Ninguém nasce mulher (1970)
Monique Wittig
O enfoque feminista/materialista da opressão das mulheres acaba com a idéia de que as mulheres são um “grupo natural”: “um grupo racial de um tipo especial, um grupo concebido como natural, percebido como um grupo de homens materialmente específicos em seus corpos”.
O que a análise consegue ao nível das idéias, a prática torna atual ao nível dos fatos: por sua própria existência, a sociedade lésbica destrói o fato artificial (social) que classifica as mulheres como “um grupo natural”. Uma sociedade lésbica revela que a divisão com relação aos homens, dos quais as mulheres tem sido objeto, é política e mostra que temos sido ideologicamente reconstituídas como um “grupo natural”. No caso das mulheres, a ideologia vai longe já que nossos corpos, assim como nossas mentes, são o produto desta manipulação. Em nossas mentes e em nossos corpos, somos levadas a corresponder, característica a característica, a idéia da natureza que foi estabelecida para nós; tão pervertida que nosso corpo deformado é o que eles chamam “natural”, o que supostamente existia antes da opressão; tão distorcido que no final das contas a opressão parece ser uma conseqüência dessa “natureza”, dentro de nós mesmas (uma natureza que é somente uma idéia). O que uma análise materialista faz com base no raciocínio, uma sociedade lésbica cumpre praticamente: não apenas não existe um grupo natural chamado mulher (nós lésbicas somos a prova disso), mas, como individuas, também questionamos “mulher” que, para nós—como para Simone de Beauvoir— é apenas um mito. Ela afirmou: “Não se nasce, mas se faz mulher. Não tem nenhum destino biológico, psicológico ou econômico que determine o papel que as mulheres representam na sociedade: é a civilização como um todo a que produz esta criatura intermediária entre macho e eunuco, que é descrita como feminina”.
Contudo, a maioria das feministas e lésbicas-feministas na América, e em outras partes, ainda consideram que a base da opressão das mulheres é biológica e histórica. Algumas delas pretendem encontrar suas raízes em Simone de Beauvoir. A crença no matriarcado e numa “pré-história” quando as mulheres criaram a civilização (a causa de uma predisposição biológica), enquanto os homens toscos e brutais caçavam, é simétrica à interpretação biológica da história elaborada, até hoje, pela classe dos homens. Ainda é o mesmo método de buscar nos homens e nas mulheres uma explicação biológica para sua divisão, excluindo os fatos sociais. Para mim, isso não poderia nunca constituir uma análise lésbica da opressão das mulheres porque se supõe que a base de nossa sociedade ou de seu início, está na heterossexualidade. O matriarcado não é menos heterossexual que o patriarcado: muda apenas o sexo do opressor. Ademais, não somente esta concepção está prisioneira das categorias do sexo (homem/mulher), senão que se aferra à idéia de que a capacidade de dar a luz (ou seja, a biologia) é o que define a uma mulher. Ainda que os fatos práticos e os modos de vida contradigam essa teoria na sociedade lésbica, há lésbicas que dizem que “as mulheres e os homens são espécies distintas ou raças: os homens são biologicamente inferiores às mulheres; a violência dos homens é uma inevitabilidade biológica”.
Ao fazer isso, ao admitir que há uma divisão “natural” entre mulheres e homens, naturalizamos a história, assumimos que “homens” e “mulheres” sempre existiram e sempre existirão. Não apenas naturalizamos a história, mas também, em conseqüência, naturalizamos o fenômeno que expressa nossa opressão, tornando a mudança impossível. Por exemplo, não se considera a gravidez como uma produção forçada, mas como um processo “natural”, “biológico”, esquecendo que em nossas sociedades a natalidade é planejada (demografia), esquecendo que nós mesmas somos programadas para produzir progênie, enquanto que esta é a única atividade social, “com exceção da guerra”, que implica tanto perigo de morte. Assim, enquanto sejamos “incapazes de abandonar, por vontade ou impulso, um compromisso de toda a vida e de séculos, de produzir crianças como o ato criativo feminino”, ganhar o controle sobre essa produção significará muito mais que o simples controle dos meios materiais dela: as mulheres terão que abstrair-se da definição “mulher” que lhes é imposta.
