A COMBINATÓRIA STRAIGHT BIND, UMA NOVA FERRAMENTA MATERIALISTA E DECOLONIAL PARA O LESBIANISMO FEMINISTA por Jules Falquet

postei aqui mas ainda vou mexer para tirar essa linguagem neutra ridícula, pois a tradução foi feita pelo fazendo gênero.

A Combinatória Straight Bind, uma nova ferramenta materialista e descolonial para o Lesbianismo Feminista

Jules Falquet

Uma versão mais longa de este artigo foi publicada em francês em Bidet, Annie; Galerand,Elsa; Kergoat, Danièle (eds.): 2016, “Actualité du féminisme matérialiste”, Les Cahiers du Genre, Paris, pp.73-96.

Para construir alternativas à atual globalização neoliberal, os movimentos e a teoria lésbico-feminista precisam integrar plenamente as teorias críticas do capitalismo, do racismo e do (neo)colonialismo. Inspirada pelas perspectivas lésbicas e feministas materialistas francófonas que emergiram ao final da década de 1970 ao redor da revista Questions Féministes, proponho aqui o conceito de “combinatória straight bind”, com o fim de aprofundar simultaneamente as reflexões lésbico-feministas, os debates sobre interseccionalidade , e as perspectivas descoloniais produzidas no Abya Yala.
Sendo uma lésbica branca, francesa, de classe privilegiada, que a partir de 1989 viveu em diferentes momentos no México e em El Salvador (América Central), ali começando suas primeiras aprendizagens políticas na época das lutas populares revolucionárias, quero agradecer às numerosas feministas e lésbicas Afros, Indígenas e Mestiças do Abya Yala, assim como as lésbicas políticas e as feministas e lésbicas antirracistas na França, por quem aprendo até hoje. E a partir desse “ponto de vista” especifico, proponho aqui revisitar a análise da economia política da (hetero)sex(ualidade).
Lembrarei primeiro como as feministas materialistas francófonas têm transformado radicalmente a conceitualização de “trabalho”, agregando ao conceito da exploração da força de trabalho (que apenas levava a conhecida teoria das classes sociais), até a apropriação do corpo-como-máquina-de-(re)produção-de-força-de-trabalho (que faz aparecer tanto o sexo como a raça como relações sócio-estruturais), o que permite pensar a dinâmica conjunta das relações sociais imbricadas. Logo, mostrarei como desnaturalizaram a sexualidade e sublinharam que para a maioria das mulheres constitua fundamentalmente um tipo de trabalho. Finalmente, considerando também a procriação como um verdadeiro trabalho organizado pelas lógicas eminentemente sociais da aliança matrimonial e da filiação, introduzirei o straight bind como um conceito-chave para analisar a produção e o intercâmbio da (e dos corpos-como-maquinas-de-(re)produção-de-) força de trabalho, para entender tanto sincronicamente como historicamente (diacronicamente) a imbricação das relações sociais de sexo, raça e classe.

Da apropriação racializada e sexualizada à globalização neoliberal: centralidade do trabalho de reprodução social

Apropriação, sexagem e as dinâmicas imbricadas das relações sociais estruturais

A recém falecida (em maio de 2017) socióloga francesa Colette Guillaumin foi central na desnaturalização tanto das relações sociais estruturais de sexo como de raça, e para sua conceitualização não naturalista, histórica e dialética. Seu trabalho fundacional sobre o racismo “moderno” revelou que a ideia atual de raça é um constructo social recente, que organiza materialmente e legitima ideologicamente o modo de produção escravista colonial (Guillaumin, 2002 1972). Ela desconstrói metodicamente essa ideologia naturalista, e expõe a “raça” como um sistema de marcas físicas arbitrárias que criam indivíduos e grupos ao impor uma “diferença” supostamente natural em seus corpos para justificar desigualdades sociais. Guillaumin se voltou depois para o sexo produzindo na confluência do feminismo radical e do feminismo marxista, para a tese da apropriação social das mulheres (1992 1978). Fez-se ver que existe uma lógica similar de naturalização e de apropriação física direta, que afeta diferentes grupos sociais dependo do modo de produção ou do período histórico. Para sublinhar sua semelhança com a servidão medieval europeia servage e com a escravidão colonial de plantação esclavage, chamou de sexage a relação social de apropriação das mulheres que produz tanto as mulheres como os homens enquanto classes de sexo.

