obscuro (ou seja, nenhuma das três perguntas anteriores pode ser respondida sem investigação)
  • quando um Estado se endivida, o encargo de reembolsar a dívida e pagar os respectivos juros recai inteiramente sobre os cidadãos. Por isso, à luz dos direitos humanos e da doutrina internacional, o endividamento dum Estado apenas é legítimo quando sirva os interesses e necessidades da população em geral e se destine a melhorar as suas condições de vida, nunca quando sirva para as piorar objectivamente
  • os planos de austeridade dos últimos anos atingem exclusivamente os trabalhadores, em especial as camadas mais frágeis da população, poupando a banca e os grandes investidores privados; os autores desses planos argumentam com o processo de endividamento (que curiosamente se iniciou sob o lema do «desenvolvimento»)
  • a destruição do Estado social é igualmente apresentada como inevitável por causa do endividamento nacional
  • à luz dos direitos humanos e dos convénios europeus, os cidadãos têm pleno e legítimo direito de investigar todos os actos, documentos e diplomas da administração pública, a todos os níveis; esta garantia de participação cívica directa no governo e na administração faz parte das garantias dum Estado democrático e da transparência dos poderes públicos; um poder público que impeça a participação democrática dos cidadãos deveria ser entendido como usurpador, podendo, no limite, ser considerado ditatorial.

A proposta de investigação da dívida soberana apresentada no manual Investiguemos a Dívida assenta num conjunto de princípios e métodos que 1) a delimitam e 2) estruturam o trabalho de forma a evitar o fraccionamento dos movimentos cívicos:

  • princípio da auditoria integral – nenhuma parte da dívida interna ou externa deve ser excluída da investigação, à partida
  • método da concentração e dispersão – os movimentos cívicos são encorajados a promoverem auditorias locais (a nível autárquico, institucional, dos grupos de utentes de serviços de utilidade pública, de transportes, etc.); estas auditorias parcelares poderão integrar ou complementar a auditoria da dívida soberana
  • método da objectividade (exclusão da futurologia economicista, determinista ou programática) – no cálculo dos ganhos e perdas sociais relacionados com os processos de endividamento, é desencorajado qualquer cálculo baseado em «visões» ou «previsões» do futuro – os únicos elementos sobre sociedade admissíveis no processo de investigação deveriam ser as condições objectivas de vida da população, presentes e passadas; ou seja, os índices sociais directamente comparáveis e mensuráveis, com exclusão de toda e qualquer especulação ou justificação futurologista
  • princípio da participação democrática e cívica – a investigação da dívida soberana deve ser suportada pela mobilização popular e ser coordenada por cidadãos comuns (independentemente da necessária colaboração de técnicos especializados em diversas áreas, do apoio de militantes partidários e sindicais, etc.)
  • princípio da solidariedade internacional – a investigação deve aproveitar a coordenação com outros processos semelhantes, em especial nos restantes países da União Europeia
  • princípio da suspensão do serviço da dívida – o processo de endividamento é obscuro, o destino dos dinheiros dos empréstimos nem sempre é claro, por isso a única atitude correcta consiste em investigar a dívida pública e suspender imediatamente o reembolso das prestações e dos juros da dívida; insistir em não suspender o serviço da dívida equivale a atirar um carro em andamento para uma curva sem visibilidade, recusando carregar no travão – com a diferença de que não está em jogo a vida de quatro passageiros, mas sim de dez milhões.

Lançar campanhas de agitação e esclarecimento

Uma das tarefas decididas durante a residência de 30-31 de Julho foi a preparação de acções e campanhas de agitação e informação, com o fim de alertar os cidadãos para os problemas referidos acima, fornecendo-lhes informação suficiente para que possam entender os numerosos aspectos técnicos e políticos em jogo e, consequentemente, tomar posição. Isto será feito através de panfletos, cartazes e acções de rua de vários tipos.
Com o mesmo objectivo, mas de forma ainda mais aprofundada, pretende-se realizar sessões de esclarecimento e dabate nas escolas, meios académicos, colectividades locais, etc.
Estas tarefas serão preparadas ao longo de Agosto-Setembro, para serem lançadas a partir de finais de Setembro.

Finalizar o manual de auditoria cidadã

A actual versão do manual Investiguemos a Dívida deverá ser corrigida e melhorada de forma a poder ser amplamente divulgada, juntamente com outros documentos relativos ao esclarecimento do processo de endividamento, até meados de Outubro.
Entretanto, a versão actualmente existente agradece correcções e observações de todos os activistas e especialistas interessados.