Uma visão materialista mostra que o que nós consideramos a causa e a origem da opressão é somente um mito imposto pelo opressor: o “mito da mulher” e suas manifestações e os efeitos materiais na consciência apropriada e o apropriado corpo das mulheres; ainda assim, esse mito não antecede à opressão. Colette Guillaumin demonstrou que antes da realidade sócio-econômica da escravidão negra, o conceito de raça não existia, ou pelo menos, não tinha seu significado moderno, uma vez que estava aplicado à linhagem das famílias. Entretanto, hoje, a raça, tal como o sexo, é entendida como um “fato imediato”, “sensível”, “características físicas” que pertencem a uma ordem natural. Mas, o que nós acreditamos que é uma percepção direta e física, não é mais do que uma construção sofisticada e mítica, uma “formação imaginária” que reinterpreta traços físicos (em si mesmos neutros como quaisquer outros, por marcados pelo sistema social) por meio da rede de relações nas quais elas são vistas. (Elas são vistas como negras, por isso são; elas são olhadas como mulheres, por isso são mulheres. Mas, antes que sejam vistas dessa maneira, elas tiveram que ser feitas assim). As lésbicas devem recordar e admitir sempre como ser “mulher” era tão “anti-natural”, totalmente opressivo e destrutivo para nós nos velhos tempos, antes do movimento de libertação das mulheres.
Era uma construção política e aquelas que resistiam eram acusadas de não ser mulheres “verdadeiras”. Mas então ficávamos orgulhosas disso, porque na acusação estava já algo como uma sombra de triunfo: o consentimento, pelo opressor, de que “mulheres” não era um conceito simples (para ser uma, era necessário ser uma “verdadeira”). Ao mesmo tempo, éramos acusadas de querer ser homens. Hoje, esta dupla acusação foi retomada com entusiasmo no contexto do movimento de libertação das mulheres, por algumas feministas e também, por desgraça, por algumas lésbicas cujo objetivo político parece tornar-se cada vez mais “femininas”. Porém recusar ser uma mulher, sem dúvida, não significa ter que ser um homem. Ademais, se tomamos como exemplo o perfeito “butch” (hiper masculino) —o exemplo clássico que provoca mais horror—a quem Proust chamou uma mulher/homem, em que difere sua alienação de alguém que quer tornar-se mulher? São gêmeos siameses. Pelo menos, para uma mulher, querer ser um homem significa que escapou a sua programação inicial. Mas, ainda se ela, com todas suas forças, se esforça por consegui-lo, não pode ser um homem, porque isso lhe exigiria ter, não apenas uma aparência externa de homem, mas também uma consciência de homem, a consciência de alguém que dispõe, por direito, de dois—se não for mais—escravos “naturais” durante seu tempo de vida. Isso é impossível, e uma característica da opressão das lésbicas consiste, precisamente, em colocar à mulheres por fora de nosso alcance, já que as mulheres pertencem aos homens.
Assim, uma lésbica tem que ser qualquer outra coisa, uma não-mulher, um não-homem, um produto da sociedade e não da natureza, porque não existe natureza na sociedade.
