O filme nacional Como Esquecer é um dos meus filmes lésbicos favoritos. Certa vez, conversando com outra lésbica, eu comentei que gostava muito deste filme, e ela me disse que o considerava um tanto pesado. Na hora, aquilo foi um impacto para mim, porque este foi um dos poucos filmes lésbicos que não me causaram um enorme mal estar. Azul é a Cor Mais Quente é um filme pesado para mim. E queria observar também o quanto o primeiro filme é tão desconhecido, enquanto o segundo teve grande repercussão.
De fato, a história de Como esquecer não deixa de ser triste. É sobre uma personagem lésbica que termina um relacionamento amoroso com outra mulher, e seu sofrimento é mostrado de forma extremamente intensa. Mas não é um filme sádico, onde a personagem lésbica apenas se dá mal e termina se suicidando.
Mas afinal, se ele é um filme lésbico que mostra sofrimento, por que ele foi um dos raros filmes que eu assisti sem ter aquela sensação de “soco no estômago” (sim, é bem isso que eu sinto)? Porque, pela primeira vez no cinema, eu vi uma personagem lésbica ser representada em sua dimensão emocional de forma humanizada. Para quem ainda não se atentou, vou explicar o que sempre acontece nos filmes lésbicos: o namoro entre as personagens termina e nenhuma forma de sofrimento é mostrada, é como se nada tivesse acontecido; a esposa morre e a que ficou viúva não derrama uma lágrima; o casamento termina e as duas continuam firmes e fortes, como se nada tivesse ocorrido. Isso quando não tem algum homem entre as duas, seja no começo, no meio ou no final do filme. Não estou dizendo que para uma relação ser verdadeira tem que haver sofrimento, mas é inegável que perdas, separações e mortes causam sofrimento em qualquer pessoa (exceto para as lésbicas, de acordo com essas representações).
O filme Cloudburst, por exemplo, que é sobre um casal de lésbicas idosas, mostra uma linda história de amor. Até chegar no final, quando uma delas morre. E a esposa, que passou praticamente a vida toda ao seu lado, além de não ser retratada expressando nenhuma reação de dor, diz muito conformada com a morte, “na minha idade, eu já sei que nada é para sempre”. Nesse momento eu senti a minha existência lésbica ser completamente ultrajada. Que tipo de gente pensa que qualquer pessoa seja capaz de simplesmente se conformar com a morte de outra pessoa, a qual amava e com a qual dividiu a vida toda, sem nem mesmo passar por um período de luto? Mas não estamos falando de uma personagem qualquer. Estamos falando da retratação de uma personagem lésbica e de uma relação conjugal lésbica. E se isso existe num filme, é porque existe no imaginário social.
Por que é tão importante pensarmos, nos expressarmos e trocarmos experiências sobre lesbofobia?
Por mais que, muitas vezes, a lesbianidade seja encarada como uma questão que só importa entre quatro paredes, ou seja, a nossa orientação afetiva-sexual é colocada como uma simples questão de satisfação sexual, eu afirmo, enquanto lésbica, que a nossa felicidade certamente vai muito além disso. Na realidade, não é que a orientação afetiva-sexual seja apenas um aspecto da nossa vida, a sexualidade em si. Na verdade, ela perpassa todas as dimensões da existência humana (emocional, psicológica, social, etc). Mas as pessoas em geral não compreendem isso, porque pessoas heterossexuais são vistas como pessoas que não possuem orientação afetiva-sexual, pois elas são vistas apenas como “pessoas normais”. Como a homossexualidade (tanto a lesbianidade como a homossexualidade masculina) carrega o estigma, imposto através da violência, de ser anti-natural, patológica e anormal, quando se fala sobre orientação afetiva-sexual, as pessoas nunca remetem isso à heterossexualidade (e talvez por isso sempre dizem “opção sexual” em vez de orientação, e “escolha” em vez de condição… existem lésbicas que não gostam da palavra condição, por achar que ela remete a doença, mas particularmente, eu a entendo como oposta a ideia de opção).
Voltando à pergunta: Por que é tão importante pensarmos, nos expressarmos e trocarmos experiências sobre lesbofobia? É fundamental que as lésbicas pensem no que implica socialmente não apenas o fato de sermos mulheres, mas também no que implica socialmente o fato de sermos lésbicas.
