Relatório de participação na 2ª Universidade de Verão do CADTM

Relatório da participação na 2ª Universidade de Verão do CADTM

Balanço da participação por Rui Viana Pereira, enviado da Assembleia Popular do Rossio.

A assembleia popular do Rossio de Lisboa, ou «acampada», quotizou-se em Junho 2011 para enviar um representante à 2ª Universidade de Verão, que decorreu na Bélgica de 1 a 3 de Julho de 2011.

A Universidade de Verão é uma iniciativa do CADTM (Comité para a Anulação da Dívida do Terceiro Mundo). Persegue dois objectivos:

  • pôr em contacto representantes de diversos países e continentes, unidos por uma preocupação comum: a dívida soberana (sobretudo a dívida externa); especial destaque é dado aos países ditos do Terceiro Mundo e aos Países em Desenvolvimento; neste ano de 2011 a 2ª Universidade de Verão concentrou-se mais especificamente no problema dos países periféricos europeus, que está na ordem do dia;
  • realizar um conjunto de seminários e workshops que forneçam conhecimentos e instrumentos de trabalho sobre a questão da dívida soberana.

Houve cerca de 300 participantes provenientes de todas as partes do mundo – sobretudo da Europa (Portugal, Espanha, França, Bélgica, Inglaterra e Irlanda, Islândia, Grécia, Polónia, etc.), Norte de África, América do Sul; alguns da África subsariana; participações individuais vindas da Alemanha e da Hungria, com apresentação de ponto da situação local.

Os trabalhos estavam organizados da seguinte maneira: além dos plenários periodicamente intercalados, de manhã e à tarde decorriam 5 seminários simultâneos sobre temas diferentes. Era preciso por isso escolher uma linha de trabalho e optar por um dos seminários em cada momento. As linhas gerais dos seminários estavam organizadas da seguinte forma:

  • dívida e austeridade no Norte
  • a saída do colonialismo
  • a dívida ecológica
  • a lei internacional como instrumento de luta
  • lutas feministas

Não sendo possível estar em toda a parte ao mesmo tempo, perdi, com muita pena minha, 3 linhas de trabalho importantes: a luta feminista, a dívida ecológica, a história das ex-colónias e sua situação actual. Estive presente na maior parte dos seminários sobre dívida, austeridade e instrumentos de luta.

É possível que o João Labrincha, que também lá esteve em representação do M12M, queira completar dados que me escaparam, se o movimento de que faz parte não se opuser à colaboração com a acampada.

Fica como nota para futuras situações deste tipo a necessidade de enviar vários participantes, de forma que cada um deles possa frequentar um tema diferente e todos juntos tragam uma visão geral e benefícios conjuntos.

O balanço geral que eu faço é muito positivo. Adquirimos um conjunto de conhecimentos teóricos e práticos muito vasto; instrumentos de trabalho muito eficazes que não possuíamos; contactos com activistas e grupos de outros países; a convicção de que as tarefas inerentes à constituição de uma auditoria cidadã, apesar de assustadoramente complexas, são afinal perfeitamente executáveis e estão ao nosso alcance; a notícia de que existem numerosas organizações e activistas de outras partes do mundo dispostos a ajudar-nos na prática.

Tendo em conta que esteve presente pelo menos mais um representante português (do M12M), é possível que este encontro internacional, ao permitir a sistematização de ideias e conhecimentos, tenha contribuído para solucionar um dos piores problemas da resistência (em particular a portuguesa): a dificuldade tradicional de criar plataformas mínimas de entendimento, acção e aproximação entre diferentes grupos, tendências, projectos e movimentos.

Ouvi dizer que esteve presente um terceiro português mas, estranhamente, não foi possível contactá-lo.

Ponto da situação na Europa

Graças aos relatos prestados por activistas de outras partes do Mundo conclui-se:

