O ódio a corpos femininos não-feminilizados

por Laila Maria e Jan R, ainda em edição

O ódio a corpos Femininos não-Feminilizados

Por Laila Maria (Sapaganja) e Jan (Memória Lésbica)

“Nós ousamos sermos sapatonas. Este é o nosso crime contra a humanidade. Nós ousamos amar outras sapatonas. Isso é imperdoável no patriarcado. Mas nós não paramos. Nós queremos o melhor mundo possível para lésbicas e para todas as fêmeas, e isso também significa um mundo não poluído, selvagem, seguro para as outras criaturas na terra”
Bev Jo

FOTO DE ELLIOT PAGE NA CAPA DA REVISTA E SEM CAMISA E BILLIE EILISH ANTES DE FEMME E DEPOIS

Eu Laila Maria enquanto mulher negra, maconheira e sapatão e uma das redatoras deste artigo, possuo em minha existência política marcadores sociais que me destacam positiva e negativamente dentro do projeto político patriarcal em que vivemos. A positividade está em me orgulhar de ser do jeito que sou, e a negatividade está no racismo, na criminalização e na disforia corporal que cotidianamente a sociedade emprega contra mim, afinal de contas, se mulheres geralmente já são odiadas, as que não performam feminilidade ainda mais. Os recentes acontecimentos com Elliot Page e Billie Eilish provaram que uma mulher que não performa feminilidade não é aceita na sociedade atual, restando a ela apenas duas opções:

1- Ceder a performance do papel sexual feminino (Exemplo Billie Elish) ou
2- Rejeitar o ser mulher e transicionar por meios hormonais e cirúrgicos para a leitura social como um homem, ambas únicas estratégias de sobrevivência para mulheres atualmente no Patriarcado em sua expressão neoliberal.

Em ambas as opções nota-se o ódio com o qual são tratados corpos e mentes que não compactuam com o molde feminino social. Neste ambiente, o ódio a mulheres lésbicas e o que sua existência significa se intensificam, sendo essa a consequência de não escolher nenhuma das duas opções fornecidas pela sociedade.

foto de luana barbosa dos reis, legenda sobre como ela morreu nas mãos da PM

O ódio a corpos não feminilizados mata, principalmente mulheres negras e marginalizadas. Luana Barbosa é um exemplo de como a margem sofre com um sobretom ainda mais cruel quando não compactua com as diretrizes sociais patriarcais. Luana mulher negra, mãe e caminhão, em uma abordagem da Policia, foi rechaçada por ser mulher e não performar feminilidade e, ao se recusar a ser revistada por um policial homem (direito que toda mulher tem prescrito por lei) o peso da hierarquia racista fizeram com que o resultado do ódio ao corpo negro não-feminilizado desta mulher fosse morte por espancamento. Eram três HOMENS, humilhando, xingando e espancando uma mulher mãe, negra, butch e periférica que além de exigir um direito prescrito por lei, possuía uma existência que é digna e exige respeito.

Dentro de uma sociedade que odeia mulheres e que busca a extinção de mulheres lésbicas de forma física e simbólica, o que aconteceu com Luana Barbosa é o que acontece com a maioria das mulheres que não performam feminilidade e não aceitam se enquadrarem nas opções pós-moderna de conformidade patriarcal: transexualização ou falso empoderamento da feminilidade/pornificação, opções que a sociedade dá enquanto “resolução” de um problema que só existe para os patriarcas incomodados. Morte por espancamento e estupro corretivo são coisas as quais estamos constantemente correndo risco, principalmente lesbicas não-feminilizadas negras, perifericas e do campo, por desobedecerem essas expectativas.

A transição de gênero neste contexto se torna uma tentativa desesperada de escapar à eliminação destes corpos ameaçadores a ordem heteropatriarcal. Porém, a transição das corpas femininas não constrói um futuro onde nossas existências rebeldes à feminilização, onde nossas corpas que se reivindicam humanas e não bonecas infláveis de homens, possam existir em paz.

A mensagem de tais violências é de que se “parecemos com homens”, se “queremos ser homens”, como julga a sociedade nossa existência que rejeita o estereótipo sexista (gênero), e concomitantemente não renegamos nosso sexo, precisamos morrer, por assassinatos motivados por lesboódio, por marginalização econômica e de saúde, e somos culpadas da violência que “buscamos” com nossa apresentação insubmissa. “Provocamos”, dizem eles, a ira dos patriarcas.

