O Feminismo Radical da Diferença - Andrea Franulic

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O feminismo radical da diferença

Por Andrea Franulic 1 (2010)

Tradução para o projeto Quarentena Lesbofeminista do Memória Lésbica.
Tradução: Mona. Revisão: Jan. 2020.

“… e pensei no órgão que retumbava na igreja e nas portas fechadas da biblioteca;
e pensei no quão desagradável é estar excluída;
e pensei que talvez seja pior estar trancada dentro…”2

Ao “compreendermos as coisas desde as raízes”3, percebemos que as mulheres sempre estiveram fora da cultura patriarcal. Nossa diferença em relação aos homens é a seguinte: somos estrangeiras de sua civilização. Homens com poder construíram sua cultura, nos excluindo como seres humanas e, em um mesmo movimento, nos incluindo como femininas. Homens sem poder não são estrangeiros desta civilização, ela lhes pertence igualmente. Eles não têm um poder contingente em relação a outros homens, mas sempre exercem um poder necessário em relação a uma mulher. Mais profunda ainda, a operação primária4 de nos negar como humanas e nos incluir como femininas está presente tanto na esfera pessoal quanto na pública. Portanto, o pessoal é político, uma vez que o sistema patriarcal re-atualiza seu domínio nas relações de cada ser humano. Margarita Pisano, teórica radical da diferença, projeta, com base em nossa posição de estrangeiras, uma proposta ético-política e afirma que para saber como funciona o sistema vigente, analisando suas operações fundamentais (em renovação perpétua) e desconstruir a ordem simbólica feminino/masculino, é necessário5 o olhar desde o exterior. Sem essa visão, os feminismos continuarão debatendo-se dentro das lógicas estabelecidas.

É nessa perspectiva do afora6 que se situa o feminismo radical da diferença7. Eu a defino como uma corrente de pensamento feminista, em diálogo e confronto com os feminismos da igualdade, da diferença, o radical e o pós-moderno. Entra no atual debate de correntes ideológicas, no entanto, brilha na brecha da história para dar continuidade e profundidade às propostas teóricas – com nomes e sobrenomes – que vinculam essa linha de pensamento e fornecem as ferramentas políticas necessárias para interpretar que: “a derrota de nossas antecessoras possui mais dignidade do que o triunfo de nossas contemporâneas.”8

Carla Lonzi, teórica radical da diferença, diz: “A diferença das mulheres consiste em estarmos ausentes da história há milhares de anos. Vamos tirar proveito dessa diferença … ”9 A lógica da inclusão é um elemento fundamental do poder patriarcal. Ao longo da história, pedimos a quem nos domina que fossemos incluídas, reproduzindo e reforçando a ordem do feminino; em vez de perceber que nosso potencial político está em sermos excluídas. Por esse motivo, Lonzi continua: “uma vez que a inserção das mulheres seja alcançada, quem poderá dizer quantos milênios serão necessários para que nos libertemos desse novo domínio?”10

O fato de estarmos ausentes da História, de sermos estrangeiras da civilização atual e constantemente definidas por outros, projeta uma força transformadora que nenhuma rebelião masculina é capaz de conter. Antes de tudo, nos protege de assumir uma responsabilidade de liderança na desumanização que reina, resultado da devastação do mundo e do planeta que o sistema patriarcal realizou. O fracasso da civilização pertence a eles; a derrota, como Lonzi diz, é do homem. Ela nos pergunta: “Parece gratificante participar da grande derrota do homem?”11. Daí resulta que nossas ações não podem ser de reivindicação ou salvação, não podemos continuar coletando os mortos de suas guerras e continuar reproduzindo a feminilidade como destino político.