Guillaumin distinguiu duas modalidades de apropriação: a apropriação privada, organizada pela instituição do matrimônio, e a apropriação coletiva, tal como existe na prostituição ou nos conventos católicos, mas também através do trabalho assalariado barato de hoje. Muito profunda e antiga, a apropriação coletiva é o que permite a apropriação privada, mesmo que a contradizendo, sendo essa contradição o que permite a transformação dinâmica das duas. Identificando o acesso ao trabalho assalariado (a exploração, como o restante do proletariado) como um fator-chave na transformação simultânea das “sociedades patriarcais” e do capitalismo, do mesmo jeito que o acesso ao trabalho assalariado permitiu a alguns escravos e escravas “comprar” sua liberdade e sair da apropriação privada, Guillaumin sugeriu a possibilidade de realizar uma análise dinâmica, histórica e sobretudo holística da transformação imbricada das relações sociais estruturais de sexo, raça e classe.

Reprodução social global e globalização neoliberal

Meu próprio ponto de partida é a reorganização neoliberal global do trabalho, a qual estou concebendo como uma reconfiguração das relações sociais estruturais imbricadas de sexo, raça e classe que organizam conjuntamente a divisão local e internacional do trabalho. Em especial, a privatização da terra e o desengajamento do Estado tem transformado profundamente a reprodução social, criando e deslocando dentro e através das fronteiras a uma vasta “reserva de mão de obra” que tem sido em parte o total desmonte de recursos e direitos. Observando que uma significativa porção das mulheres não privilegiadas eram empurradas até trabalho industrial mal pago nas novas “zonas econômicas especiais”, bem como até atividades domésticas, de “cuidado” e sexuais no setor de “serviços” (Falquet 2006), propus as noções de trabalho desvalorizado e trabalho considerado como feminino para analisar esses novos trabalhos informais e assalariados (Falquet 2009).
Algunxs autorxs argumentaram que migrantes, institucionalmente privados dos direitos mínimos por meio de sua “indocumentação” organizada por lei (quer dizer, sua “racialização”) tem se tornado o coração da classe proletária. Sugiro melhor observar a convergência significativa das lógicas das relações estruturais de sexo e raça. Mulheres empobrecidas e proletarizadas de todas as raças(e pessoas empobrecidas e proletarizadas de todos os sexos) são forçadas conjuntamente a entrar ao trabalho de reprodução social e a outras atividades subvalorizadas e subpagas.
Logo, voltei a colocar essas transformações na história longa da colonialização, do tráfico e da escravidão desde 1492.Afirmo que as contradições entre apropriação coletiva e privada(assim como entre apropriação e exploração) produzem uma dinâmica de receptáculos comunicantes entre as relações sociais estruturais de sexo, raça e classe (Falquet 2014a). Assim (em um exemplo muito simplificado), o trabalho doméstico que muitas mulheres “em geral” são hoje obrigadas a realizar poderia ser transferido aos homens “em geral”, ou a pessoas racializadas “em geral”. Muito mais precisamente e concretamente, as atuais transformações neoliberais das migrações (crescimento, feminização) e das políticas migratórias nacionais e internacionais (seleção, restrições) aparecem então como uma reorganização da distribuição da força de trabalho em escala global — na qual corpos feminizados e racializados (especialmente da classe proletária) são massivamente destinados ao trabalho barato de reprodução, precisamente como esse trabalho tem sido historicamente imposto para sua realização gratuita por populações escravizadas e por tanto racializadas por um lado, e pessoas feminizadas, casadas e domesticadas pelo outro lado.