Dentro de um contexto onde o regime de gênero é compulsório para mulheres, a transição não é escolha, a prostituição não é escolha, a maternidade não é escolha, a heterossexualidade não é escolha. São todas tentativas desesperadas da classe mulher sobreviver e não ser morta, ou marginalizada até o perecimento material. Isso é gênero: violência sexista, e não identidade.

Hoje, também muitas mulheres e lésbicas optam por rejeitar tanto nomear-se como mulher ou lésbica, por meio da identidade em voga “não-binárie”. O problema da escolha por se denominar não-binárie, coisa que vemos muitas sapatonas sem conformidade de gênero fazerem ultimamente, é que ao invés de se afirmar diante da sociedade como mulher não feminilizada, escolhe-se rechaçar o ser mulher e com isso reforçar que mulher está realmente ligado ao papel sexual feminino (o gênero). Potente seria dissociar o ser mulher do papel sexual imposto e o estereótipo heterossexista, enquanto estratégia de resistência. O não-binarismo não acaba com o gênero, ele só declara que eu ou outra pessoa somos especiais, que “não temos gênero” (abençoados?) ou “fluímos”, deixando o resto das mulheres com o grilhão da feminilidade, maioria obrigadas a performar isso por sobrevivência trabalhista Não, o gênero é imposto a toda classe das pessoas nascidas no sexo feminino. Ninguém é binário ,pois o gênero (papel social por sexo) é uma imposição sistêmica. Você não vai escapar do gênero por autodenominação individualista, precisamos uma estratégia solidária e coletiva, como fazem as feministas sul-coreanas, onde uma massa crítica feminina se compromete com des-feminilização, para construir um futuro onde mulheres não sejam dependentes da indústria da beleza ou precisem performar comportamentos de gênero que demarcam a nossa subalternidade.

FOTO DE FEMINISTAS COREANAS CORTANDO CABELO EM PROTESTOSLegenda: Portar uma estética desfeminilizada é uma norma no movimento feminista coreano e toda feminista se compromete nesta ação de boicote.

Nós, mulheres lésbicas, reivindicamos o direito pleno de nossa existência e excluímos as únicas opções absurdas deixadas para nós, que somente apontam a ceder às estratégias patriarcais. As mulheres que não compactuam com tais apagamentos, por exemplo lésbicas butch, caminhoneiras, meninas molecas, se encontram em um limbo emocional, pois, seu corpo, trejeitos, estilo e falas são descredibilizados em meio ao senso comum. Hoje em dia crianças com não-conformidade de gênero precisam lidar com muitos desafios para ter um desenvolvimento emocional e cognitivo saudável, pois são escassos os referentes de liberdade feminina. Diante deste vácuo de representações não-objetificadas de mulheres, e diante da invisibilidade lésbica e de mulheres orgulhosamente divergentes da feminilidade, meninas começam a cogitar a transição cedo e lhes são administrados bloqueadores hormonais da puberdade, cujos efeitos no desenvolvimento bio-psico-social destas sujeitas ainda é desconhecido e em alguns casos se mostra trágico por relatos como os de Keyra Bell, mulher que foi transicionada ainda criança. Ela conseguiu processar a clínica que a deixou com sequelas irreversíveis na vida adulta. A intensa propaganda queer que bombardeia adolescentes em redes sociais hoje somada à pressões sociais, convencem crianças a ingressar na transição infantil, a despeito da incapacidade de infantes para consentir plenamente, dado que sua cognição e juízo ainda estão em formação.

(colocar foto de Keyra Bell)

Tendo mídias, cultura pop, sociedade, família, escola e educação sexista, brinquedos diferenciados para meninos e meninas, intensos investimentos desde a infância para entrar nos moldes de gênero, e logo após tudo isso, o proprio mercado LGBT como carrasco, o açoite vem em sentir o mal-estar político e psíquico do “despertencimento” e da estrangeria, pois lésbicas habitam um não-lugar radical dentro da ordem patriarcal. Essa pressão social leva muitas mulheres lésbicas a acharem que o correto é passar pelo processo de transição, afinal, de um lado temos uma sociedade que diz:

- Se você se veste e age como um homem, vai ser tratado com um “O” que nos remete ao ideal de que mulheres tem que ser femininas, ou não são dignas de serem tratadas como mulheres, impossibilitadas de aceder ao status de humanas.

