As guardiãs da minha irmã

Tradução de uma reportagem sobre comunidade lésbica dos EUA Reportagem originalmente publicada no site do The New York Times.[http://www.nytimes.com/2009/02/01/fashion/01womyn.html?_r=1] Por Sarah Kershaw, 30 de janeiro de 2009 Tradução de Orkki e Jessica

Elas chamam de paraíso lésbico a comunidade das pioneiras a se mudarem para St. Augustine, Florida, nos anos 1970, para viverem juntas em chalés no litoral. Tendo se conhecido durante o ápice do movimento pelos direitos gay e pela libertação das mulheres, construíram uma comunidade matriarcal, onde homens não são permitidos – onde até mesmo a presença de uma criança do sexo masculino trazida por visitantes foi motivo para debate.

Emily Greene foi uma dessas pioneiras, e, aos 62 anos, ela ainda escolhe viver num mundo lésbico separatista. Ela e 19 outras mulheres construíram casas em 300 acres rurais no noroeste de Alabama, para onde as fundadores da comunidade de Florida, a Pagoda2, se transferiram em 1997.

Por trás de um portão trancado com um código de segurança trocado frequentemente, essas mulheres levam vidas tranquilas na comunidade que chamam de Alapine, completamente despercebidas pelos vizinhos do Bible Belt3. São uma tribo perdida dos primeiros anos de 1970, período efervescente das comunidades e do feminismo radical. “Eu cheguei aqui porque queria viver na natureza e queria ter vizinhas lésbicas”, diz a Sra. Greene, uma enfermeira aposentada. Ela espera que as mulheres, com idades entre 50 e 75 anos, consigam juntar dinheiro o suficiente para sustentar assistência a domicílio e cuidados médicos.

Ela passeia todos os dias na floresta com seus dois cachorros: Lily, uma border collie misturada, e Rita Mae, uma mistura de Jack Russel terrier e beagle, apelidada por Rita Mae Brown, uma feminista ativista e autora do clássico lésbico Rubyfruit Jungle. A Sra. Greene apara ramos de carvalhos, nogueiras e sassafrás e visita o túmulo de um cervo que enterrou na floresta após ter sido atropelado por um carro. Ela o chama de Miracle Milagre. “Eu converso com Miracle todos os dias”, diz a Sra. Green, “essa é uma das minhas alegrias de viver aqui”.

Hoje em dia, ela e outras membras se preocupam com o futuro de Alapine, que é uma entre aproximadamente 100 comunidades lésbicas de que se tem conhecimento na América do Norte, conhecidas como womyn’s land (sua grafia preferida), as quais se guiam por antigas filosofias.

As comunidades, em sua maioria em áreas de Oregon a Florida, têm no mínimo duas membras: Alapine é uma das maiores. Muitas foram gradativamente perdendo residentes ao longo das décadas conforme algumas se mudavam ou faleciam. À medida que o impulso de se separar da sociedade heterossexual perde sua visibilidade para lésbicas mais novas, as womyn’s lands encaram alguns dos mesmos desafios que os conventos católicos enfrentam na tentativa de atrair mulheres para viverem enclausuradas.4

“A geração mais nova não precisa passar pelo que nós passamos’’, diz a Sra. Greene. Ela e outra mulher de Alapine descreveram levar uma vida dupla quando eram mais jovens, desempenhando o papel de mulheres heterossexuais em empregos e até em casamentos. “Eu me assumi no meio dos anos 60, e nós ainda nem tínhamos a palavra lésbica”, disse a Sra. Greene.

“Nós teremos que trabalhar em como encaminhamos isso’’, ela acrescenta. “Daqui 20 a 25 anos, nós poderemos ser extintas.”

Por trás do portão de Alapine, cerca de cinco milhas da cidade mais próxima nas Montanhas do sul perto de Georgia, as mulheres vivem em casas simples ou trailers móveis pelas estradas que elas nomearam deusas, como Diana Drive. Elas se encontram para jantares comunitários, filmes, jogos noturnos e “círculos da lua cheia comunitária”, onde cantam, lêem poemas e partilham pensamentos sobre tópicos como “Mercúrio retrógado – como isso afeta nossa comunicação?”.

