Achamos que o backlash não poderia ser mais intenso no que tange à onda do pensamento pós-moderno e queer como mecanismos de um sistema patriarcal neoliberalista, anti-lésbicas, racista, misógino… e triturador de qualquer sinal de revolução radical. Porém, ao que parece, as políticas desonestas das liberais que se clamam feministas – pessoas que eu, particularmente, não reconheço como feministas, pois esse feminismo cheio de mutações ideológicas para mim não representa nem um pouco o movimento de libertação das mulheres, pois corrobora com a opressão e o estado de submissão à lógica da supremacia masculina – tem realmente passado dos limites ao ponto de intoxicar e implodir práticas feministas através dos mecanismos da feminilidade.
Com certeza eu não estou apontando apenas um grupo específico de mulheres, porque TODAS as práticas que se clamam feministas, todos os coletivos com os quais eu já tive contato, já sofreram introjeção dessa lógica ridícula de competitividade feminina. Até mesmo radicais e lésbicas tem atuado desta maneira contra outras iguais. Estamos em um estado de emergência dentro do feminismo. É preciso quebrar o silêncio, sempre, sobre todo e qualquer tipo de mecanismo que force as lésbicas e as mulheres à domesticidade e à inexistência política.
Quero enfatizar, nesse texto, a questão da difamação, que é embebida de gaslighting e, inclusive, de crimes virtuais, através da invasão do campo privado das pessoas por meio de distorções que geram calúnias gravíssimas nas quais aquelas que são coniventes com esse tipo de prática acabam acreditando sem questionar. Textos no facebook, fotos por aí nas plataformas, denúncias no tumblr, twitter, enfim, em diversos sites populares que contém uma interface designada a práticas consumistas e superficiais. Isso é feito sob a máxima “o pessoal é político”, e o feminismo radical lésbico enfatiza também que o sexual é político.
Concordo, absolutamente, com isso, porém é preciso haver consciência de que existe o pessoal e o privado, e a vida privada das lésbicas deveria ser tratada com maior respeito. É necessário percebermos que, para quebrar a rivalidade, a hostilidade e violência entre mulheres construída via abuso sexual, estupro corretivo, pornografia, cultura da prostituição, lesbofobia, nós precisamos entender que num relacionamento afetivo entre mulheres não existem lugares tão fixos onde há agredida X agressora. Isso é real simplesmente pelo fato de que não existe uma hierarquia estrutural de poder entre mulheres tão rígida e evidente quanto há em vínculos heterossexuais.
O mais louco de tudo isso é que as denúncias desse teor que tem maior repercussão no meio feminista são sempre contra lésbicas visíveis, sapatonas butch. Desde criança, nós que somos butch (eu não manti minha lesbiandade a vida inteira, era uma criança lésbica e visível, porém as torturas sexuais e a lesbofobia pelas quais passei durante a infância e a minha adolescência enfraqueceram minha convicção e tornei-me uma lésbica interrompida. Só com 20 anos saí do armário definitivamente. Futuramente escreverei um texto sobre esse assunto), somos hostilizadas sempre de modo a sermos equiparadas a homens agressores. Sim, a lésbica visível sempre é vista, no imaginário das pessoas, sem esforço nenhum, muitas vezes sem nem abrir a boca, como uma figura agressiva. É aquele estereótipo da “mulher-macho”. E isso não diz respeito apenas à aparência, mas também a atitudes assertivas.
Mulheres, e especialmente lésbicas que ousam demonstrar eloquência na fala, espírito de liderança, inteligência, que tem conhecimento teórico profundo, que se tornam autodidatas (muitas vezes justamente pela solidão gerada pela violência empregada contra nós), e que são assertivas, dizem o que pensam sem fazer rodeios e não temem cometer erros, preferem assumir a possibilidade de falhar na prática feminista do que criar uma mitologia sobre si mesma de que se é perfeita e se deve agradar a todo o resto o tempo inteiro, são reconhecidas automaticamente pela maioria das pessoas como figuras ameaçadoras, que bancam as “sabe-tudo”, que “silenciam” e querem “comandar” outras mulheres, como manipuladoras, e o pior de tudo: como agressoras sexuais.