O recurso em converter-se (ou manter-se) heterossexual sempre significou rechaçar a conversão em um homem ou uma mulher, conscientemente ou não. Para uma lésbica isso vai mais longe que o recurso do papel “mulher”, é o recurso do poder econômico, ideológico e político de um homem. Isto, nós lésbicas, e também não-lésbicas, já sabíamos antes. Isto, nós lésbicas e também não-lésbicas, já sabíamos desde o inicio dos movimentos feministas e lésbicos. Contudo, como ressalta Andrea Dworkin, muitas lésbicas recentemente “tentaram transformar a própria ideologia que nos escravizou em uma celebração dinâmica, religiosa, psicologicamente coercitiva do potencial biológico feminino”. Mesmo assim, algumas avenidas dos movimentos feminista e lésbico conduzem de novo ao mito da mulher criada pelo homem, especialmente para nós, e com ele nos afundamos outra vez em um grupo natural. Depois que nos posicionamos a favor de uma sociedade sem sexos, agora nos encontramos presas no familiar beco sem saída de “ser mulher é maravilhoso”. Simone de Beauvoir sublinhou particularmente a falsa consciência que consiste em selecionar entre as características do mito (que as mulheres são diferentes dos homens) aquelas que se parecem bem usando-as como definição para mulher. O que o conceito “mulher é maravilhoso” cumpre é instituir, para definir mulher, as melhores características (melhores de acordo com quem?) que a opressão nos garantiu, sem questionar radicalmente as categorias “homem”e “mulher”, que são categorias políticas e não fatos naturais. Isto nos coloca na posição de lutar dentro da classe “mulheres”, não fazem as outras classes, pela desaparição de nossa classe, mas para defender as “mulheres” e seu fortalecimento. Nos conduz a desenvolver com complacência “novas” teorias sobre nossa especificidades: assim, chamamos a nossa passividade “não-violência”, quando nossa luta mais importante e emergente é combater nossa passividade (nosso medo, justificado). A ambigüidade da palavra “feminista” resume toda a situação. Que significa “feminista”? Feminismo é formado pelas palavras “fêmea”, mulher, e significa: alguém que luta pelas mulheres. Para muitas de nós, significa uma luta pelas mulheres e por sua defesa—pelo mito, portanto, e seu fortalecimento. Mas porque foi escolhida a palavra ‘feminista’ se é tão ambígua? Escolhemos chamar-nos feministas há dez anos, não para apoiar ou fortalecer o mito do que é ser mulher, não para nos identificarmos com a definição do nosso opressor, mas para afirmar que nosso movimento contava com uma história e para destacar esse laço político com o velho movimento feminista.
Assim, é este movimento que podemos colocar em questão pelo significado que deu ao feminismo. Ocorre que o feminismo do século passado não é capaz de solucionar suas contradições nos temas da natureza/cultura, mulher/sociedade. As mulheres começaram a lutar por si mesmas como um grupo e consideravam acertadamente que compartilhavam traços comuns como resultado da opressão. Mas, para elas, estes traços eram mais naturais e biológicos que sociais. Elas foram tão longe como adotar a teoria darwinista da evolução. No entanto, não acreditavam, como Darwin, “que as mulheres eram menos desenvolvidas que os homens, mas acreditava, sim, que a natureza tanto do macho como da fêmea haviam divergido no curso do processo evolutivo e que a sociedade em geral refletia esta polarização”. “O fracasso das primeiras feministas foi que somente atacaram a idéia Darwinista da inferioridade da mulher, mas aceitaram os fundamentos dessa idéia-ou seja, a visão da mulher como “única”. E, finalmente, foram as mulheres estudantes —e não as feministas—que acabaram com esta teoria. Mas, as primeiras feministas fracassaram ao não olhar para a história como um processo dinâmico que se desenvolveu com base em conflitos de interesses. Mais, elas ainda acreditavam, como os homens, que a causa (origem) de sua opressão estava dentro de si próprias. E, por isso, depois de alguns triunfos inacreditáveis, as feministas se encontraram frente a um impasse, sem aparentes razões para lutar. Elas sustentavam o princípio ideológico da “equidade na diferença”, uma idéia que hoje está renascendo. Elas caíram na trama que hoje nos ameaça outra vez: o mito de mulher.
