sobre lesbiandade, heterossexualidade e feminilidade, texto de raposa

“As mulheres heterossexuais já tem a própria irmandade, essa é que é a verdade – claro que isso considerando um recorte no que tange às condições da pessoa de agir, fazer escolhas e ter consciência política dentro de sua realidade -. Eu falo aqui principalmente de mulheres feministas, universitárias, de classe média ou que, no mínimo, já tiveram a oportunidade de questionar a supremacia masculina, de considerar a heterossexualidade como sistema compulsório e, mesmo assim, elegem a assimilação ao sistema patriarcal. Há quem diga que apontar essa realidade é estimular a culpabilização das mulheres e a ‘hostilidade horizontal’, debate que tem sido distorcido inacreditavelmente, afinal, essa desculpa se trata de um silenciamento especificamente anti-lésbica. Não é de hoje que nós, lésbicas, representamos ‘ameaça’ e ‘hostilidade’ à ‘irmandade’ das heteras, porque nossa existencia aponta diretamente contra uma vivência que é privilegiada.

Marilyn Frye tem um texto bastante esclarecedor no qual ela descreve o quanto é dolorida a consciência de quem vive em uma situação marginalizada. As pessoas que estão dentro da normalidade jamais considerarão e reconhecerão conscientemente o que elas são, porque isso não causa desconforto em muitos aspectos. Em contrapartida, ser lésbica em uma sociedade anti-lésbica e heterossexista é extremamente desconfortável e até mesmo enlouquecedor muitas vezes.

Eu vejo mulheres heterossexuais comemorarem quando uma lésbica é assimilada ao intercurso e ao heterossexismo, e a sensação é a de que elas comemoram uma vitória contra as lésbicas, principalmente as radicais. Paira um deboche e uma total falta de seriedade e consideração à profunda crítica que nós lésbicas acessamos e construímos ao longo de décadas e décadas e, porque não mencionar tempos mais remotos? Séculos e séculos.

Uma tristeza e solidão nos acomete quando encontramos uma companheira hetera por termos consciência do tamanho da cratera que existe entre nós, uma cratera que dificulta nossa vida social, nossa convivência, e que nos deixa claro que não podemos nos sentir 100% seguras nessa relação, afinal, a irmandade heterossexual tem uma falha fundamental em sua estrutura: a feminilidade (aquela construída pelo patriarcado).

A feminilidade é o que transforma a expressão “mulher heterossexual” num grande pleonasmo dentro da cultura patriarcal, afinal é o que expulsa a nós, lésbicas visíveis ou nos torna fugitivas da categoria mulher. A feminilidade é o que compõe a categorização do gênero feminino naturalizado pela cultura patriarcal. A feminilidade é faz das mulheres heterossexuais uma irmandade hipócrita, pois por mais sutil que seja, a competitividade feminina, a fofoca, a superficialidade das relações entre mulheres e a intolerância sempre estarão presentes, porque na cultura heterossexual a prioridade nunca será a mulher e sim o homem.

Isso é muito claro nessa prática assimilada de busca por status nas redes sociais, nesse estrelismo feminista de facebook, curtidas e debates intermináveis com homens e violência interminável entre mulheres, exposições e escrachos que por incrível que pareça nunca atinge os verdadeiros agressores e quase sempre só serve para prejudicar outras mulheres, etc.

E por falar em homens, o grande objetivo dessa dinâmica patológica que a feminilidade institui nas relações entre as mulheres é justamente drenar a possibilidade de um amor mais profundo e genuíno entre mulheres. Assim, ao invés de identificarem-se verdadeiramente umas com as outras, elas passam a se identificar com os homens, como cita a autora de Rape of the Wild. Elas passam a direcionar toda a sua energia erótica e física aos homens.

Defender a heterossexualidade, trazendo a política sexual falaciosamente para o plano do pessoal e invalidar a nós, lésbicas e nosso pensamento radical é defender a própria supremacia masculina, é defender a cultura de estupro e a violência do macho. É, simplesmente, ser anti-feminista, e se isso de repente virou o feminismo numa inversão totalmente paradoxal, então eu realmente compreendo porque é que depois de me tornar lésbica eu simplesmente me nomeio lésbica e já não digo que sou feminista.. Por outro lado, é injusto, pois fomos nós lésbicas, nossas ancestrais, que embasaram o que foi nomeado feminismo radical".