Sim. Como se já não houvesse criminalização suficiente da sexualidade lésbica no mundo em que vivemos, não? É incrível como o patriarcado consegue ter policiazinha trabalhando de graça pro sistema dentro do próprio feminismo radical e lésbico, por lésbicas que no discurso supostamente quebram com a feminilidade, postam fotos por aí afirmando sua visibilidade lésbica, porém nas atitudes são tão femme que quase não dá pra acreditar. O pensamento heterossexual infelizmente permeia muito o ativismo, e essa rivalidade, a vitimização e a manipulação através do uso oportunista dos conceitos teóricos radicais são as armas perfeitas que usam para agir de forma desonesta com outras lésbicas. É um desfavor total a prática do rumor e da difamação contra lésbicas. É claro que esse ‘shaming’ é cometido ainda mais violentamente dentro das práticas queer, pós-modernas, os ditos anarcos e os ditos comunas, os good vibes e por aí vai. Nenhum movimento social tem escapado disso, basicamente…. não que eu considere o queer e o good vibes movimentos sociais, já que pra essa gente a subjetividade governa tanto quanto O’Brien, o torturador da estória de George Orwell em 1984, também acredita.
E ainda há uma realidade mais curiosa ainda sobre esse fenômeno: já percebeu que, geralmente, as denúncias contra homens abusivos, agressores e abandônicos – que são aqueles que sustentam a pornografia e a prostituição, que são aqueles que abusam das próprias filhas, irmãs, primas, netas, namoradas, colegas, que são aqueles que causaram situações de coação que muitas de nós já passamos e temos passado, que minam a saúde física e psicológica das mulheres, que nos expõem a um risco altíssimo de contaminação por DST’s por conta da naturalização e banalização da violência do intercurso (penetração peniana), que nos causam risco de vida ou morte, dentre tantas outras coisas – não chegam a ter nem a metade da repercussão dessa palhaçada de escracho lesbofóbico? Pois é.
Eu não vi praticamente NENHUMA feminista desse tipo que estão envolvidas em “denúncia” (difamação, na realidade) contra lésbicas, colaborar em merda nenhuma quando eu escrevi a denúncia contra o anarcopunk que fodeu com a minha vida tanto psicológica quanto sexualmente no ano retrasado. Isso foi antes de eu sair do armário e foi um dos relacionamentos mais abusivos que eu já tive (todos os meus relacionamentos com homens foram permeados de estupro e abuso psicológico e emocional). Eu me assumi lésbica no meio desse relacionamento e cortei a intimidade e aquela afetividade de antes e, a partir daí, comecei a sofrer uma lesbofobia atrás da outra, uma ameaça atrás da outra. O cara era o mestre do gaslighting e eu estava sozinha, fui ameaçada por ele e um bando de punks retrógrados em São Paulo, fui negligenciada por aquela galera hipócrita do Ouvidor 63 e, mais uma vez, a ocupação havia vomitado uma lésbica pra rua, coisa que já aconteceu antes por lá.
Os punkaiada me perseguiram em manifestação, ao invés de atentarem-se ao risco da violência policial. O cara me difamou, criou várias calúnias sobre mim, como a de que eu estava com ciúmes dele e surtei, e pra outros amigos ele disse que eu o agredi também. E sabe qual o suporte que eu tive dessas feministas? Absolutamente nenhum. Minha denúncia, que eu tive um esforço emocional gigantesco e doloroso pra escrever, não teve repercussão NE-NHU-MA, e inclusive as pessoas aqui da minha região continuaram recebendo ele na roda como se nada tivesse acontecido. Eu até vi feministas e lésbicas confirmarem presença em eventos e oficinas do Ouvidor, soube de minas que até frequentaram aquela merda de lugar e cederam energia criativa a essa galera escrota, misógina e lesbofóbica.