Do outro uma sociedade que diz:

- Você tem certeza de que não é trans? Com esse seu estilo assim, esse seu jeito né?… já pensou nisso?- Frase que muitas estão escutando hoje em dia, muitas vezes já na infância pois o próprio Hospital das Clínicas em São Paulo realiza procedimentos de transição infantil em crianças fora das normas sexistas.

(colocar foto do psiquiatra que realiza procedimentos no hc de transição infantil)

Nada que vem de mulheres é masculino, pois entendemos feminino como aquilo que diz respeito a fêmea humana, e masculino como aquilo que deriva dos homens, enquanto existência humana, social, política, cultural. Lésbicas caminhoneira e sapatonas não somos “masculinas”, somos femininas pois somos mulheres, o que não somos é feminilizadas. Masculinizar a existência de mulheres lésbicas é um projeto político patriarcal e da ideologia queer/generista que o sustenta em sua versão pós-moderna e palatável por círculos progressistas, e cujo intuito é extinguir a existência de mulheres que não seguem as normas sociais patriarcais. A existência deste projeto não se resume somente às violências à que caminhoneiras e mulheres com inconformidade de gênero estão sujeitas, mas também às consequências sociais (principalmente no meio GBT+) que esse raciocínio de gênero traz. Uma delas e talvez a principal, é que, com a neutralização e normalização dessa forma de lidar e enxergar gênero, a comunidade GBT+ tem abraçado, dando espaço social e até mesmo propagado a autoginefilia, uma condição onde homens tornam a performance de feminilidade um fetiche, enquanto à nós mulheres é compulsória, oprime, constrange e sem a qual não sobrevivemos no mercado laboral. Homens não sofrem com a mesma pressão social que as mulheres, mesmo quando não são “tão masculinos” ainda são e em algumas circunstâncias até mais amados e ovacionados e tendo respaldo social que as mulheres em geral, basta ver a popularidade, carisma e fama que gozam os homens gays como o falecido Paulo Gustavo (que recorreu ao carísimo e misógino mercado da exploração/prostituição reprodutiva das “barrigas de aluguéis” nos EUA para adquirir bebês com seu marido), Pabllo Vittar e outros, setor social este sim empoderado financeiramente e detentor do Pink Money que alimenta o corporativismo “LGBTQI+”. A autoginefilia é um termo cunhado em 1989 por um homem americo-canadense phd em sexologia e que tem reconhecimento mundial por seus estudos com transexuais e homossexuais. Não compactuamos com as teorias deste teórico e muito mesmo com a desresponsabilização o indivíduo que vem com a patologização deste comportamento, mas tal fenômeno apenas demonstra a normalidade do patriarcado: homens criaram o constructo fetichista da feminilidade, então nada mais óbvio do que eles encarnarem tal constructo com fins de excitação sexual de cunho narcisista.

postar foto das coreanas dizendo para os homens forçarem essa beleza toda neles

Na autoginefilia a figura masculina sente atração, excitação em imaginar-se ou travestir-se como mulher. Segundo a definição original “na autoginefilia, o homem quer ser mulher por causa de um apego erótico à ideia de si mesmo como mulher.” ou “propensão a ser eroticamente excitado pelo pensamento ou imagem de si mesmo como mulher”.

Lendo sobre o assunto, que divide transativistas e feministas radicais, mas que como sempre, é abraçado pela comunidade LGBT, encontrei uma matéria no The Public Discourse escrita por Jane Robbins, uma advogada, escritora e pesquisadora de Atlanta que compactua com a "Tipologia do Transexual”, e questionao porquê do movimento trans negar a existência da autoginefilia:

Os ativistas transgêneros freqüentemente argumentam que os homens que desejam se apresentar como mulheres (homem para mulher ou transgêneros MtF) têm uma “identidade de gênero feminina”, provavelmente inata, que conflitua com seu sexo biológico. Esses homens, eles argumentam, são “mulheres presas em corpos de homens” e, portanto, são candidatos adequados para o chamado “tratamento de redesignação de gênero”: drogas, hormônios e cirurgia que não mudam seu sexo, mas os ajudam a imitar as mulheres na aparência. Este argumento foi considerado a "narrativa da essência feminina ". Isso choca com o esforço feminista de anos de ativismo e lutas sociais organizadas de mulheres, de que o estereótipo sexista de feminilidade não nos define, expressada na clássica frase: “O feminismo é a noção radical de que mulheres somos pessoas”, pois nossa luta é para sermos admitidas na categoria humana sem que isso implique em negar ou desvalorizar nossa diferença sexual.