Essa é outra vantagem que podemos extrair de nossa posição estrangeira consciente, a de nos concentrarmos na tarefa política de saber como a feminilidade funciona, o que nos permitirá sustentar discursos que desmantelam o essencialismo patriarcal, uma das crenças mais profundamente enraizadas em seu domínio. Isso opera dessa maneira, pois a construção da feminilidade se perde na origem, tanto no nascimento de cada mulher neste mundo, quanto nas raízes da história. O patriarcado esconde o início de sua cultura com a mitologia e os livros sagrados. Neles se fala de uma criação além do tempo e do espaço, é uma criação divina (a ideia ilusória de Deus). É assim que eles constroem seu essencialismo, enquanto definem nossa “natureza” como mulheres. A cultura patriarcal é simultaneamente fundamentalista e misógina. Ela nos despreza como pessoas e nossa resposta obediente é a feminilidade. Eles se amam, se legitimam e se admiram. Nós os amamos e os admiramos. Enquanto isso, nós desprezamos umas às outras e a nós mesmas. A misoginia atravessa o íntimo, o privado e o público12, uma experiência essencial que nenhuma outra subjugação possui. As desigualdades de raça e classe não têm uma operação secundária desse tipo. Refiro-me à construção do feminino, que oculta a negação primária de nossa existência. Portanto, a opressão das mulheres não é sequer comparável a outras opressões. Evidente que pode-se aprofundar-la, pois nossa dominação atravessa classe, raça e idade.

A falta de amor próprio e a insegurança que essa ausência projeta, a profunda insegurança de não saber de onde vêm nossos medos e, principalmente, o impedimento emocional e intelectual de exercer a capacidade humana de pensar de forma autônoma, são traços do feminino. É no vazio de amor próprio, sobre essa carência, que se ergue o cenário do romântico amoroso, cuja realização ideal é o modelo patriarcal da “boa mãe”: assim, justificamos nossa permanência nesta vida, servindo aos outros, vivendo – sexual, emocional e ideologicamente – em função dos outros. O amor, nesse contexto, é a cobertura mais perversa, porque nos torna cúmplices de nosso domínio, nos torna vulneráveis e possibilita que nos manipulem por meio do sentimento de culpa.

Esses mecanismos naturalizam a desumanização das mulheres, asseguram que, de tempos em tempos, tenhamos que repetidamente “demonstrar” que existe uma civilização patriarcal. Da mesma forma, nós mulheres continuamos divididas entre nós, pedindo permissão nas lutas alheias, usando as ferramentas ideológicas deles para denunciar discriminações. Ao lermos a nós mesmas na história deles, nossa alienação e a misoginia permanecem intactas.

Portanto, temos que tirar proveito de estarmos ausentes da história há milhares de anos e nos situar afora (de fora) para observar. Somente assim podemos compreender como o sistema patriarcal e sua feminilidade operam. Somente assim podemos desmantelar nosso desejo de pertencer. Somente assim podemos ler sua história de heróis como uma história de violência contra nós. Somente assim podemos recuperar as mulheres que exercitaram teimosamente a capacidade humana de pensar de forma independente, mesmo que a muitas tenha lhes custado a vida. O feminismo, como eu o entendo, é um projeto político em si mesmo, cuja possibilidade de transformação do mundo supera a de qualquer movimento subversivo que ocorreu na história, porque é o único que pode fornecer uma análise radical do poder.

No marco da lógica inclusiva, os homens constroem suas dicotomias. Etimologicamente, a palavra “dicotomia” vem do grego e significa literalmente “eu corto em duas partes”13. Uma vez que fomos incluídas por eles como femininas, esse eu masculino que corta em dois emerge. Eles pensam, nós amamos. Eles produzem, nós reproduzimos. E eles garantem que essa dualidade é complementar. E para a civilização deles, é. Nesse sentido, Margarita Pisano afirma que masculinidade/feminilidade é um todo indivisível, um construto único, um corpo único. Os homens se apropriaram das capacidades do ser humano: criar cultura e sociedade, fazer filosofia e política, falar e escrever, pensar o mundo, construir símbolos e valores14. Ao mesmo tempo, eles envolveram essas capacidades em uma lógica de dominância, as embeberam no conceito de superioridade e disfarçaram tudo com a ideia de universalidade neutra e abstrata. Não poderia ter sido de outro modo, já que dessa apropriação viria imbricada com a nossa exclusão do pensamento.