Assim, é nossa tarefa histórica, e somente nossa, definir em termos materialistas o que é opressão, para tornar evidente que as mulheres são uma classe, o que significa que as categorias “homem” e “mulher” são categorias políticas e econômicas e não eternas. Nossa luta tenta fazer desaparecer homens como classe, não como um genocídio, mas com a luta política. Quando a classe “homens” desaparece, “mulheres” como classe também desaparecerá, porque não há escravos sem senhores. Nossa primeira tarefa, ao que nos parece, é sempre desassociar por completo “mulheres” (a classe dentro da qual lutamos) e “mulher”, o mito. Porque “mulher” não existe para nós: é somente uma formação imaginária, enquanto mulheres é produto de uma relação social. Sentimos fortemente isso quando, em todas as partes, rejeitamos ser chamadas “movimento de liberação da mulher”. Mais ainda, temos que destruir o mito dentro e fora de nós. Mulher não é cada uma de nós, mas a formação política e ideológica que nega “mulheres” (o produto de uma relação de exploração). “Mulher” existe para confundir-nos, para ocultar a realidade “mulheres”. Para que sejamos conscientes de sermos uma classe, e para nos convertermos em uma classe, temos primeiramente que matar o mito da “mulher”, incluindo seus traços mais sedutores (penso em Virginia Woolf quando ela diz que a primeira tarefa de uma mulher escritora é “matar o anjo da casa”). Mas, para que sejamos uma classe, não temos que aniquilar nossa individualidade e, como nenhum individuo pode ser reduzido a sua opressão, somos também confrontadas com a necessidade histórica de constituirmos a nós mesmas como o sujeito individual de nossa história também. Creio que esta é a razão porque todas essas tentativas de dar “novas” definições à mulher estão florescendo agora.
O que está em jogo (e, claro, não somente para as mulheres) é uma definição individual, assim como uma definição de classe. Porque, quando se admite a opressão, necessita saber e experimentar o fato de que pode ser seu próprio sujeito (em contrapartida a um objeto da opressão); que uma pode converter-se em alguém. Não obstante a opressão, que tem uma identidade própria. Não há luta possível para alguém privado de uma identidade; carece de uma motivação interna para lutar, porque, não obstante só eu posso lutar com outros, luto sobretudo por mim mesma.
A questão do sujeito individual é históricamente uma questão difícil para todas. O marxismo, último avatar do materialismo, a ciência que nos formou politicamente, não quer ouvir nada sobre o “sujeito”. O marxismo rejeitou o sujeito transcendental, o sujeito como constitutivo do conhecimento, a “pura” consciência. Todo ser que pensa por si mesmo, previamente a qualquer experiência, acabou no lixo da história, porque pretendia existir acima da matéria, antes da matéria, e necessitava Deus, espírito, ou alma para existir dessa maneira. Isto é o que se chama “idealismo”. Quanto aos indivíduos, eles são somente o produto de relações sociais e, por isso, sua consciência somente pode ser “alienada” (Marx, na Ideologia Alemã, diz, precisamente, que os indivíduos da classe dominante também são alienados, sendo eles mesmos os produtores diretos das idéias que alienam as classes oprimidas por eles. Mas, como tiram vantagens óbvias de sua própria alienação, eles podem suportá-la sem muito sofrimento).
A consciência de classe existe, mas é uma consciência que não se refere a um sujeito particular, exceto enquanto participa em condições gerais de exploração, ao mesmo tempo que os outros sujeitos de sua classe, todos compartilhando a mesma consciência. Quanto aos problemas práticos de classe — afora os problemas de classe tradicionalmente definidos— que é possível encontrar (por exemplo, problemas sexuais), eles foram considerados problemas “burgueses” que desapareceriam chegado o triunfo final da luta de classes. “Individualista”, “subjetivista”, “pequeno burguês”, estas foram as etiquetas aplicadas a qualquer pessoa que expressasse problemas que não se pudessem reduzir à “luta de classes” em si mesma.