Sexualidade e procriação desde a perspectiva das mulheres: o straight mind e a economia política do sexo

A sexualidade, imersa nas relações de poder estruturais

Desde 1969, Kate Millet escreve que a “revolução sexual” como definida pelos ícones da literatura estadunidense estava baseada no desprezo e na brutalização das mulheres e que a sexualidade era um fato social eminentemente político. Gayle Rubin (1975) foi logo uma das primeiras em destacar que o emparelhamento heterossexual não era nem um pouco “natural”, lembrando que o próprio Lévi-Strauss tinha escrito que a divisão sexual do trabalho (que criava uma dependência mútua entre homens e mulheres) era uma criação cultural inventada para garantir que unidades familiais incluíssem ao menos uma fêmea e um macho (para procriação).
As coisas mudaram na década de 1980. Espelhando a fascinação masculina para as supostas virtudes liberadoras da “sexualidade”, parte do feminismo radical teve tendência a se centrar no poder e na violência da sexualidade, e a hipostaziar essa última, colocando-a como a principal causa da opressão (ou da libertação) das mulheres. Muito diferentemente, Guillaumin colocou claramente a sexualidade entre outras dimensões das relações sociais estruturais de sexo. Incluiu o que chamou a obrigação sexual entre as quatro expressões concretas da apropriação das mulheres, junto à apropriação do tempo, dos produtos do corpo, e à carga físicade otrxs membrxs do grupo (1992 1978). Em relação aos meios da apropriação, o constrangimento sexual é apenas um deles, junto com o mercado de trabalho, o confinamento no espaço, a demonstração de força (golpes) e a lei (tanto formal como consuetudinária). Para Guillaumin, a apropriação das mulheres pelos homens não é essencialmente sexual. Homens se apropriam não apenas do corpo sexualizado das mulheres, mas de forma muito mais global de seus corpos-como-máquina-de-(re)produção-de-força-de-trabalho, o que lhes permite acessar muito mais “serviços”.

E a Heterossexualidade criou a Mulher

Apoiando-se firmemente em Guillaumin, Wittig abriu o caminho para o lesbianismo materialista (2007 1980). Examinando as teorias sociais dominantes (especialmente Lacan e Lévi-Strauss), trouxe à luz um dos maiores axiomas inquestionados da cultura ocidental contemporânea: a ideologia da diferença sexual. Essa ideologia, que ela chamou de “pensamento straight ”, está baseada na asseveração arbitrária a jamais comprovada existência de uma “diferença sexual” absoluta e irredutível que separaria os dois sexos que naturalmente existiam. Wittig afirmou que era em realidade a heterossexualização quotidianamente imposta às mulheres que construía sua “alteridade”, cuja suposta naturalidade selava sua sorte como classe apropriada.
É importante compreender que Wittig analisou uma ideologia e um sistema político; não falava de práticas sexuais individuais. Essa que chamou lésbicas (cuja existência constitui uma refutação empírica da suposta naturalidade de ser mulher), não são homossexuais de sexo feminino (as que geralmente continuam trabalhando de diversas formas para a classe dos homens), mais do que seres humanxs que se recusam a se tornarem ou a se voltarem mulheres, no sentido de Guillaumin. O que elas recusam não é o coito nem o corpo masculino, e nem sequer relações interpessoais com homens. O que recusam é se ligarem a homens por relações sociais estruturais de apropriação, sejam privadas (em matrimônio ou na família paterna) ou coletivas (em conventos ou bordeis).