Ao longo da história, as mulheres foram perseguidas e mortas por pensar: mulheres da revolução francesa, mulheres da querela medieval15, bruxas do final da Idade Média16, as preciosas do século XVII17, as sufragistas dos séculos XIX e XX18, entre outras. Apesar da violência masculina, a única maneira de transcender a negação original de nossa existência é através da expressão material de um pensamento diferente. E é exatamente isso que o feminismo pretendida ser. Para isso, desde o feminismo construiu-se conhecimento, filosofia, teoria, projetou-se uma práxis política, interpretou-se a história, produziram-se movimentos sociais, mulheres se organizaram; mas muitas vezes tudo isso foi feito sem abandonar a feminilidade, e na feminilidade não se possui autonomia de pensamento. Isso atrasou, juntamente com outros fatores, a possibilidade de construir uma visão própria que tenha uma continuidade visível no tempo, que seja acessível a qualquer mulher (e homem) neste mundo e que aluda a um referente radicalmente diferente daquele imposto pelo sistema patriarcal, isto é, que não reproduz sua lógica de dominação.

A palavra “dicotomia” não é um problema em si mesma. O problema reside nesse eu que corta, separa e divide na cultura vigente; mas não na ação de cortar, separar e dividir, inclusive muitas vezes em dois, tão necessária para a vida. Nesse sentido, o feminismo deve marcar uma dicotomia teórica, filosófica, política e ética em relação ao patriarcado. É a isso que Teresa de Lauretis se refere, em parte, na seguinte citação: “Bem, na realidade há, inegavelmente, uma diferença essencial entre a compreensão feminista e não feminista do sujeito e sua relação com as instituições; entre conhecimentos feministas, discursos e práticas das formas culturais, relações sociais e processos subjetivos; entre uma consciência histórica feminista e não-feminista. Essa diferença é essencial na medida em que é constitutiva do pensamento feminista e, portanto, do feminismo: é o que faz o pensamento feminista e o que constitui certas maneiras de pensar, certas práticas de escrita e de leitura, de imaginar, de relatar, de atuar, etc, colocando-as dentro do movimento social historicamente diverso e culturalmente heterogêneo que, apesar de suas qualificações e distinções, continuamos com boas razões para chamar de feminismo.”19

Por outro lado, para Margarita Pisano, o feminismo fracassou20. E acho que continuará fracassando enquanto não radicalizar sua diferença, se não se separar ideologicamente da civilização androcêntrica. Nesse sentido, o discurso do fracasso é uma tomada de consciência, especialmente em um contexto que visa apagar – mais uma vez – a força civilizadora que o feminismo potencialmente possui. A pós-modernidade e seu próprio feminismo, as políticas queer, o movimento LGBT21, a questão de des-identidades ou “diferenças” ou as “novas masculinidades”, o tema da diversidade e da tolerância, entre outros, fazem parte do repertório atual e sofisticado que o sistema vigente utiliza para que as mulheres continuem sem história. Desta vez, desde a Academia se assentou mais firmemente, onde muitas, aninhadas no confortável nicho dos “estudos de gênero”, irradiam correntes masculinas de pensamento.

Enquanto o sistema patriarcal não for desmantelado desde seus fundamentos, não haverá lugar para a expressão radical da diferença, entendida como um princípio existencial. Se a experiência fundadora repousa na nossa exclusão do humano e na imposição de um único ponto de vista legítimo para olhar a vida, interpretar a realidade e definir o mundo, só poderá haver uniformidade nessa cultura androcêntrica, disfarçada como a ideia de um “sujeito universal”; e dentro dessa estrutura, todo o “diferente” é desigual. Para controlar a permanência de uma sociedade homogênea e neutralizar a multiplicidade da vida, o eu (masculino, nunca neutro) que corta e divide, sob o pretexto de inclusão, constrói identidades. E essas são manejáveis porque reproduzem o princípio da uniformidade.

A feminilidade é uma identidade fundadora do sistema patriarcal. Quando Celia Amorós afirma que as mulheres são idênticas, isso significa que somos substituíveis umas pela outras, pois cumprimos a mesma função social, ou seja, entre nós prevalece, cultural e simbolicamente, a indiferenciação22. Portanto, buscar a nossa “diferença” dos homens na identidade feminina que, além disso, eles criaram para nós, é uma soberana estupidez. Isso não significa que agora nos vestiremos com uma identidade própria, o objetivo é construir uma cultura sem identidades e, simultaneamente, realizar a pendência histórica e política de simbolizar a nós mesmas.