As mulheres aceitaram ser entrevistadas com a condição de que a localidade exata de seus lares não seria revelada, pois elas temem o assédio de pessoas de fora. Muitas na rede online da womyn’s lands* recusaram a publicidade, vivendo uma existência protegida por décadas, divulgando casas disponíveis e propriedades através do boca a boca ou em pequenos boletins e revistas lésbicas.

Mas as mulheres em Alapine estão dispostas a serem entrevistadas devido à preocupação que sua comunidade para mulheres desapareça se não buscarem por outras jovens mulheres.

Winnie Adams, 66 anos, descreve a si mesma como uma “lésbica separatista feminista radical”. Ela vendeu sua casa na Florida em 1999 para mudar para Alapine. Quando mais jovem, foi casada e teve duas filhas (nenhuma delas pode morar com ela agora porque não são lésbicas). Ela trabalhou como gerenciadora de sistemas de informação para agências governamentais, diz, mas quando se assumiu como lésbica foi demitida por estresse e discriminação.

A parceira de Sra. Adams, Barbara Moore, 63 anos, esteve no exército em 1960, quando o que ela descreveu como uma “caça às bruxas” por homens gays e lésbicas entre os militares a tirou de lá.
Ambas, que, como a maioria das outras residentes de Alapine, foram casadas e tiveram filhos, dizem ter se assustado profundamente com suas experiências.

“Eu fiz tudo que devia fazer,” diz a sra. Adams. “Eu fiz faculdade, arranjei um emprego, um marido e tive dois filhos. Mas ainda não me sentia bem. Eu não sabia que era lésbica porque não sabia o que isso era. Eu estava em nos anos 50 e 60, ninguém falava sobre isso. Demorou muito até eu me entender lésbica e me assumir.”

Para a sra. Adams, todas as suas escolhas, hoje, – qual restaurante frequentar, qual serviço contratar, qual música ouvir – se orientam pela preferência por estar com mulheres.

“Para mim, esse é o mundo real”, ela diz. “E é um mundo muito pacífico. Eu não escuto nada além das folhas caindo. Levanto de manhã, vou até minha varanda e danço enquanto penso: ‘Mais um glorioso dia nas montanhas’. Homens são violentos. No minuto em que um homem chega, toda a dinâmica muda, então eu escolho não estar em meio a essas dinâmicas.”

Além das 20 mulheres vivendo em Alapine, algumas solteiras e outras em relacionamentos, mais 15 possuem propriedades e planejam se mudar para lá ou formar um segundo lar. Terrenos de dois acres custam 25.000 dolares, e sete ainda estão a venda. Algumas residentes cultivam frutas e vegetais, e um casal, Ellen Taylor, 75 anos, e sua companheira Mary, de 63, que não quis usar seu sobrenome, cria 4 galinhas que chamam de Golden Girls meninas de ouro.

As residentes procuram não chamar a atenção dos vizinhos, que incluem religiosos do protestantismo, e dizem não ter passado por incidentes hostis, diferente de outras comunidades de mulheres.

“Nós apenas não anunciamos nosso lesbianismo”, diz Morgana MacVicar, 61 anos, uma das fundadoras de Alapine, que vive com sua companheira de 20 anos. “As pessoas sabem quem somos. Não queremos alguém fazendo uma afirmação política aqui.”

As mulheres dizem que algumas vezes escutam referências na cidade sobre “aquelas mulheres artistas” ou “aquelas mulheres artesãs”. Em um recente jantar em um restaurante local, 15 membras do Alapine, falando em voz baixa, atraíram olhares curiosos.

Um obstáculo para atrair mulheres mais jovens é o emprego. Muitas das comunidades lésbicas estão localizadas longe das cidades e fontes de trabalho. Apenas uma residente do Alapine possui um emprego em tempo integral, como assistente social na cidade. As outras vivem de economias, da renda de consultoria ou trabalhos temporários.

Há um debate estridente dentro e entre a womyn’s lands sobre quem tem permissão para participar. Muitas residentes aderem estritamente o separatismo lésbico, o que significa que homens são permitidos apenas como visitantes temporários e que mulheres heterossexuais, bissexuais e transexuais também são excluídas.

Recentemente, quando uma das residentes de Alapine recebeu a visita de um neto de 6 meses de idade, foi enviado um email para todas as residentes, talvez só em parte brincadeira: “Há um homem na propriedade”.