Enquanto lésbicas, até mesmo nossas experiências com a morte são peculiares. Por exemplo, uma lésbica cuja a esposa faleceu, além de ter que lidar com a dor da perda, ainda terá que lidar com a lesbofobia da sociedade, e em muitos casos, também dos próprios parentes. Provavelmente terá que lidar com seu casamento sendo deslegitimado, familiares se sentindo no direito de atropelar seus direitos enquanto esposa e muitas outras coisas. Para quem pensa que estou exagerando, é só olhar para a realidade. Vamos resgatar alguns fatos: quando Cássia Eller faleceu, seu pai tentou retirar a guarda do filho de Eugênia, sua esposa, mesmo que Cássia tenha afirmado publicamente que ela mesma era só uma segunda mãe. Imaginem ter que lidar com a perda da esposa e ainda perder a guarda do filho por causa de um familiar lesbofóbico. Quando ocorreu o atentato na boate Pulse em Orlando, grupos foram ao velório das vítimas para fazer uma manifestação de ódio, a qual os meios de comunicação noticiaram como homofóbica, (eu não sei quais foram as lésbicas vítimas deste atentado, porque não encontrei informações, a notícia que achei apenas usava o termo “mulheres queer”, mas neste caso específico, poderia ter sido com qualquer lésbica). Ou perder uma namorada e talvez nem poder expressar seu sofrimento, porque aquela relação era um segredo para a sociedade (não podemos subestimar a quantidade de lésbicas que ainda vivem assim). Ou mesmo perder alguém e passar por isso longe da mulher que você ama porque não sabe se a presença dela naquele velório pode provocar reações lesbofóbicas. Assim como ouvir perguntas do tipo “você acha que tem necessidade dela estar aqui com você?”. Não, não tem não, ela é só a minha esposa! Então imaginem a minha fúria quando tratam relações lésbicas como algo de menor importância.
Cássia Eller, sua esposa Eugênia e Francisco, o filho do casal
Por que será mesmo que nós precisamos dos nossos direitos garantidos ao menos na constituição (se infelizmente nem sempre é possível na prática)?
As lésbicas geralmente são retratadas como pessoas destituídas de dimensão emocional. E essas representações existem porque é assim que a sociedade nos enxerga. Somos desumanizadas. Se um casamento termina, as pessoas tratam aquilo como se não doesse. Se um namoro termina, a mesma coisa. Somos desumanizadas nos nossos maiores momentos de fragilidade, e fazem isso como se não estivessem cometendo lesbofobia.
Quando digo que lésbicas são privadas de afeto, estou me referindo principalmente a três fatos: somos tratadas como se não sentíssemos afeto; sofremos profundas perdas afetivas por causa da lesbofobia; e nós somos impedidas de expressar afeto (podemos andar de mãos dadas na rua, mas se formos vítimas de violência lesbofóbica não há nenhuma lei que nos proteja, e ainda nos culpam pela violência que sofremos).
Somos tratadas como se não sentíssemos afeto porque somos desumanizadas, tratadas como aberrações e como uma fantasia sexual, personagens de um filme pornográfico, sem qualquer existência real. Lembro que na época da faculdade, existiam festas em que o fetiche lesbofóbico era uma “atração”, a famosa fantasia masculina de verem duas mulheres juntas, e ao mesmo tempo, as mulheres da minha sala comentavam “aquela ali fica olhando pra outra na sala de aula… se pegar em festa tudo bem, mas ficar se olhando na sala de aula já é demais”. Esse pensamento é violento, é extremamente violento. O fetiche masculino com lésbicas é sobre o olhar de cura, é sobre cultura do estupro corretivo, é sobre violência. Nossas relações são tratadas como se fossem insignificantes, e se insistimos que nossas namoradas não são nossas amigas, nos reduzem a sexo como forma de punição.