Os movimentos pós-feministas e queers questionam o conceito de identidade, e é por isso que eles destroem a categoria “mulher” e, em vez disso, defendem a pluralidade de diferenças. Essa ideia é traduzida no tema da diversidade, amplamente utilizado na maioria dos espaços feministas atuais e também, em muitos casos, da cultura estabelecida. No entanto, esse discurso forma um novo paradigma identitário, pois promove, mais uma vez, a indiferenciação. Sob sua capa estão lésbicas, gays, trans, travestis, bissexuais; ou então as diferentes ideologias, movimentos ou tipos de feminismos23. A diversidade abrange raças e etnias, culturas, classes sociais, idades, deficiências. Sempre inclusiva, sob seu amplo guarda-chuva, as experiências do mesmo domínio são intercambiáveis entre si.

Isso acontece porque o discurso da diversidade é um mecanismo de neutralização da expressão real da diferença que as análises radicais do feminismo tem sustentado. São essas análises que inicialmente opõem a diferença à identidade. Tomando como ponto de partida que nós mulheres somos uma diferença negada nessa cultura e que esse fato é o fundamento de seu desequilíbrio, podemos projetar uma proposta política que desmantele o domínio como modo de relacionamento e acomode a diferença como princípio existencial, já que a referida proposta expressa concretamente nossa diferença e mina nossa negação

Victoria Sendón de León o disse da seguinte maneira: “Nós afirmamos, desde a diferença, ‘as diferenças’ porque somos diferentes em comparação com um modelo construído de acordo com os privilégios da masculinidade, assim como frente a uma identidade de gênero também construída de fora”24. O tema da diversidade articula objetivos semelhantes, mas apenas na aparência, pois, embora seja baseado no discurso radical da diferença, o absorve e despolitiza, já que seu objetivo estratégico é considerar a diversidade como uma obrigação discursiva, de tal maneira que a autonomia política das mulheres desapareça. Desse modo, em nome da diversidade, o patriarcado não é questionado levando em conta suas estreitas raízes e, simultaneamente, a força transformadora do feminismo radical da diferença é desarticulada.

No entanto, ao contrário do que a pós-modernidade coloca, as categorias “mulher” e de gênero não são apenas questões discursivas que podem ser desconstruídas. Nascermos mulheres é um fato da realidade que implica um componente biológico que me parece indiscutível, ou seja, somos um corpo sexuado; e esse fato é inseparável de outro elemento, o histórico: somos seres históricos. Em outras palavras, nascemos mulheres em uma cultura misógina, que encobre seu desprezo por nós com a ordem simbólica da feminilidade. E, embora essa operação ocorra em um único cenário – o sistema patriarcal –, podemos separar e distinguir o fato de nascermos mulheres do outro fato: o encobrimento simbólico, ideológico e material do feminino que sofremos. A história milenar de resistência e rebelião das mulheres explica essa divisão, porque revela uma feminilidade imposta e um sistema de dominação, como o é o patriarcado. Essa história revela a violência masculina sobre nossos corpos sexuados e o controle exercido sobre nossa capacidade de dar vida.

Por isso, entre gays, travestis e transgêneros, as lésbicas se dissolvem. Não podemos comparar a experiência histórica de lésbicas com a de homens homossexuais. Precisamente porque essa é uma cultura centrada nos homens e nós lésbicas somos mulheres. Portanto, o discurso da diversidade se torna totalmente inócuo na medida em que encobre o abuso de poder da civilização patriarcal e o potencial político do lesbianismo é afogado nas águas estagnadas do movimento LGBT. A força transformadora do lesbianismo é sintetizada na frase de Sheila Jeffreys: “toda mulher pode se tornar lésbica”25, o que significa que toda mulher pode abandonar o mandato patriarcal de servir um homem e, amando outra mulher, pode romper, ao mesmo tempo, com outro mandato: o da misoginia. Dessa forma, o lesbianismo coloca em xeque a feminilidade, o amor romântico, a traição da mãe, a ideologia da prostituição e a sexualidade reprodutiva26. Nesse sentido, descartar a categoria mulher aumenta o controle patriarcal sobre o lesbianismo; eLeGeBeTizar-lo ou incorporá-lo a qualquer discurso que enfatize o tema da diversidade implica carimbá-lo com um selo de identitário.