Jane R. Dickie, professora de estudos das mulheres e psicologia na Hope College, em Michigan, que estudou uma das womyn’s lands, no Missouri, disse ter ficado impressionada pelas diferenças entre as residentes – feministas há mais tempo – e suas estudantes.

“Havia uma verdadeira percepção da necessidade de se identificar como uma mulher e ter espaço para mulheres,”, disse a Dra. Dicke, 62, sobre o movimento de mulheres dos anos 60 e 70. “Nós realmente sentíamos a necessidade de estar à parte, de fortalecer nossa própria resistência e empoderamento. Mas feministas jovens de hoje recusam a ideia de políticas identitárias, de estar nessa categoria”. Entre as poucas mulheres mais jovens no movimento, existe a preocupação de que lésbicas da velha guarda são muito rígidas num tempo em que precisam ser mais flexíveis, pelo menos por autopreservação.

“Eu vejo o quadro completo e sei que a ideia das womyn’s lands pode ser utópica se você não tiver quantias ilimitadas de dinheiro disponíveis. Vi uma após outra afundarem”, diz Andrea Gibbs-Henson, 42, que vive na Camp Sister Spirit, uma womyn’s land in Ovett, Mississippi, onde se tornou diretora executiva quando sua mãe, uma das fundadores, morreu no ano passado. “O fato é que o mundo é muito diversificado. Toda a ideia de uma utopia feminista é apenas um ideal. Nós não sobreviveríamos se tudo que fizéssemos fosse entre lésbicas separatistas.”

Camp Sister Spirit tem políticas mais flexíveis sobre quem é permitido entrar na propriedade. Até mesmo em Alapine algumas mulheres não acreditam no puro separatismo.

Mas Rand Hall, 63, uma das mais novas residentes de Alapine, a quem a enteada de 50 anos acabou de se juntar na propriedade, diz que o separatismo ainda faz sentido para ela.

“Do lado de fora ainda é o mundo dos homens,” diz Sra. Hall, aposentada como editora de um jornal de gays e lésbicas em Tampa e St. Petersburg, Florida, que se mudou para Alapine em 2006. “E mulheres não estão seguras, ponto final. É simples assim.”

“Eu não tenho cortinas em casa,” ela diz. “Eu não tenho que me preocupar com alguém me espiando enquanto troco de roupas. E também há um senso de comunidade, de apoio mútuo.”

Sra. Hall complementa: “Não há tanta competitividade. Quando estão juntas, as mulheres tendem a ser mais cooperativas. Elas não esperam que uma tenha sucesso e as outras falhem. Na vida convencional é assim. Alguém tem que estar no topo enquanto todo o resto fica embaixo.”

Em Alapine, a corporação de desenvolvimento que pertence a três das mulheres que deram início à antiga comunidade de mulheres na Florida vende terrenos para proprietárias individuais. Se alguma delas decide revender, a corporação tem o direito de comprar a propriedade. As mulheres de Alapine decidiram que querem permanecer sendo uma comunidade só de lésbicas. Elas reconhecem que isso pode fazê-las vulneráveis a um desacordo legal com uma mulher não-lésbica, mas dizem que até hoje isso não aconteceu.

“Nós não queremos passar mais 20 anos de nossas vidas brigando sobre outro grande problema,” diz a Sra. MacVicar. “Já foi duro o bastante lutar pelos últimos 30 anos. Agora somos uma família que quer viver aqui e morrer aqui.”

1 N.T.: Tipo de festa americana em que todas as convidadas preparam um prato para dividir com as outras.

2 N.T.: Uma das mais antigas comunidades lésbicas americanas.

3 N.T.: Região dos Estados Unidos conhecida pela grande população de evangélicos.

4 N.T. Apesar de guardar óbvias diferenças, uma vez que se trata de contextos distintos, a comparação parece interessante para se pensar o distanciamento de mulheres da ideia de viver à parte dos homens. É preciso, no entanto, investigar melhor os fatores que estão por trás desse distanciamento nos dois contextos, a começar pelo fato de que, apesar de objetivamente afastadas das obrigações heterossexuais, mulheres no convento ainda vivem filosofias profundamente masculinistas.

Link para acessar a tradução completa com fotografias (entre outras traduções): https://sapphismo.noblogs.org/post/2016/05/18/traducao-de-uma-reportagem-sobre-comunidade-lesbica-dos-eua/