  • Dinâmica dos movimentos sociais e da consciência colectiva
    • A Europa encontra-se «a várias velocidades». Esta expressão consagrada pelos políticos institucionais aplica-se igualmente à actual dinâmica dos movimentos sociais e ao grau de consciência política de cada cultura. Assim, por exemplo na Espanha e na Grécia, como é sabido, a indignação saiu à rua com uma força a que não se assistia faz décadas. Noutros países assistimos a manifestações regulares de desagrado, mas não com a unidade, constância e determinação que encontramos na Grécia. Em países como Portugal o desconforto da população face às medidas de austeridade (em curso ou anunciadas) é visível, mas não se manifesta ainda em acções de resistência continuadas. Finalmente, em países como a Hungria, o clima de medo ou mesmo terror é de tal ordem que abafa os protestos, apesar das terríveis situações de miséria e atropelo dos direitos humanos.
    • Na Grécia parece verificar-se um salto da consciência colectiva: as pessoas apontam o curso dos acontecimentos como um verdadeiro golpe de estado da finança internacional contra as instituições democráticas e o estado de direito; aponta-se a perda de direitos democráticos e humanos.
    • Se, numa fase inicial, havia desconfiança mútua entre as associações sindicais e partidos de esquerda, por um lado, e por outro os movimentos sociais em acção na rua (as acampadas), nalguns países parece ter-se entrado agora numa fase em que todos tendem a compreender que sem plataformas mínimas de acção e entendimento é difícil, senão mesmo impossível, alcançar vitórias permanentes contra as medidas de austeridade, a dívida externa, o golpe de estado.
    • Pela Europa fora começa a cimentar-se a ideia clara de que a responsabilidade da dívida cabe aos interesses financeiros nacionais e internacionais, e não à população em geral; compete portanto às empresas financeiras pagar a dívida que elas próprias produziram. Esta ideia, como sabemos através dos nossos próprios debates no Rossio, está longe de ser consensual, óbvia e adquirida em Portugal, onde ainda pesa maioritariamente a ideia (transmitida incessante e propagandisticamente pelos media) de que todos temos uma quota de responsabilidade na dívida, de que o FMI (que na verdade foi historicamente criado com o fim específico de ser o porta-voz da finança mundial) nos veio «ajudar», etc.
  • A unicidade do «inimigo comum»
    • Face ao relato dos representantes dos vários países de todo o mundo, torna-se muito fácil compreender que o que está em causa em todos os países do mundo é a questão do poder financeiro; que o «golpe de estado» está em curso por toda a parte.
    • Assim se compreende o apelo desesperado à solidariedade e coordenação de esforços por parte daqueles que já adquiriram uma consciência avançada destas questões – em particular os activistas da Grécia e algumas correntes do Norte de África e da América do Sul. Estas correntes não só se deram conta do golpe de estado em curso, mas também de que, sendo o poder financeiro uma ameaça «sem pátria», nenhum país conseguirá combatê-la isolado.
  • Necessidade de actuar em diversas frentes simultâneas
    • Existe ainda uma tendência generalizada para desenvolver soluções simplistas, panaceias universais. No entanto, alguns exemplos pontuais permitem compreender que a resistência ao golpe de estado deve ser levada a cabo em várias as frentes ao mesmo tempo. A forma de o fazer depende das características específicas de cada país.
    • Na Islândia, por exemplo, a especificidade das condições locais levou à criação de um novo partido criado em moldes diferentes dos tradicionais (isto é, de forma aberta, mobilizadora, fora duma lógica de secretismo maçónico), permitindo traduzir a luta das ruas para dentro do parlamento. Os resultados desta estratégia ainda não podem ser aferidos, ficando por saber se a intervenção deste novo partido reverte definitivamente para a defesa do sistema e dos interesses financeiros, como é costume, ou se é capaz de criar novas dinâmicas dentro das instituições.
    • No entanto a experiência islandesa traz-nos um outro método de trabalho com o qual podemos aprender muito: toda a força do movimento social tende a ser dirigida não contra os porta-vozes e executores das políticas, mas sim contra a fonte dos problemas: as empresas financeiras, a quem o movimento popular tenta fazer a vida negra, inundando-as com cartas de protesto, processos em tribunal, bloqueios físicos, queixas nos tribunais e instâncias da UE, etc. Desta táctica resultou que por vezes as empresas financeiras cedem mais depressa do que os políticos encarregados de defender os interesses das mesmas.
    • Os movimentos islandeses caracterizam-se também por um esforço no sentido de identificar meia dúzia de questões que tocam de perto a vida e o entendimento imediato do cidadão comum – um pouco à maneira do que aconteceu na manifestação de 12 de Março em Portugal, onde toda a gente entendeu facilmente o que estava em causa: o desemprego e a precariedade. Fica mais uma vez por aferir até que ponto a simplificação das palavras de ordem (iludindo ou calando a causa das coisas) não conduz a desvios de percurso ou becos sem saída.
    • É problema comum a todos os países o bloqueio e a lavagem ao cérebro produzidos pelos órgãos de comunicação social – que eu definiria mais exactamente como órgãos de propaganda oficial em todos os países da Europa. A minha conclusão pessoal é a de que a criação de um novo órgão de comunicação social independente, estritamente informativo, tendencialmente internacional, deve ser posto à cabeça da nossa lista de prioridades. Doutra forma torna-se absolutamente impossível ajudar o público a entender o que lhe está a acontecer.
  • As diferentes perspectivas em presença e os pontos comuns
    • Dentro dos movimentos sociais em presença nos países onde a mobilização popular é mais intensa encontramos as mais variadas perspectivas: os que apenas querem resolver o seu problema pontual de austeridade e nada mais; os que pretendem um «upgrade» do actual sistema de gestão política; os que apontam para a criação de um momento de ruptura revolucionária. Eu diria que as movimentações populares ainda estão bastante longe de definirem um rumo próprio, embora quase todas apontem baterias contra um culpado da crise: o poder financeiro internacional.
    • É opinião consensual que a auditoria cidadã constitui um precioso instrumento de luta contra a dívida e seus efeitos sociais e políticos.
    • É opinião consensual que a auditoria não pode ser vista como um fim em si mesma, ou como mero meio de «vingança» pessoal contra os responsáveis pela crise, mas sim como instrumento de luta política e mobilização.
    • É opinião consensual que a criação de comissões de auditoria sem a proposição da suspensão imediata do serviço da dívida até conclusão do processo é uma inconsequência sem sentido.

Os instrumentos adquiridos

Como já referi, são vários os instrumentos de trabalho adquiridos na 2ª Universidade de Verão:

  • bases legais (de direito comum e de direito internacional) para a anulação ou declaração de ilegitimidade da dívida;
  • bases políticas de argumentação contra a dívida;
  • bases instrumentais para a criação de uma comissão de auditoria cidadã e seus métodos de acção.

Estes instrumentos resultam da experiência de 20 anos de luta que o CADTM incorpora. Seria difícil, senão impossível, elencá-los a todos neste breve balanço, e menos ainda explicitá-los de forma eficaz e didáctica.

No entanto creio que teria sido vã a minha ida à Bélgica se estes conhecimentos não fossem transmitidos ao maior número possível de activistas interessados na questão da dívida. Por isso insisto para que a assembleia produza eventos, seminários, sessões de esclarecimento, em que estes instrumentos possam ser transmitidos – não só em Lisboa, mas também nas cidades satélites onde existam contactos e até noutras cidades do país. É certo que este tipo de acções acarreta grandes problemas de organização e orçamentação, mas conto com a imaginação dos membros da Acampada para encontrar soluções.