Me intriga que com tantos assassinatos de lésbicas, lesbofobias, violências contra lésbicas, demissões e discriminação, precarização econômica e marginalização, lésbicas em prisões, lésbicas desabrigadas pelas famílias, entre tantas opressões estruturais que afetam este grupo, o movimento social ainda insiste em achar que o maior problema das lésbicas são seus relacionamentos íntimos, como pude observar a partir do flyer de um evento feminista (institucional) focado em políticas públicas cuja maior parte da programação se dedica à questão da ’aplicação da lei Maria da Penha a casais lésbicos" (como consta no flyer, são essas palavras mesmos) como tema do mês da Visibilidade Lésbica. Sempre a partir de um olhar e uma abordagem heterocentrada e punitivista do pretenso tema “violência entre lésbicas”, que parece que agora é tudo no qual o Estado deveria intervir ou regular pelo que pede o movimento.
Queria que tivessem esse entusiasmo em falar também sobre impacto psíquico da estigmatização e dos escrachos banais dessas lésbicas colocadas numa identidade essencializante, maniqueísta, malignizante e destrutiva de “agressoras”. A destruição da auto-estima e a desumanização das lésbicas por esses debates mal-feitos e descuidados, distorcidos que vem ocorrendo no tema. Sem qualquer pensar sobre o acolhimento a ser feito e sem atentar às condições sociais de privação e precarização psíquica que produzem relações não-saudáveis entre lésbicas, sobretudo as que estão fora de militância (que seriam o alvo das intervenções de políticas para violência doméstica).
Me preocupa como muitas vezes se reforçam nessas discussões, estereótipos negativos acerca da existência lésbica, além da banalização do diagnóstico de “relações abusivas” que, dentro da militância, cobra seres humanos impecáveis, e um modelo de relacionamento impossível de alcançar em sua perfeição moral, higienizado, apelando para a disciplinação dos corpos lésbicos com exposições e abordagens destrutivas.
E aí parece que de repente o problema das lésbicas ou do movimento não são mais os homens que nos matam e agridem, sujeitos com poder estrutural de fato. O problema são as lésbicas incorrigíveis, molestadoras, predadoras e maníacas, ‘bestiais’. E parece que todas categorias políticas merecem ser ditas fruto da construção social, exceto pelas lésbicas, estas devem ser punidas e “nasceram más”, não tem solução seus casos. Afinal lésbicas não são humanas. São historicamente representadas como monstros, corpos abjetos aberrantes. E esse legado histórico que lésbicas carregam determina as leituras sociais sobre estas. São as únicas nos discursos dos movimentos a serem responsabilizadas e crucificadas pelos seus erros, afinal, no movimento feminista, mulheres heterossexuais e bissexuais possuem esse direito incondicional de serem consideradas indiscutivelmente vítimas, e se agem na opressão de alguém é dito que apenas estão a reproduzir opressão, e homens agressores recebem mais compaixão nos movimentos sociais que as lésbicas que falharam na performance de seres ideais.
Acharia mais potente que, ao invés disso, nos puséssemos a pensar intervenções mais criativas e éticas. Que visibilizássemos os conceitos de relação saudável entre lésbicas, que se possibilitasse vias críticas reflexivas e práticas para a desconstrução de padrões relacionais não-positivos. Que se pensasse e discutisse novas éticas afetivas, que se pudesse realizar um trabalho de desconstrução, reeducação, prevenção, sem moralismos, onde pudéssemos admitir nossos processos pessoais humanos nisso tudo. Gostaria que se buscasse genuinamente curar em profundidade as lésbicas e suas feridas históricas coletivas, ao invés de puni-las ou estereotipá-las…
Fica aí o questionamento também para nossas clínicas (às psicólogas lésbicas e feministas) e como operamos na subjetividade esses agenciamentos diferenciais, para além das politicas públicas ou do Estado, das macropolíticas, para daí no plano micropolítico pensar a sujeita, a individualidade e a singularidade. Pois pensando psicanaliticamente (desde uma psicanálise feminista/lésbica), temos nossa participação nas nossas narrativas e na nossa própria história, e portanto, na retomada da nossa agência particular e de nossas vidas. E assim podemos exercer um papel ativo na produção de relacionamentos saudáveis e na organização dos bons e maus encontros amorosos, e daí na reinvenção de um modo de existir para além do Patriarcado, dentro das éticas relacionais que almejamos.
(Foto do Filme Olga Hepnarová, sobre caso verídico de uma lésbica anti-social sem performance de feminilidade que viveu nos anos 70 na Tchecoslováquia e cometeu um assassinato em massa após uma vida de negligências e privações afetivas, violências, bullying e lesbofobias. Foi a última mulher a ser condenada à pena de morte no país).