Ativistas transgêneros oferecem essa teoria como um fato científico, muito embora não tenham provas da existência de um cérebro “feminino” ou “masculino”, quando nem a homossexualidade pôde ser explicada como uma tendência inata determinada por genes. Mas a narrativa da essência feminina entra em conflito com outra teoria que explica a disforia de gênero MtF (transexual “macho para fêmea”, tradução literal do inglês). No caso a teoria que Jane Robbins aponta é a autoginefilia, e em sua matéria prossegue:

Autogynephilia é distinta da homossexualidade; na verdade, os autoginéfilos freqüentemente interagem sexualmente com mulheres reais, e podem se apresentar como “lésbicas” após a “transição” para a imitação estética do sexo feminino como este é geralmente convencionado por normas sociais do patriarcado de seu contexto, geralmente por meio de intenso investimento da indústria da beleza que sustenta a feminilidade, artíficio patriarcal que descaracteriza a humanidade das mulheres e tem o propósito de demarcá-las como casta sexual diferenciada . A característica distintiva é o apego erótico do paciente não a outra pessoa, seja homem ou mulher, mas sim a uma ideia interior – a ideia de si mesmo como uma “mulher”. Entre muitos estudos de caso de sua prática, a teórica descreve pacientes que são sexualmente excitados por funções corporais femininas, como a menstruação. Um exemplo disso é o cartunista Laerte, que diz ter descoberto que era mulher no momento em que teve uma ereção ao vestir um vestido. Devido a que homens heterossexuais não possuem essa pressão sobre si de terem que transicionar para sobreviver nessa sociedade que odeia corpos femininos e lésbicos ou que é homofóbica e heterossexista e não aceita que dois homens possam se amar, é que questionamos o pensamento do da Dr.Jane e do teórico Ray Blanchard. Pensamos que o que existe é a excitação masculina em performar o imaginário social do ser mulher. Esse sim, é o verdadeiro motivo de transativistas negarem a autoginefilia, pois a autoginefilia na realidade, exemplifica o que de fato é a base do lobby trans, pois torna visível que o movimento transativista é sobre direitos sexuais masculinos, sendo o clássico a prerrogativa da classe sexual masculina de acesso irrestrito aos corpos e existências geográficas das mulheres. Escondendo a motivação por poder masculino sobre mulheres, por meio da negação de seu pertencimento ao sexo masculino e tudo que deriva da subjetivação masculina (privilégios), ocultam que se tratam de sujeitos homens por trás da estética que emula a feminilidade hegemônica opressora para mulheres. O movimento LGBT no fim avança uma agenda masculina clássica ligada a prostituição, pornografia, exploração reprodutiva, acesso a corpos femininos e correção das existências lésbicas por meio da imposição fálica. São os direitos sexuais de mulheres sendo tratorados pelo reclamo dos direitos das sexualidades dos homens, e isso se expressa em políticas públicas que em muitos países estão apagando as referências ao sexo biológico com todas espcificidades que decorrem dessa anatomia, no campo da saúde, esportes diferenciados por sexo, banheiros seguros para mulheres e educação sexual para prevenir o abuso infantil. Isso sem contar o aparelhamento do Estado que avança legislações como identidade de gênero e serviços de “assistência” a esta população, incluindo a hormonização pelos sistemas públicos de saúde, enquanto fecham centros de referência a mulher vítima de violência e aprovam leis ainda mais restritivas ao aborto em casos previstos anteriormente pela lei. Enquanto tais “direitos” de cunho individualista (cirurgia estética no SUS por exemplo) avançam, a perspectiva de aborto legal e na saúde pública segue sendo uma miragem distante.