Sexualidade e procriação: para muitas, um trabalho

No final da década de 1980 a antropóloga Italiana Paola Tabet (2004) começou a estudar um amplo repertório de relações sexuais (não-ocidentais e ocidentais, durante períodos coloniais e contemporâneos), desde as consideradas como normais e obrigatórias (diferentes formas de matrimônio) até as associadas com transgressão e desordem (sexualidade pré-marital e várias formas de prostituição). Trazendo as aparentes oposições entre estas práticas, do ponto de vista dominante dos homens, Tabet destacou a importância de compreender o contexto material em que a sexualidade é praticada. Na verdade, quando mulheres como classe de sexo:
(1) têm acesso limitado a recursos,
(2) têm acesso limitado ao conhecimento, e
(3) estão sob permanente ameaça de violência ou sofrem violência de fato.
Nestes casos, elas têm poucas possibilidades para sobreviver e alimentar as crianças que homens geralmente abandonam com elas, a não ser utilizar o que elas têm “entre as pernas”, como afirma Tabet. Para isso, as mulheres têm que reificar sua “sexualidade” e transformá-la em um “serviço” que pode ser negociado por bens materiais ou imateriais, ou dinheiro. Forçadas mais pela necessidade do que por luxúria, tentam achar o melhor posto possível no que Tabet chamou o continuum do intercâmbio econômico-sexual: numa extremidade, algumas mulheres na instituição da prostituição trocam alguns “serviços sexuais” estritamente delimitados em troca de uma quantidade fixa de dinheiro. Na outra extremidade, outras mulheres na instituição do matrimônio recebem uma manutenção discricionária em espécie em troca do amálgama conjugal — ou seja, um conjunto de serviços que se associam inextricavelmente a trabalho doméstico, procriativo, emocional e sexual. Muitas mulheres oscilam entre esses extremos, passando por um conjunto de outras possibilidades socialmente organizadas. Mas qualquer que seja o lugar que ocuparam as mulheres no contínuo, no contexto (bastante comum) descrito por Tabet, sua “sexualidade” é primeiro e sobretudo uma atividade de sobrevivência, que às vezes se torna um trabalho semi-formalizado.
Em outro trabalho decisivo sobre a suposta fertilidade natural de mulheres humanas, que é de fato muito baixa (1985), Tabet demonstrou que na grande maioria das sociedades passadas e presentes o “controle de natalidade” não significava a limitação da capacidade das mulheres de produzir bebês, mas sua maximização. Diferente de outras mamíferas, fêmeas humanas não mostram coincidência nenhuma entre o desejo sexual e o período fértil, que também não produz sinal visível. Por isso, muitas sociedades inventaram diferentes mecanismos sociais para maximizar a produção de bebês por parte das mulheres —especialmente, impondo o coito genital heterossexual como “A Sexualidade”— e criando uma lógica de exposição permanente a esse coito através da instituição matrimonial. Tabet também demonstrou que a procriação (cuja quantidade, ritmo e condições são em muitos casos impostos às mulheres), pode ser analisada como um verdadeiro trabalho, num sentido marxista.
Em resumo, as perspectivas materialistas permitem ver por um lado que todas as atividades apresentadas como naturais para mulheres podem ser analisadas como trabalho. Isso questiona profundamente a perspectiva marxista clássica. Primeiro, em vez de proletarixs que só tem sua ‘força de trabalho” para vender na esfera “produtiva”, a maioria da classe proletária é ao mesmo tempo forçada a trabalhar na esfera “reprodutiva”, realizando trabalho sexual, procriativo, doméstico e emocional. Em segundo lugar, a apropriação privada e coletiva que caracteriza as mulheres constringe severamente a sua possibilidade de vender sua força de trabalho, na medida em que esta não lhes pertence. Terceiro, os diferentes componentes do trabalho que estão forçadas a realizar (doméstico, emocional, sexual, procriativo… e ‘produtivo’) são governados por lógicas diferentes que são muitas vezes contraditórias e bastante difíceis de desamalgamar (Falquet 2014b).

A combinatória straight bind: produção e intercâmbio de pessoas e de corpo-como-máquina-de-(re)produção-de-força-de-trabalho

Agora, podemos analisar o trabalho procriativo de um ponto de vista diacrônico para decifrar a permanente produção de novas gerações e sua classificação social. Essa perspectiva transforma profundamente o debate marxista sobre “a reprodução da força de trabalho” — na qual crianças automaticamente pertencem a estruturas familiais que nunca são problematizadas.

No ponto de encontro entre aliança matrimonial e filiação: a maternidade, um trabalho intensamente vigiado