O conceito de identidade é equivalente ao conceito saussuriano de língua27, projetado como um tabuleiro de xadrez, no qual cada peça ocupa um lugar definido por sua oposição a outras peças28. Não importa se brinco com lentilhas, botões, pérolas ou com peças de xadrez genuínas; o importante é que eles cumpram a função designada no jogo: o peão é assim porque não é um cavalo ou rainha, não importa se é representado por um soldado de feijão ou de lata.

Foi assim que Ferdinand de Saussure definiu o conceito de língua em 1916 e inaugurou a ciência linguística. Essa é a linguagem que a institucionalidade masculina impõe para construir a realidade e os relacionamentos. Além disso, a influência da linguística – “a mais natural das ciências sociais”, diz Bourdieu29 – nas disciplinas que estudam o comportamento humano na sociedade, como a antropologia e a sociologia, é decisiva. Finalmente, todos eles se referem a uma estrutura neutra, universal e abstrata. No entanto, o tabuleiro de xadrez é o sistema androcêntrico, que define as identidades de seu jogo através de oposições que não são neutras, pelo contrário, estão impregnadas da ideia de superioridade: a feminilidade é definida pela masculinidade, ao configurar-se no sistema da língua como o Não-masculino. Em outras palavras, são relações de oposição, mas de oposições baseadas em uma lógica de domínio inclusiva.

O pós-feminismo e as políticas queer – inspirados na pós-modernidade que, precisamente, surge como uma resposta contrária a instituições monolíticas, como a ciência – restabelecem a mesma lógica. Eles não escapam do tabuleiro, apenas embaralham suas peças ainda dentro dele. Revolução e revolver compartilham o mesma origem etimológica30. É nisso que consistem as revoluções masculinas: revolver, revirar as peças, sem questionar o tabuleiro; para isso, teriam que assumir sua profunda ignorância acerca da história das mulheres. Nas práticas queer, o travestismo se torna uma performance revolucionária: é responsável pela falácia de gênero, mas não revela nenhum sujeito político e histórico por trás do disfarce, portanto, reforça a ideia androcêntrica de um “sujeito universal” e a prática performática se transforma em uma diversão perigosamente frívola.

O discurso da diversidade de raças, classes sociais, idades, deficiências, opções sexuais, etnias etc., alude a uma fragmentação setorial que tem sido útil para desarticular a força civilizadora do feminismo. Sendo identitário, o tópico globalizante da diversidade se traduz em demandas no sistema patriarcal, fortalecendo-o cada vez mais. E como diz Audre Lorde, “… as ferramentas do mestre nunca desmontarão a casa do mestre. Eles nos permitirão vencer temporariamente seu próprio jogo, mas nunca nos permitirão realizar mudanças reais.”31 Ou seja, a partir da lógica da inclusão, a visão androcêntrica não é desconstruída, porque essa lógica é sua principal ferramenta. A mesma que faz com que as análises feministas de gênero permaneçam presas e limitadas, principalmente as acadêmicas.

Nossa potência política está na exclusão: nós mulheres desfrutamos de uma posição de estrangeria radical. E, a partir deste local, podemos “aprender a tomar nossas diferenças e transformá-las em potencialidades”32. Nesse sentido, “nossas diferenças” – que no contexto atual são desigualdades – não devem nos dividir, pelo contrário, tem de nos potencializar a mergulhar no conhecimento do domínio patriarcal e iniciar seu desmantelamento. E quando digo que elas não devem nos separar, não o faço inocentemente, porque conheço as traições históricas entre as mulheres e as representatividades autoconcedidas no feminismo. Ultimamente, a maioria dos discursos feministas estão ocupados nomeando todos os eixos articuladores que marcam a diversidade entre as mulheres, mas muitos poucos se detêm em uma análise desconstrutiva da feminilidade, vista não como fachada, disfarce ou papel social, mas, parafraseando Virginia Woolf, como “aquele longo cativeiro que nos corrompeu tanto por dentro como por fora”33. A intencional moda epistemológica determina hoje que é mais importante insistir nas “diferenças” que nos separam das mulheres do que na experiência comum que nos une. E depois das divagações intelectuais da pós modernidade, também não se escuta uma proposta política e filosófica que contrarie a macroideologia patriarcal.