E também vale lembrar que sim, o corporativismo “LGBTQI+” e o pink money são tão fortes e hegemônicos por estarem ligados à indústria do sexo, e por isso o interesse em investir ideologicamente por meio da teoria queer em uma sociedade mais permissiva quanto a exploração sexual e toda pornificação que é tão rentável aos patriarcas. Hoje vivemos em uma cultura aliciadora onde a hipersexualização precisa ser cada vez mais banalizada e tornada comum para que o neoliberalismo sexual triunfe em seu ápice. Um exemplo necessário de mencionar é a atual uberização feminina do Only Fans, rede social onde mulheres vendem pornografia feita de si mesmas, promovida pela pornificação da cultura, e sites onde mulheres se empregam como camgirls para fazer face a precarização ainda mais agressiva das mulheres no contexto de pandemia. Estas mulheres ingressam o violento (psicologicamente e fisicamente) mercado do sexo comprando a propaganda de que serão “trabalhadoras sexuais” (o novo “colaborador” da empresa ou o “empreendedorismo” de aplicativos como Ifood e Uber), e que seu trabalho de alto risco de exposição onde pornógrafos donos dos sites enriquecem cada vez mais e ficam com direitos sobre sua imagem, para isso é criado o discurso de que é liberador e afirmação da sua sexualidade empregar-se na pornografia. A sexualidade que performam não é delas, é dos homens, o corpo que devem portar é o corpo magro e feminilizado, vestindo a erotização perversa que homens possuem da humilhação feminina, o que vem aumentado problemas com a imagem corporal, transtornos alimentares, quando não prejudicam um momento da vida onde poderiam estar direcionando suas carreiras, num “trabalho” que durará talvez até os 30 anos, momento onde talvez se arrependam das escolhas feitas tão jovens geralmente ingressando no mercado do sexo aos 18.

Portanto temos um cenário onde por um lado temos mulheres reféns da disforia, com descontentamento crônico com seus corpos sexuados diante da pornificação que imprime forte significado de objetificação ao fato de portar o corpo feminino, mulheres destransicionando em processos difíceis de desintoxicação de toda medicalização prévia de seus corpos femininos e,por outro vemos homens fetichistas tendo suas fixações sexuais relacionadas a gênero cada vez mais apoiadas a despeito do bem-estar das mulheres. Incluindo o desrespeito de bandeiras clássicas do feminismo como o “não é não”, o consentimento sexual, transformando o não aceder a sexo com lésbicas em um caso de discriminação (“lésbicas que não gostam de pênis são transfóbicas”). Assim temos que até mesmo a nossa existência lésbica é convertida em criminosa por não aceitarmos pênis no nosso desejo erótico. Isso, como tudo no mundo cíclico que vivemos, tem um outro lado da moeda. Conforme a comunidade GBT+ e a Sociedade vai se abrindo e abraçando esses absurdos, fêmeas humanas lesbo/saficas seguem abrindo os olhos e percebendo o que está acontecendo através das consequências muitas vezes deixadas em seus corpos.

Portar a tal “cara de lésbica”, que muitas mulheres heterossexuais e lésbicas feminilizadas acham tão ofensivo, na verdade é apenas a constatação pelo senso comum de que a lesbiandade é historicamente relacionada com a desobediência de uma mulher com a obrigação de casta sexual. A relação constante entre desfeminilização e lesbiandade evidencia que heterossexualidade e feminilização andam juntas e são indissociáveis, uma vez que feminilidade são conjuntos de signos desenhados e pensados por homens para sinalizar a mulher como diferente deles e subjugada a eles, portados para garantir o cumprimento de um mandato: o da acessibilidade sexual da classe, a cooperação com a norma masculina, a fidelidade a homens, para não sofrer violência destes, não ser vista como uma perigosa “sapatona”, violência esta que sofrem mulheres caminhoneiras, e principalmente a disponibilidade sexual à homens.

FOTOS BILLIE EILISH[
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O rito de passagem da feminilidade como foi descrito por Bev Jo, significa uma deslealdade e traição do seu eu menina. As mulheres na indústria pop assim que completam maioridade hoje, como no caso de Billie Eilish, 19, precisam declarar ao mundo que são mulheres adultas agora. O que significa passar a mensagem de que são fodíveis por homens, e portanto, heterossexualizadas e aptas a rituais sexuais com o sexo oposto, vestindo-se e portando-se de acordo com o olhar deles, pensando-se a partir do olhar deles. Esta mensagem também é lesbomisógina, pois assim ao declarar lealdade aos homens e a traição de quem eram, meninas livres do gênero, elas se retiram covardemente da possibilidade de sofrer o ostracismo de serem lidas como lésbicas. Por outro lado as que são lésbicas e influenciadas por um pensamento liberal, ou sob pressões familiares e sociais, ou que não desenvolveram seu orgulho, precisam dizer que embora sejam lésbicas, ainda são aptas ao olhar masculino e não são tão desobedientes, portanto sendo respeitáveis e decentes devido ao seu cumprimento das normas sexistas que as conformam no gênero. Assim também foi com Emma Watson, Bobbie Brown Stranger things, Miley Cyrus, Sandy.

