Esses dias, trocando impressões sobre o que vem acontecendo no movimento feminista, nos demos conta de que os últimos encontros dos quais participamos ou tivemos notícias foram trespassados pela mesma lógica patriarcal. Esse escrito nasce dessa incomodidade política e se propõe a pensar, parafraseando a Marilyn Frye, como chegamos aonde chegamos.
Historicamente, o feminismo radical tomou para si a proposta de chamar as coisas pelo seu nome: quando o patriarcado nos dizia que havia amor, nós enxergávamos violência; quando postulava a “liberdade de escolha”, nós assegurávamos que esse sistema somente nos impunha suas regras; o que nomeava como sexo, nós qualificávamos como violação. Atualmente, e em grande medida graças à capacidade do patriarcado de negar-se a si mesmo, nos parece que essa proposta histórica foi abandonada. Ainda que muitas sigam assumindo posturas medianamente críticas, sustemos que não houve uma incorporação profunda da radicalidade no modo de fazer política das mulheres. Se levarmos em consideração quatro encontros feministas que aconteceram nos últimos seis meses (México, Guatemala, Colômbia e Brasil*), nosso ponto talvez se torne mais evidente:
Em primeiro lugar, ainda que as estruturas deles não sejam de todo idênticas, todos se propuseram a segmentar o pensamento das mulheres em temáticas apresentadas pelas organizadoras como desconectadas entre si. No FESTIVAL feminista radical organizado pelas Manas Chicas (Brasil), por exemplo, essa segmentação foi expressa de entrada, uma vez que a programação propunha a divisão do debate por meio do que, para esse grupo, deveriam ser os eixos centrais da radicalidade feminista: o abolicionismo da prostituição, a visão das mulheres como classe sexual e a crítica ao liberalismo sexual. Em vez de gerarem um espaço que integrasse todos esses temas por meio da experiência comum das mulheres, ou de se proporem a conduzir discussões sobre a prática feminista radical e a intervenção do liberalismo queer em todos os nossos espaços, o encontro imitou o modelo acadêmico de dissociação de nossas vidas em “áreas de conhecimento”. Nos três demais encontros (organizados pelo GLEFAS ou por mulheres próximas a ele), por outro lado, houve uma repetição da mesma lógica, dessa vez separando as mulheres e negando a universalidade do patriarcado por meio dos debates focados no classismo e racismo, no que Margarita Pisano chama de cortes/conflitos do patriarcado.
Além disso, esses encontros também compartilham o apelo à festividade: quando a proposta não se encerra em si mesma, as festas são utilizadas como uma forma de “apaziguar os ânimos”/”descontrair o clima pesado da discussão política” – afinal de contas, somos todas irmãs e, embora a postura política de outras mulheres possa nos parecer horrorosa, somos proibidas de marcar nossas diferenças. Nesse sentido, mais uma vez nos dizem que não somos seres sérios e pensantes e que, portanto, não podemos divergir por motivações políticas; em lugar de tomarmos uma postura incisiva e expressada, nossas críticas devem ser abandonadas em nome da sororidade feminista. E não podemos, sob hipótese alguma, nos juntarmos “apenas” para fazer política.
O apelo à descontração das tensões que o clima político poderia gerar também aparece no caráter misticista dos encontros do México, da Guatemala e da Colômbia (aqui, vale a pena apontar as diferenças entre as Manas Chicas e o GLEFAS: as brasileiras não sustentam nenhum tipo de prática esotérica, postura que compartilhamos). Todos eles foram iniciados e finalizados com “rituais de sanação”, com o intuito de gerar um ambiente harmônico baseado no constructo patriarcal da feminilidade, na qual o pensamento e o dialogo entre mulheres é substituído pela intuição bruxística, pelo silencio e pelas falsas suposições sobre os sentimentos e pensamentos das outras, uma vez que estes nunca estão diretamente expressados. Isso simboliza o esvaziamento das nossas rebeldias e a negação de nossas capacidades pensantes como humanas, além de desresponsabilizar-nos sobre nossas ações.
Na realidade, acreditamos que esses encontros são apenas um exemplo de um movimento mais amplo de despolitização de espaços “feministas radicais”. Em um contexto no qual as mais otimistas saem em defesa de uma suposta radicalização do movimento, nos parece importante chamar atenção para o fato de que de nada nos importa que mais mulheres se chamem a si mesmas feministas radicais se, na realidade, nossos espaços continuam reproduzindo mais do mesmo. Não nos interessamos pelo otimismo irreflexivo das que sustentam que vivemos em um mundo “cada vez menos patriarcal”, e tampouco nos contamos o conto de que estamos conseguindo desenvolver práticas políticas próprias: em vez disso, nos parece mais útil denunciar a falsidade e superficialidade do que vem sendo festejado e colocado em altares pelo feminismo de agora.
Nesse panorama, não é de surpreender que as mulheres críticas, à sua própria atuação e ao movimento feminista em geral, se encontrem politicamente sós: a falta de referenciais rebeldes e a descaracterização da radicalidade (o vazio tão próprio da história das mulheres) não constroem um solo firme pelo qual possamos caminhar. Ainda que reconheçamos a potencialidade das que tomam para si a tarefa de não compactuar com espaços contrários à autonomia das mulheres, o isolamento faz com que as ideias radicais não possam ser conjuntamente aprofundadas.
Hoje em dia, ainda que sejamos parte de espaços claramente fracassados (encontros feministas, academia), sabemos que nosso caminhar não vai por aí. Acreditamos nas grandes mudanças das mulheres, mas não que essas possam ser levadas a cabo por meio das táticas massivas dos partidos políticos: a história nos mostra que, na maioria das vezes, a massificação do movimento se deu às custas da eliminação de seus elementos mais críticos. Nesse cenário, recuperamos aquilo que entendemos como o grande legado do pensamento feminista radical: a proposição de grandes mudanças por meio de pequenos grupos de mulheres que estejamos dispostas a repensar todos os aspectos de nossas vidas, sem que, em nome da “sororidade”, façamos caso omisso ao maltrato ou ao buenismo.
Acreditamos, antes de tudo, na comunicação e no intercâmbio válido de ideias entre mulheres.
- Ainda que tenhamos nossas críticas à programação proposta pelas Manas Chicas, as reconhecemos como mulheres potentes e companheiras em diversos aspectos, assim como entendemos que é impossível coloca-las no mesmo saco que o GLEFAS, que nega o patriarcado como sistema universal e discorda de noções básicas do feminismo radical.
Escrito por Tamy e Mariana