Por outro lado, desde o feminismo radical da diferença, se trata de tomar essa experiência em comum para transformá-la em um projeto político e filosófico que, localizado desde fora (“afora”), investigue o conhecimento dos mecanismos fundadores e, também, daqueles que perpetuam a cultura androcêntrica; tudo isso para abandoná-la e propor outras formas de relacionamento entre os seres humanos e com o mundo. Nesse sentido, as especificidades que realmente existem entre nós – classe, raça, idade – devem nos unir ideologicamente para realizar a construção deste foco de referência que, esperamos, seja atraente para muitas (e muitos) e que, com sua mera presença desmonte o essencialismo de nossas mentes. E, também nesse sentido, nossas divisões devem ser motivadas por idéias – e não pela fragmentação identitária do sistema patriarcal –, por diferenças ideológicas assumidas e evidenciadas com total transparência para podermos discuti-las e confrontá-las. Isso seria ensaiar um modo de relacionarmo-nos e de fazer política sem a lógica da inclusão, mas no qual a diferença tem um lugar como princípio existencial.

Até quando continuaremos a participar da grande derrota do homem, desse “sujeito universal” que na verdade não o é e por trás do qual a negação de quem somos se esconde? Quanto tempo levaremos pra perceber que essa ideia é a base de uma civilização desequilibrada? O domínio sobre o qual Lonzi nos adverte, causado pela integração igualitária, hoje está vestido com uma roupa nova, a da pós-modernidade e seu feminismo. Cada camada aprofunda o esquecimento de nossa história (“nossos traços são apagados, os traços de nossos traços”)34 e, ao mesmo tempo, o poder patriarcal se torna cada vez mais simbólico, invisível e tirânico. E o sistema acadêmico e intelectual é um dos principais mecanismos de sofisticação de seu domínio.

Ao desmantelar a categoria “mulher”, o pós-feminismo reforça o mais obscuro e intencional vazio que essa cultura mantém para se perpetuar, a saber: a história milenar de resistência e rebelião das mulheres. Junto com isso, nos impede de construir politicamente desde nós mesmas atando nossas mãos, porque sem consciência histórica é impossível propor um projeto para o futuro. O que finalmente nos leva a sustentar a crença essencialista de que essa civilização androcêntrica é a única versão da humanidade que pode existir. O que estamos esperando para radicalizar nossa diferença política e rejeitar as ideologias masculinas que sempre intervieram em nós, absorvendo e despolitizando nossa força transformadora para preservar sua dominação ou, sujeitando-a aos objetivos de suas lutas, que nunca desatarão os nós originais35 de sua deshumanizada cultura?


 

El feminismo radical de la diferencia (II)

El feminismo olvida con facilidad su potencialidad política. Y con esto quiero decir, su capacidad de intervenir en el mundo para transformarlo radicalmente. Últimamente, este olvido cuenta con un aparataje intelectual que lo respalda, me refiero a la alianza existente entre los estudios de género y la teoría posestructuralista, lo que se ha dado por llamar feminismo posmoderno o posfeminismo. Dicha alianza ha ido instalando un pensamiento hegemónico que repercute en los distintos espacios feministas y se cuela en sus discursos, desarticulando la legitimidad de la autonomía política de las mujeres.

Para esta perspectiva dominante, “la mujer” no es más que una categoría ficticia del sistema ideológico patriarcal, es solo un constructo social o un discurso, y la apuesta del feminismo consistiría en desmantelar esta ficción. Por lo tanto, para el posestructuralismo, aunar una lucha desde las mujeres pierde total relevancia.

La categoría sexo/género del feminismo anglosajón de la segunda ola fue fundamental para desnaturalizar el eterno femenino patriarcal. La distinción – heredera de la afirmación beauvoiriana “la mujer no nace, se hace” – nos advierte que la feminidad es un constructo cultural diseñado por una civilización androcéntrica y, como tal, posible de ser deconstruido. Así, en sus orígenes, la categoría porta la potencialidad política de romper con el género y subvertir el sistema patriarcal. La feminidad no somos las mujeres, entonces, ¿quiénes somos las mujeres?, ¿somos un sexo?