Através de uma análise fascinante do incesto, Mathieu evidenciou o caráter eminentemente social da maternidade (1991 1977). Tabet descontrói em seguida a fertilidade feminina “natural”, visto anteriormente (1985). Alguns pontos importantes da organização social do trabalho procriativo foram estudados, como o controle dos maridos ou do Estado sobre a fertilidade das mulheres. Mas, mais profundamente, precisamos compreender como as trabalhadoras da procriação são postas em contato com os provedores de matéria prima (espermatozoides, comida) e com xs beneficiarixs finais do produto (por exemplo, a família do marido, ou contratadorxs externxs como famílias de aluguel). E, mais importante: quais leis consuetudinárias ou formais governam a propriedade do produto final?
Para responder a essas perguntas, é preciso adotar uma perspectiva socio-antropológica sobre as instituições da aliança matrimonial e da filiação e nos deslocar fora do marco redutor das sociedades patrilineares e virilocais — onde as estruturas e a ideologia do pensamento straight surgiu, especialmente o paradigma levistraussiano do intercâmbio das mulheres. Isso foi o objetivo de Mathieu e Gestin ao editar em 2007 o primeiro livro publicado em francês juntando quatorze sociedades uxorilocais e matrilineares. Essas sociedades não constituem de maneira alguma um “matriarcado”, e são longe de ser idílicas para as mulheres. Mas nessas sociedades as “mulheres intercambiadoras” são as que organizam as alianças e as cerimônias matrimoniais, e são também as principais beneficiárias das atividades econômicas e políticas realizadas nestas ocasiões. Mathieu e Gestin propõem substituir a teoria do “intercâmbio de mulheres”, pelo exame das lógicas de circulação de todas as pessoas (mulheres e homens). A partir dali, podemos dar o último e decisivo passo à frente, integrando a análise da aliança matrimonial (circulação horizontal) com aquela da filiação (circulação vertical).

A combinatória Straight Bind

Uma vez que a heterossexualidade seja desnaturalizada, pode-se observar que a aliança matrimonial e a filiação não dizem respeito apenas a mulheres e homens, mas também a pessoas de diferentes classes e “raças”, cujas lógicas de aliança matrimonial e a filiação não são tão naturais quanto entre os sexos. Pelo contrário, são cuidadosamente organizadas por diversas instituições que produzem e fazem respeitar todo um conjunto de leis — contraditórias em si e em constante transformação. Proponho chamar de “combinatória straight bind” esse conjunto de instituições, leis e regras que conjuntamente organizam a aliança matrimonial e a filiação através de lógicas simultâneas de sexo, raça e classe. Como o pensamento straight mind, a combinatória straight bing cria continuamente grupos humanos considerados diferentes, cujas hierarquias e (in)compatibilidades são logo apresentadas como rigorosamente naturais (como pilares fundamentais da cultura). A combinatória straight bind é então o operador central das dinâmicas imbricadas das relações sociais estruturais de sexo, raça e classe.
Em vários aspectos, essa proposta converge com as perspectivas feministas decoloniais da Abya Yala, cuja afirmação central é que a colonização europeia racializou e sexualizou a força de trabalho desde os primeiros momentos do futuro capitalismo, antes mesmo da aparição das classes no sentido marxista (Lugones, 2008; Mendoza, 2014). A combinatória straight bind ajuda a aprofundar temáticas de especial interesse para feministas decoloniais da Abya Yala.
Primeiro, em relação à construção das nações mestiças, a combinatória straight bind permite analisarem nível de aliança matrimonial, ao invés do matrimônio formal (reservado para mulheres “brancas” e burguesas), a importância dos estupros em massa (Mendoza 2001) e de uniões impostas por séculos a mulheres Indígenas e Negras por parte de homens brancos ou mais claros; em nível de filiação, ao invés de um status de seres humanxs e cidadãos/legítimxs (para filhos machos, brancos ou mais claros), as complexas hierarquias da ilegitimidade baseadas em fenótipos racializados e sexualizados.
Segundo, a combinatória straight bind permite repensar as análises da colonialidade do gênero. Lugones (2008) afirmou que a empresa colonial impôs lógicas heterossexuais e binárias que eram alheias às culturas indígenas e afros. A feminista indígena boliviana Julieta Paredes (2010)insistiu melhor na ideia de que colonizadores se uniram com homens indígenas dominantes no que ela demoninou entronque patriarcal, enquanto a feminista indígena guatemalteca Lorena Cabnal (2015) fala de reconfiguração patriarcal. Em todos os casos, a combinatória straight bind ajuda a compreender essas imposições e suas lógicas imbricadas, e pode se unir ao trabalho da feminista lésbica Afro-Dominicana Ochy Curiel sobre a construção do Estado-nação colombiano contemporâneo (2014).
Finalmente, a combinatória straight bind se junta com os interesses do movimento lésbico-feminista da Abya Yala para com o papel do sistema político da heterossexualidade na criação das lógicas do “racismo moderno” (miscigenação forçada, branqueamento, ocidentalização), tanto com a relegação de populações racializadas a certos tipos de atividades e mobilidade, quanto com as lógicas militarizadas do extrativismo transnacional e da recolonização . De fato, tanto o passado colonial da Abya Yala como o seu presente podem ser analisados com proveito através do conceito de combinatória straight bind, que também tem muito a nos dizer tanto sobre o desenvolvimento do capitalismo desde 1492 quanto sobre o neoliberalismo contemporâneo —sendo que algumas das análises mais interessantes deste provém de lésbicas políticas, especialmente racializadas e proletarizadas (Espinosa Miñoso et al. 2014).
Mais geralmente, a combinatória straight permite examinar como certxs individuxs e grupos são produzidxs como “plenamente humanxs”, quando outrxs são reduzidxs a serem corpos-como-máquinas-de-(re)produção-de-força-de-trabalho — cujas capacidades de trabalho socialmente construídas vão muito mais além do que a economia política marxista clássica conhecia: alguns corpos também são capazes de produzir outras maquinas-de-re-produzir-força-de-trabalho. Isso abre uma história integrada do trabalho, incluindo o trabalho procriativo e a reprodução social em geral, mais além do marco estreito do “trabalho produtivo”tão caro aos marxistas. Segundo, a combinatória straight bind permite examinar a capacidade de mudar de status ou de mudar os status dxs demais através de lutas individuais ou coletivas, incluindo estratégias de alianças matrimoniais e de filiação, ligadas a leis e normas cambiantes. Por exemplo, certas mulheres reduzidas a escravidão (ou, hoje em dia, indocumentadas), adaptaram suas lógicas procriativas aos desenvolvimentos legais: desde abortar o produto de estupros, até tentar obter a própria libertação (legalização) por meio da procriação com homens livres (autóctones) que reconheçam a sua paternidade ou sua relação com a mulher. Levem a mudanças imediatas ou progressivas (para a prole) no status das pessoas, das linhagens, ou ainda para um grupo étnico, de sexo, ou de classe, essas estratégias individuais ou coletivas combinam lógicas de sexo, raça e classe.