Quando a dor é real e é nossa, das lésbicas visíveis, e quando a violência é concreta, quando há uma relação de poder nítida, as pessoas não reagem. O mesmo aconteceu em relação ao abuso sexual que sofri de meu pai. Eu o confrontei, enfrentei frente a frente sozinha para questionar o estupro que ele cometeu contra mim. Não vejo nenhuma dessas feministas compartilharem nunca, por exemplo, meu material sobre abuso sexual na infância e estupro corretivo contra meninas lésbicas, não vejo essa gente se preocupar com o que realmente importa. Sinceramente o que eu vejo é um festival de purpurina repleto de atitudes inerentes à feminilidade, esse conjunto de comportamentos pelo qual, sinceramente, tenho profunda aversão, pois, no fim, com a chantagem emocional e manipulação através de vitimismo, muitas dessas garotas conseguem realmente convencer todo o mundo que o nosso lugar, o de lésbicas butch, vai continuar sempre sendo o mesmo, e vão continuar repetindo a lógica da Inquisição e da Caça às Bruxas, e esse lugar é o estereótipo da Lésbica Agressora.
Enfim, acho que tudo isso é uma questão de profunda imaturidade. Acho que essa gente ainda não entendeu o que é revolução e o que é o pensamento radical. Tanto quanto galerinha partidária também não entendeu merda nenhuma do que Marx quis dizer. Pois é, é exatamente isso que eu estou dizendo: vocês são um bando de pelegas desonestas e infantis. Eu tô realmente enojada com esse Feminismo Beverly Hills que permeia o facebook e a internet, onde é muito fácil sentar a bunda na cadeira e falar qualquer merda, afinal o difícil mesmo é você ir até a mina pela qual você tem críticas e falar na cara dela o que você pensa, ser assertiva. Isso só indica que vocês continuam se colocando, afinal, no mesmo lugar que é a categoria mulher patriarcal, e fica se escondendo atrás do rumor, do não-dito e do sadismo passivo-agressivo. É, isso é exatamente o que eu penso, me odeiem se quiserem, eu já não sou muito querida por aí mesmo.
É imaturidade porque essas garotas não compreendem o impacto violento que a difamação tem sobre a vida emocional, psicológica, afetiva, política e até mesmo econômica de uma lésbica. Nós já somos fodidas nesse mundo, já temos dificuldade com todos esses aspectos, já sofremos um isolamento enorme e uma solidão política enorme, já temos dificuldade de nos encontrarmos com outras iguais a nós, de ter relacionamentos, e ainda por cima temos que ser isoladas propositadamente porque algumas minas que gostam de seguir essa lógica da patricinha QUISERAM. Se você incomoda esse tipo de gente, mostra-se assertiva, você passa por um momento meio como se você fosse do elenco de Meninas Malvadas e enfrentasse assertivamente a Regina George. É, é bem por aí. Eu sofri difamação aqui na minha região, não por lésbicas, mas por pessoas em geral que são liberais pra caralho travestidas de revolução, entende? Mas por conta disso eu sei o que é as pessoas em geral acharem que você é louca e agressiva.
Desde criança, quando eu era bem visível na infância, eu sei como é uma pessoa te odiar sem nem ao menos te conhecer, simplesmente porque ouviu falar alguma coisa. Lembro-me de quando eu estava caminhando na rua uma vez e ouvi a voz de uma garota dizendo: “Nossa, como eu O-D-E-I-O essa menina!”, quando eu olhei pra trás, percebi que nunca havia visto aquela garota na minha vida. *
Moro no interior, em cidade pequena e esse tipo de situação se repetiu muito durante a minha história. *E o que presencio hoje dentro do feminismo? Lésbicas isoladas e sofrendo um processo intenso de autoculpabilização, de autopunição, confusão mental e psicológica, solidão e até mesmo vontade de desaparecer da face da Terra. Sei lá meu, vocês nunca viram aqueles filmes norte-americanos da garota que é difamada virtualmente e acaba se suicidando depois? Essa atitude de vocês mostra que vocês agem feito patricinhas idiotas, na moral. Não tem o mínimo cuidado nem o mínimo compromisso com a lesbiandade e com a radicalidade. Parece até que vocês não são politizadas e não entendem o fenômeno generalizado do adoecimento e enlouquecimento de lésbicas. Acordem pra vida, vocês são feministas ou o quê? Assumam duma vez que só querem ibope e não fazer política.
Afinal, eu tô bem ligada que era esse tipo de garota que me zoava e me batia na infância por ser sapatão na escola. Bem ligada mesmo, e de saco cheio também só de ver essa palhaçada.
Parem.
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