Afirmar que las mujeres somos un sexo, un cuerpo sexuado, un cuerpo con capacidad reproductiva, cíclico… es una de las declaraciones más controversiales en el debate feminista vigente. Los argumentos en este sentido plantean que el reconocimiento de dos sexos es una categorización patriarcal que encubre la existencia de los intersexos, por ejemplo, y que en su misma formulación contiene la construcción genérica. Además, tomar el sexo como punto de partida implica retrotraernos a un esencialismo biologicista que reduce el análisis político.

Aunque acepte que el reconocimiento de dos sexos es una categorización patriarcal, esto no me conduce a pensar que las mujeres seamos una categoría ficticia. Tampoco manejo la información necesaria sobre las vivencias de los intersexos. Según De Beauvoir, estos constituyen una minoría excepcional. Pero Simone escribió en 1949, sospecho que los estudios al respecto han variado y avanzado mucho. De todos modos, los intersexos propondrán su proyecto político con el cual, si queremos, podremos dialogar y confrontarnos. No obstante, la lucha de las mujeres tiene su propia historia y, desde mi interpretación, la potencialidad política más radical.

Ser un cuerpo sexuado mujer para –y si se quiere, no en– la cultura patriarcal, nos sitúa históricamente. Nuestra propuesta política no pretende ni puede estar deshistorizada, nos interesa desmontar los cimientos de una civilización que cuenta con un inicio –aun cuando este sea incierto- y que, esperamos, tenga un término. Y en el contexto de esta civilización, nacer mujer y nacer varón constituye un dato de la realidad. Ahora bien, esta dicotomía originaria se disuelve en la lógica incluyente del sistema patriarcal que impone su unilateral punto de vista para entender la vida. Con otras palabras, nacemos mujeres para una cultura misógina, que reviste su desprecio hacia nosotras con el orden simbólico de la feminidad y sucumbimos a conformar la parte inferior de un único cuerpo con la masculinidad. Y aunque esta operación sucede en un solo escenario el sistema patriarcal, podemos separar y distinguir el hecho de nacer mujeres, del otro hecho: el revestimiento simbólico, ideológico y material de lo femenino, que padecemos.

La historia milenaria de resistencias y rebeldías de las mujeres da cuenta de esta división, porque devela una feminidad impuesta y un sistema de dominio como lo es el patriarcado. Revela la violencia masculina sobre nuestros cuerpos sexuados y el control ejercido sobre nuestra capacidad de dar vida. Y el posfeminismo, al desechar la categoría mujer, arrastra la nefasta consecuencia política de reforzar la ignorancia existente sobre nuestra historia de resistencias y rebeldías, que constituye el más ignoto e intencionado vacío que mantiene esta cultura para perpetuarse. Junto con esto, nos ata de manos para construir políticamente desde nosotras, porque sin conciencia histórica es imposible pensarse y pensar el mundo.

Entonces, nacer mujeres es un dato de la realidad que implica un componente biológico que me parece indiscutible, es decir, somos un cuerpo sexuado; pero este hecho es indisoluble con otro elemento, el histórico: somos seres históricos. Contamos con una memoria histórica y otra, corporal. Cito a la italiana Maria Luisa Boccia: “Si queremos dejar de lado lucubraciones subjetivas sobre el género sexual, el punto nos lleva al análisis y al razonamiento en profundidad sobre el nexo entre biología e historia, entre naturaleza y cultura, entre corporeidad y razón como vínculo imprescindible.”(1)

Una vez aclarado el asunto, a la pregunta ¿quiénes somos las mujeres?, podemos responder que no lo sabemos, puesto que de la frase “las mujeres no somos la feminidad” (Pisano) se desliza el pendiente político de simbolizarnos a nosotras mismas, recuperando nuestros cuerpos junto a la capacidad humana de pensar. Así, mediante la expresión material de un pensamiento político, podremos marcar una dicotomía respecto de la ideología patriarcal que, por ahora y hasta nuevo aviso, conforma los lentes totalitarios para mirar el mundo, interpretar la realidad y construir lenguaje.

2010

NOTAS:

(1) En Debate feminista, año I, vol. 2, septiembre 1990. “El feminismo en Italia”. Editorial: Marta Lamas, México.

 
   

tentando ver como colocar as notas de rodapé…