Assim, o marxismo negou aos integrantes das classes oprimidas o atributo de sujeitos. Ao fazer isto, o marxismo, por causa do poder político e ideológico que esta “ciência revolucionária” exercia sem mediações sobre o movimento operário e todos os outros grupos políticos, impediu que todas as categorias de pessoas oprimidas se constituíssem historicamente como sujeitos (sujeitos de sua luta, por exemplo). Isto significa que as “massas” não lutavam por elas mesmas mas pelo partido ou suas organizações. E quando uma transformação econômica ocorreu (fim da propriedade privada, constituição do estado socialista), nenhuma mudança revolucionária teve lugar na nova sociedade, porque as próprias pessoas, não haviam mudado.
Para as mulheres, o marxismo teve dois resultados. Tornou-lhes impossível adquirir a consciência de que eram uma classe e por tanto de constituir-se como uma classe por muito tempo, abandonando a relação “mulher/homem” fora da ordem social, fazendo dessa uma relação natural, sem dúvida, para os marxistas, a única relação vista desta maneira, junto com a relação entre mulheres e filhos, e finalmente ocultando o conflito de classe entre homem e mulher atrás de uma divisão natural do trabalho (A Ideologia Alemã). Isso concerne ao nível teórico (ideológico). No nível prático, Lênin, o partido, todos os partidos comunistas até hoje, incluindo a todos os grupos políticos mais radicais, sempre reagiram contra qualquer tentativa das mulheres para refletir e formar grupos baseados em seu próprio problema de classe, com acusações de divisionismo. Ao nos unir nós as mulheres, dividimos a força do povo. Isso significa que, para os marxistas, as mulheres pertencem seja à classe ou à classe operária, ou em outras palavras, aos homens dessas classes. Mais ainda, a teoria marxista não concebe que as mulheres, como a outras classes de pessoas oprimidas, que se constituam em sujeitos históricos, porque o marxismo não leva em consideração que uma classe também consiste em indivíduos, um por um. A consciência de classe não é suficiente. Temos que tentar entender filosoficamente (politicamente) esses conceitos de “sujeito” e “consciência de classe” e como funcionam em relação com a nossa história. Quando descobrimos que as mulheres são objetos de opressão e de apropriação, no momento exato em que nos tornamos capazes de reconhecer isso, nos convertemos em sujeitos no sentido de sujeitos cognitivos, através de uma operação de abstração. A consciência da opressão não é apenas uma reação a (lutar contra) opressão. É também toda a reavaliação conceitual do mundo social, sua total re-organização com novos conceitos, do ponto de vista da opressão. É o que eu chamaria a ciência da opressão criada pelos oprimidos. Esta operação de entender a realidade tem que ser empreendida por cada uma de nós: podemos chamá-la uma prática subjetiva e cognitiva. O movimento para frente e para trás entre os níveis da realidade (a realidade conceitual e a realidade material da opressão, ambas as realidades sociais) se consegue através da linguagem.
Somos nós que historicamente temos que realizar essa tarefa de definir o sujeito individual em termos materialistas. Seguramente isso parece uma impossibilidade, porque o materialismo e a subjetividade sempre foram reciprocamente excludentes. Entretanto, e em lugar de perder as esperanças de chegar a entender alguma vez, temos que reconhecer a necessidade de alcançar a subjetividade no abandono por muitas de nós do mito da “mulher” (que é só uma armadilha que nos detém). Esta necessidade real de cada uma existir como individuo, e também como membra de uma classe, é talvez a primeira condição para que se consuma uma revolução, sem a qual não há luta real ou transformação. Mas o oposto também é verdadeiro; sem classe e consciência de classe não há verdadeiros sujeitos, somente indivíduos alienados.
Para as mulheres, responder à questão do sujeito individual em termos materialistas consiste, em primeiro lugar, em mostrar, como o fizeram as feministas e as lésbicas, que os problemas supostamente “subjetivos”, “individuais” e “privados” são, de fato, problemas sociais, problemas de classe; que a sexualidade não é, para as mulheres, uma expressão individual e subjetiva, mas uma instituição social de violência. Mas uma vez que tenhamos mostrado que todos nossos problemas supostamente pessoais são, de fato, problemas de classe, ainda nos restará responder ao assunto de toda mulher singular —não do mito, mas de cada uma de nós. Neste ponto, digamos que uma nova e subjetiva definição para toda a humanidade pode ser encontrada mais além das categorias de sexo (mulher e homem) e que o surgimento de sujeitos individuais exige destruir primeiro as categorias de sexo, eliminando seu uso, e rejeitando todas as ciências que ainda as utilizam como seus fundamentos (praticamente todas as ciências).