Sofremos profundas perdas afetivas por causa da lesbofobia. Sentimos medo de que as pessoas que amamos, como mães, pais, etc, deixem de nos amar por sermos lésbicas. Não é um medo fantasioso, afinal, ele é projetado pelas histórias horríveis e reais que escutamos sobre “se assumir” para a família. E muitas vezes, de fato, esse laço afetivo é rompido. Isso quando o desfecho não envolve também outras formas de violência, como a agressão física, assassinatos e estupros corretivos planejados pelos próprios familiares. E eu não estou falando de qualquer laço afetivo sendo rompido, estou falando dos primeiros laço afetivos que criamos em nossas vidas.
Uma lésbica me relatou que onde ela morou na infância havia uma vizinhança em que as pessoas eram muito amigas, e que sua irmã mantém contato com essas pessoas, mas que o mesmo não acontece com ela, por uma questão de lesbofobia.
Nós, lésbicas, passamos o tempo todo por grandes perdas. E eu estou falando além daquelas que todo mundo sofre, pois estou falando de perdas causadas pela lesbofobia. Essas perdas são um fato constante em nossas vidas, elas raramente nos dão trégua.
E também há os casos em que casais lésbicos, especialmente de adolescentes, são separados pela família. Coisas como mandar a filha ir morar em outra cidade, entre outras. Adrielle Camacho, de 14 anos, foi assassinada pelo pai e irmão da namorada. Me pergunto com que apoio a garota enfrentou esse luto, se os assassinos foram a própria família.
E também há aquelas amigas lésbicas que perdemos porque elas não estão fortalecidas o suficiente, e se afastam porque não querem ter que ver em você a própria realidade. Há aquelas que não estão fortalecidas o suficiente e acabam despejando em você a culpa por sofrerem lesbofobia. E aquelas que ainda não estão fortalecidas o suficiente e não aprenderam a dar o mínimo de valor para outras lésbicas.
Eu não posso generalizar o impacto que toda essa privação de afeto e essas constantes perdas têm na vida de cada lésbica, porque cada uma responde a isso de uma forma diferente, mas como somos pessoas, eu tenho certeza que toda essa situação tem algum impacto destrutivo na nossa vida, um impacto na nossa saúde psicológica, emocional e até mesmo física.
E também um grande impacto em nossos relacionamentos, especialmente porque geralmente não temos referências e ferramentas (ou seja, conceitos para compreendermos nossa realidade) para lidarmos com tudo isso.
Eu não sou contra discutirmos a qualidade das relações entre lésbicas. Ao contrário disso, muito me preocupa a delicadeza com que tratamos umas às outras, porque nós já (sobre)vivemos numa situação de plena vulnerabilidade social. O que eu sou contra é, por exemplo, não existir praticamente reflexão nenhuma sobre a situação social das lésbicas nos movimentos sociais, e de repente sermos surpreendidas no Mês da Visibilidade Lésbica (o único mês que parece ser permitido se dedicar às questões lésbicas) com rodas de conversa sobre relações lésbicas abusivas. Vocês já perceberam que quando este tema vem à tona, é quase sempre uma história sobre alguma lésbica super ciumenta que queria aprisionar a namorada na monotonia da monogamia e subjugá-la aos valores patriarcais? Estamos falando de relações lésbicas, relações que são invadidas o tempo todo numa sociedade que não nos dá o mínimo de suporte para existirmos. Não que eu seja contra refletirmos sobre as consequências do ciúme nas relações, mas acho que isso tem que vir através do nosso fortalecimento, e não demonizando ou ridicularizando a lésbica que não sabe lidar com a insegurança. Mesmo porque a falta de delicadeza ao lidar com as questões lésbicas tem a ver com o fato de sermos desumanizadas.
Somos tratadas como se não sentíssemos, como mulheres potencialmente perigosas, como aquelas com as quais nem vale a pena perder o tempo conversando porque são incapazes de entender um diálogo e viver em sociedade. Nos espaços de militância isso se expressa bastante. É muito comum vermos pessoas que são preocupadas com sua imagem pública tratando lésbicas extremamente mal, de forma agressiva, publicamente, sem que isso tenha qualquer consequência ou gere qualquer tipo de constrangimento.
Mais uma vez eu pergunto: por que é tão fácil agredir uma lésbica?
Bárbara Teixeira
(Lésbicas em Luta – 05/04/17)
movimentolesbico.blogspot.com.br/2017/04/sobre-o-filme-como-esquecer-e-algumas.html