trecho de “Mulheres e honra: uma nota sobre mentiras” por Adrienne Rich
Descobrir que mentiram para nós em um relacionamento pessoal, no entanto, nos leva a sentir desnorteadas. Mente-se com palavras, e também com silêncio.
A mulher que mente em seus relacionamentos pessoais pode ou não planejar ou forjar sua mentira. Ela pode nem pensar sobre o que está fazendo de forma calculada.
Surge um assunto que a mentirosa deseja enterrar. Ela precisa descer, o tempo no seu parquímetro deve ter esgotado. Ou então, há um telefonema que ela deveria ter feito uma hora atrás.
De forma direta, lhe é feita uma pergunta que pode levar a uma conversa dolorosa: “Como você se sente em relação ao que está acontecendo entre nós?”. Ao invés de tentar descrever seus sentimentos na sua ambiguidade e confusão, ela pergunta “Como você se sente?”.
A outra, porque está tentando estabelecer um espaço de sinceridade e confiança, começa a descrever seus próprios sentimentos. Dessa forma, a mentirosa aprende mais sobre a outra do que se expressa.
E ela pode também contar a si própria uma mentira: que ela está preocupada com os sentimentos da outra, não com os seus.
Mas a mentirosa está preocupada com os seus próprios sentimentos.
A mentirosa vive com medo de perder o controle. Ela nem mesmo pode desejar um relacionamento sem manipulação, uma vez que estar vulnerável à outra pessoa significa para ela a perda do controle.
A mentirosa tem muitos amigos, e leva uma existência de grande solidão.
A mentirosa com frequência sofre de amnésia. A amnésia é o silêncio do inconsciente.
Mentir costumeiramente, como um estilo de vida, é perder contato com o inconsciente.
É como tomar remédios para dormir, que proporcionam o sono, mas impedem o sonhar. O inconsciente deseja verdade. Ele cessa de se comunicar com aquelas que querem algo a mais além da verdade.
Ao falar de mentiras, nós chegamos inevitavelmente à questão da verdade. Não há nada fácil ou simples sobre essa ideia. Não há “a verdade”, “uma verdade” – a verdade não é uma coisa só, ou mesmo um sistema. Ela é uma complexidade crescente.
Os padrões da tapeçaria são a superfície. Quando olhamos com mais atenção, ou quando nos tornamos tecelãs, nós aprendemos sobre os vários fios pequeninos que são invisíveis no desenho geral, os nós no lado de baixo do tapete.
É por isso que o esforço por falar de forma sincera é tão importante. Mentiras são usualmente tentativas de tornar tudo mais simples – para a mentirosa – do que na verdade é, ou deve ser.
Ao mentir para outros, nós acabamos mentindo para nós mesmas. Nós negamos a importância de um evento, ou uma pessoa, e dessa forma nos privamos de uma parte de nossas vidas. Ou nós nos utilizamos de uma porção do passado ou presente para bloquear outra. Assim, nós deixamos até de acreditar em nós mesmas.
O inconsciente deseja verdade, tanto quanto o corpo a deseja. A complexidade e a fecundidade de sonhos vêm da complexidade e fecundidade do inconsciente lutando para satisfazer esses desejos. A complexidade e fecundidade da poesia vêm da mesma luta.
Uma relação humana honrável – isto é, uma na qual duas pessoas tenham direito de usar a palavra “amor” – é um processo, delicado, violento, com freqüência assustador para ambas as pessoas envolvidas, um processo de aprimorar as verdades que nos contamos.
É importante passar por esse processo porque ele destrói a auto-ilusão humana e o isolamento.
É importante passar por esse processo porque ao fazê-lo nós fazemos jus a nossa complexidade.
É importante passar por esse processo porque nós podemos contar com tão poucas pessoas para nos acompanhar em nosso duro caminho.
... Há um risco que todas as pessoas impotentes correm: o de que esqueçamos que estamos mentindo, ou que o ato de mentir se torne uma arma que levamos para relacionamentos com pessoas que não têm poder sobre nós.
Eu desejo reiterar que quando falamos sobre mulheres e honra, ou mulheres e mentira, nós falamos dentro do contexto da mentira masculina, das mentiras dos poderosos, da mentira como fonte falsa de poder.
Nós mulheres devemos pensar se queremos, em nossos relacionamentos uma com a outra, o tipo de poder que pode ser obtido através da mentira.
As mulheres têm sido levadas à loucura, alvos de tortura psicológica, por séculos pela negação de nossas experiências e nossos instintos e uma cultura que valida apenas a experiência masculina. A verdade de nossos corpos e nossas mentes tem sido mitificada.
Portanto nós temos um dever primário uma para com as outras: não minar a percepção da realidade de cada uma para o bem da conveniência; não abusar psicologicamente uma das outras.
Nós mulheres temos frequentemente nos sentido loucas quando abrindo caminho para a verdade de nossas experiências. Nosso futuro depende da sanidade de cada uma de nós, e possuímos um profundo dever, além do pessoal, no projeto de descrever umas para as outras nossa realidade da forma mais sincera e completa que podemos.
Há frases que nos ajudam a não admitir que estamos mentindo: “minha privacidade”, “não é da conta de ninguém”. As escolhas implícitas nessas frases podem de fato ser justificadas; mas nós devemos pensar no significado total e nas conseqüências dessa linguagem.
O amor de mulheres por mulheres tem sido representado quase inteiramente através de silêncio e mentiras. A instituição da heterossexualidade forçou a lesbiana a dissimular ou ser rotulada uma pervertida, uma criminosa, uma mulher doente ou perigosa, etc., etc. A lesbiana, então, tem sido frequentemente forçada a mentir, como a prostituta ou as mulheres casadas. Uma vida “no armário” – mentindo, talvez por necessidade, sobre nós mesmas a patrões, locadores, clientes, colegas, família, porque a lei e a opinião pública estão baseadas em uma mentira – se espalha, pode se espalhar para vida privada, de forma que mentir (descrito como discrição) se torna uma maneira simples de evitar conflito ou complicação? pode se tornar uma estratégia tão arraigada que é utilizada até mesmo com amigos próximos e amantes?
A heterossexualidade como instituição também relegou ao silêncio os sentimentos eróticos entre mulheres. Eu mesma vivi metade de uma vida na mentira dessa negação. Esse silêncio faz com que todas nós, em certo grau, sejamos “mentirosas”. Quando uma mulher diz a verdade ela está criando a possibilidade de mais verdade ao redor dela. ... – por Adrienne Rich em “Mulheres e honra: uma nota sobre mentiras”