Destruir “mulher” não significa que nosso propósito consiste na destruição física, não significa destruir o lesbianismo simultaneamente com as categorias de sexo, pois o lesbianismo oferece, de momento, a única forma social na qual podemos viver livremente.
Lesbiana é o único conceito que conheço que está mais além das categorias de sexo (mulher e homem), pois o sujeito designado (lesbiano) não é uma mulher, nem economicamente, nem politicamente, nem ideologicamente. Pois o que faz uma mulher é uma relação social específica com um homem, uma relação que chamamos servidão, uma relação que implica uma obrigação pessoal e física e também econômica (“residência obrigatória”, trabalhos domésticos, deveres conjugais, produção ilimitada de filhos, etc.), uma relação a qual as lésbicas escapam quando rejeitam tornar-se o seguir sendo heterossexuais.
Somos prófugas de nossa classe, da mesma maneira que os escravos americanos fugitivos o eram quando se escapavam da escravidão e se libertavam.
Para nós esta é uma necessidade absoluta; nossa sobrevivência exige que contribuamos com toda nossa força para destruir a classe das mulheres na qual os homens se apropriam. Isto só pode ser alcançado pela destruição da heterossexualidade como um sistema social baseado na opressão das mulheres pelos homens e que produz a doutrina da diferença entre os sexos para justificar essa opressão.
(Wittig, Monique. (1992). The category of sex. In The straight mind and other essays (pp. 1 -8). New York: Beacon Press.)
1 Texto publicado por primeira vez em Feminist Issues: 1, n° 2 (inverno 1981).
2 2. DELPHY C.: <>, L’Are, n° 6, 1975. Artigo retirado de L’Ennemi Principal; tomo 1, Paris, Syllepse, 1998.
3 . GUILLAUNHN, C.: «Race et nature: Système des marques, idées de groupe naturel et rapport sociaux>>, Pluriel n° 11, 1977. Artículo recogido en Sexe, Race et Practique du Pouvoir. Paris, Côte-femmes, 1992.
4 4. Utilizo o termo “sociedade” em um sentido antropológico amplo, pois falando em propriedade não se trata de “sociedades”, dado que as sociedades lesbianas não existem de forma completamente autônoma, à margem dos Sistemas Sociais heterossexuais.
5 5. DE BEAUVOIR, S.: EI Segundo Sexo. México, Alianza/ Siglo XXI, 1989, p. 240.
6 Redstockings: In Feminist Revolution, New York, Random House, 1978, p. 18.
7 DWORKIN, A.: <>, Heresies, 6:46.
8 ATKINSON, T.-G.: 44; Amazon Odyssey, New York, Links Books, 1974, p. 15.
9 DWORKIN, A.: Ibidem.
10 GUILLAUMIN, C.; Ibidem.
11 DE BEAUVOIR, S.; Ibidem.
12 GUILLAUMIN, C.: Ibidem.
13 13. Butch em inglês designa a lésbica lida pela sociedade como ‘masculina’ ou melhor, não feminina. Seria o equivalente à lesbiana designada “Bofinho” nas comunidades lésbicas brasileiras.
14 DWORKIN, A.: Ibidem.
15 ATKINSON, T.»G.: Ibidem, p. 6: «Se o feminismo quer ser lógico, deve trabalhar para obter uma sociedade sem sexos».
16 ibidem, p. 146.
17 Em um artigo publicado em L’Idiot International (maio 1990), cujo título original era «Por um movimento de liberação das mujeres>>.
19 19, ROCHEFORT, C.: Les stances à Sophie. Paris, Grasset, 1963.