O que está acontecendo é que graças a intensa pornificação da cultura, a representação do ser mulher está cada vez se tornando indissociável do ser fodível e objeto. Neste cenário, não há construção de feminilidades alternativas. E isso está promovendo a epidemia de disforia sexual em mulheres. Quem quer possuir um corpo cujo significado é a limitaçao da liberdade e a degradação pela sexualidade masculina? Possuir seios, buceta, menstruar, é tornado um fardo. Não possuir a apresentação masculina, barba, e a potência muscular deste corpo, é novamente tratado como inferioridade e uma miséria, uma sina, o “sexo frágil”. A mensagem que Billie Eilish acabou transmitindo a jovens com suas fotos sensuais após longa pressão e questionamentos sobre por que ela se vestia com roupas largas, por que ela escondia seu corpo, por que ela não se sensualizava, cedendo afinal à essas pressões, é de que: se você nasceu do sexo feminino e não é fodível (pois tal destino estaria escrito nesse sexo), você é trans. Ou seja, o sexo feminino é definido pelo constructo da feminilidade, pois se você não performa a objetificação e desumanização da feminilidade, você é trans, ou seja nasceu no corpo errado e deveria pertencer ao sexo oposto, pois tais qualidades como gostar de roupas confortáveis e assertividade, desejo de desenvolver força física, etc, seriam propriedades da masculinidade/dos homens. Assim, homens conseguem lançar seu ditame final sobre o que somos e impôr sua significação (gênero) sobre nosso sexo como absoluta: existimos para gratificação deles, ou não existimos.

E assim a classe masculina termina de nos desaparecer, num processo de extinção simbólica das lésbicas e mulheres desfem, minando também nosso direito de habitar nossas corpas em paz, com direito a saúde e integridade física. Pois parece que a punição é ter que atravessar todo seu sistema médico para poder existir de outra forma, poder andar sem camisa como eles sem que isso seja lido como permissão para estupro.

A lésbica é mais do que sexualidade, é resistência feminina. É desobediência e inconformidade com o sistema de gênero. Por isso muitas lésbicas não são feminilizadas. Por isso caminhoneiras sãosão sempre a imagem universal das lésbicas, pela sua visibilidade espontânea e estridente de alguém que não denota disponibilidade sexual a homens por meio da feminilização. E por isso, “cara de lésbica “ é sobre o alvo dos homens e sua violência masculina, é sobre ser alvo e estar mais vulnerável a violência lesbocida. Porque essas mulheres são a linha de frente, elas bancam com suas vidas, para que você, todas mulheres, se desobriguem da feminilidade. É justo deixar elas tomarem porrada sozinhas? Devemos questionar o quanto o apego ferrenho de muitas feministas a rituais de beleza e a aparência feminilizada não pode ser expressão de uma lesbomisoginia.

Porque as nossas estão tomando porrada na linha de frente para sermos livres. Não é justo que tomem porrada sozinhas. Que tal ir pra lá e dividir as porradas com elas e construir uma grande linha de frente que deixe o inimigo sem forças ?

Nós só vamos ter um futuro livre de gênero, onde meninas cresçam sem disforia, sem ódio a seus corpos femininos, sem achar que nossos corpos são inferiores ou piores, falhados, um estorvo, onde possam se orgulhar do seu sexo, se tivermos grande visibilidade de mulheres fora do padrão sexista (fora da feminilidade). Está em nossas mãos construir esse futuro onde a existência lésbica e feminina (mulheril) não seja mais eliminada e declarada impossível. Precisaremos do compromisso de toda mulher consciente, toda feminista, em aderir a desfeminilização sempre que possível para solidarizar-nos com toda mulher que luta diariamente para existir da forma como ela é, e para rejeitar o olhar fetichista masculino sobre nós e defender nossa humanidade.