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Tentei aqui mostrar como diferentes ramos dos movimentos e das análises (implícita ou explicitamente) lesbico-feministas (materialismo feminista francófono, teoria lésbica na linha de Wittig, perspectivas decoloniais da Abya Yala) oferecem uma compreensão ampla e rica tanto da escravidão e do modo de produção colonial passado, como do capitalismo neoliberal presente. Com a combinatória straight, também proponho um novo conceito que poderia ajudar a ponderar nessas três direções, assim como reforçar a ação e a reflexão lesbico-feminista.

A combinatória straight bind também pode ser utilizada ao menos em três campos importantes. Primeiro, para renovar os debates sobre interseccionalidade, propondo uma perspectiva mais estrutural, retomando a velha proposta do Coletivo Combahee River dos sistemas imbricados. Longe de ser apenas identidades individuais fluidas e lúdicas, sexo, raça e classe aparecem como as bases de uma história em longo prazo, na qual as estratégias individuais e as estratégias coletivas criam dinâmicas complexas. Segundo, a combinatória straight bind constitui uma ferramenta robusta para questionar profundamente e aprofundar a teoria marxista da produção e da reprodução, que segue sendo um horizonte decisivo para a compreensão da história global e a abolição de todas as classes (de sexo, de raça e social). Terceiro, a combinatória straight bind nos permite compreender e combater os perigos imediatos da globalização neoliberal, como por exemplo as violências imbricadas das guerras de recolonização — assim como já estão fazendo as mulheres, as feministas e as lésbicas de Abya Yala, que contribuem através de suas ações diretas e coletivas, tanto para a teoria como para o melhoramento da vida para todxs (buen vivir).

Revisão da tradução para a língua portuguesa por Meggie Fornazari

Referências

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